9.16.2015

AS RAZÕES DE JUDAS


JUDAS É  DESDE SEMPRE, A ENCARNAÇÃO DO TRAIDOR. AQUELE QUE ENTREGOU SEU MESTRE POR UNS TROCADOS. PELA PRIMEIRA VEZ, UM ADVOGADO PROCURA RESTABELECER A VERDADE NO PROCESSO, DISSECANDO AS CAUSAS, PESANDO OS ARGUMENTOS DA ACUSAÇÃO.O QUE DEVE SER ESCLARECIDO SOBRE O APÓSTOLO MALDITO.

No processo interminável aberto por alguns clérigos, a grande acusação contra Judas é a de ter entregue Jesus a seus inimigos mortais. Há 2.000 anos, questionamos seu gesto: por que este homem que, durante pelo menos dois anos,seguiu cada passo de Jesus, que como ele fez milagres e expulsou os demônios, que o amou a ponto de abandonar tudo para se unir ao seu destino, por que este homem, de repente, traiu seu mestre, e ainda, o fez por uma soma irrisória? Há um mistério em Judas.

Além das interpretações metafísicas, psicológicas ou religiosas que marcaram o curso dos séculos, retiraremos de uma abordagem estritamente histórica, uma explicação original que tem, acima de tudo, o mérito fundamental de não desmentir as Escrituras.

Eis a ideia: judeu nacionalista. Judas espera que Jesus liberte Israel do jugo romano. Ora, apesar da imensidão de seus poderes milagrosos, apesar de movimentar uma multidão entusiasta, Jesus não age. Decepcionado com esta "passividade", Judas entrega Jesus  para obrigá-lo a descobrir a dimensão do seu poder. Assim, no momento em que os guardiães do Templo o fossem prender, Jesus agiria de modo a mudar o rumo dos acontecimentos. Esta análise conduz para a ideia de que Judas era um zelote.

Simão, um discípulo de Jesus, é também um zelote. É fato consumado. Havia outros? Provavelmente. O sobrenome de Tiago e João - filho do trovão - não era devido à sua natureza combativa? Simão Pedro, chamado por Jesus de Bar-Jona, recebia este estranho epíteto em razão do seu vínculo com a seita dos Baryonim, coligados com os zelotes.'Baryon' significando em aramaico 'portador de punhal', 'sicarius' em latim.

A VONTADE DE JUDAS É QUEBRAR, COM ARMAS, O JUGO ROMANO

E Judas? Nenhuma discussão a seu respeito. Em primeiro lugar, há a indicação filológica: Judas Iscariotes, aproximação aramaica de Judas Sicarius. Há sobretudo, a exegese proposta por Oscar Cullmann: existiriam três palavras para designar o partido político de resistência judia ao poder ocupante. São as seguintes: a palavra grega 'zelote', a palavra aramaica 'kenana', com sua derivada grega 'kananaios' ou 'kananitès' e a palavra latina 'sicarius'. Da mesma forma Simão, chamado por Lucas de zelota, é chamado por Marcos e Mateus, de Simão, o Kananaios. Ora, em um versículo de João (XIV,12), o nome de Judas é seguido do epíteto 'kananitès', o que não pode, evidentemente, ter outra explicação senão a mesma que levara Marcos e Mateus a assim chamarem Simão. Desde então não há dúvida de que Judas fora membro do partido dos zelotes.

Na época de Jesus, a vontade que movia estes homens era a de quebrar o jugo romano. E este objetivo, isto é claro, só poderia ser atingido ao se recolher a violência armada. Numerosos ativistas já haviam se refugiado na clandestinidade. Vários deles foram presos, torturados, crucificados. Todo o povo judeu estava neste momento sob a dominação romana. Israel era uma nação militarmente vencida. Mas, quanto mais Roma afirmava seu poder, tornando toda insurreição ilusória - os mais antigos se lembram dos 2.000 judeus crucificados em Jerusalém pelas legiões de Varo -  mais a esperança messiânica crescia. Essa esperança se resume em uma frase: Deus sozinho pode salvar tudo. Ora, eis que Jesus anuncia a vinda iminente do Reino de Deus. Esta sua missão original. Assim, menos importante passa a ser a mensagem que Jesus levou, ao longo de sua vida, aos ouvintes: "Em verdade vos digo: já não beberei do fruto da videira,até aquele dia em que  o beberei de novo no Reino de Deus" (Mc XIV,25). É questão de meses, quase de dias: "Pois vos digo: não tornarei a comê-la, até que ela se cumpra no Reino de Deus." (Lc XXII,16)

Esta crença messiânica está presente em Judas como em cada judeu, misturado com ímpeto combativo e fé ardente. Este Jesus que multiplica os milagres e ressuscita os mortos, é seguramente e somente ele, que deve restabelecer o Reino de Deus.Judas acredita piamente nisso. E, como os outros apóstolos que partilharam a última refeição com Jesus, após sua ressurreição, o questionam: "Senhor, é agora o momento em que você vai restaurar o reino de Israel?" Está aí a origem do mal entendido. Podemos dizer que a tragédia de Judas começa com este mal-entendido.

Primeiro há o simbolismo deste instante solene no qual Jesus inaugura seu sermão. "Jesus reuniu seus doze discípulos. Conferiu-lhes o poder de expulsar os espíritos imundos e de curar todo mal e toda enfermidade" (Mat X,1). Doze, igual às doze tribos de Israel. Através desta instituição, Jesus afirma sua autoridade política no seio da nação judaica. Ao menos foi no que Judas acreditou. Ele submeteu-se, imediatamente, ao poder carismático de seu mestre, sabia que Jesus tinha o estofo de um líder de revolta. Aliás, o discurso de Jesus fora proferido para desenganá-lo? Não. Em seus tímpanos, ainda ecoavam as implacáveis palavras carregadas de esperanças frustradas. "Não julgueis que vim trazer a paz à Terra. Vim trazer não a paz, mas a espada." (Mat X,34) Ou ainda este outro: "Mas agora, disse-lhes ele, aquele que tem uma bolsa, tome-a; aquele que tem uma mochila tome-a igualmente; e aquele que não tiver uma espada, venda sua capa para comprar uma." (Lc XXII,36). Como Judas, homem simples, homem do povo, combatente valoroso de sua nação, pode entender estas palavras senão como um chamado à rebelião?

E, mais desconcertantes,são os atos de Jesus - atos de violência armada e organizada - que, de outros ponto de vista, poderiam ser entendidos como desejo de poder. A começar pelo ataque dirigido contra o Templo,quando Jesus, no arrebatamento da cólera sagrada, derruba as bancas dos comerciantes, varre com um chicote improvisado de cordas as moedas que brilham sobre os tabuleiros, solta o santo gado, sob olhar dos comerciantes. "Fora bandidos! Vocês fizeram de uma casa de preces uma casa de comércio!" Tudo isso compõe um ataque frontal. Ora, esta violência não é a de um profeta? Judas acredita nisso. Quem não acreditaria? Esta soberba violência fortifica sua fé no homem de Nazaré.

O que é certo é que o ato revolucionário de Jesus parece a Judas um gesto messiânico, anunciador de um final feliz. Esta convicção tomou força com a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém. Neste momento seus discípulos se contavam aos milhares. O evangelho fala, em diversos lugares de 'multidões'. Judas diz a si mesmo: "Este homem capaz de suscitar de maneira espontânea o fervor das massas, este homem é também o único que será capaz de se fazer seguir por elas."

E Judas sabe que, com fins políticos, nenhum movimento de libertação pode ser bem-sucedido sem a adesão popular. Portanto, Jesus é idealmente o homem da situação. Estando a multidão disposta a saudá-lo como Messias, crescem as esperanças de sucesso e de vitória.

OS APÓSTOLOS ACREDITAM QUE O REINO DE ISRAEL TINHA CHEGADO

A subida à Cidade Santa soa para Judas como o momento da vitória. A Páscoa carrega todos os anos para Jerusalém impressionantes multidões, parecidas com as das grandes peregrinações. Quando Jesus decide, ao deixar Cafarnaum, voltar a Jerusalém, uma multidão toma o mesmo caminho. Sua espetacular entrada é como um ato de desafio para as autoridades judias e romanas. Mesta explosão de entusiasmo, todo mundo, evidentemente, espera que Jesus faça publicamente um ato de Messias, que ele se faça consagrar rei de Israel, todo mundo crê em seu triunfo, mesmo seus inimigos. Jesus é, no Domingo de Ramos, inteiramente dono da situação, e podemos dizer que, a dois dias de sua morte, está, positivamente, a dois passos da vitória.

Judas sabe disso também. Ele olha e escuta. O que vê primeiro é um formigamento de homens e mulheres, uma massa fervorosa, frenética, transtornada de alegria, vida de todas as portas da grande cidade, pronta para a tomada da Torre Antonia - onde se encontrava o quartel romano - ao primeiro sinal de seu novo rei. O que Jesus escuta são cantos de entusiasmo, aclamações sem fim, mas também palavras, discursos carregados de sentido, como os que ele próprio proferiu ao fariseu que, misturado à multidão,lhe implorava que restabeleça a ordem entre seus discípulos: Digo-vos:se estes se calarem, clamarão as pedras!

Para Judas, não há dúvida possível: o sinal é dado. Aguerra de libertação é declarada, Jesus, eleito do Senhor, anunciado pelas Escrituras, vai enfim, lançar-se para a ação. Como Judas estaria errado? Como poderia não acreditar que a vitória de Ramos seria a última etapa ente a realização do objetivo final, ou seja, a libertação do povo escolhido por Deus? Como poderia estar enganado?

Contudo, Judas se engana. Jesus não tem armadura. É um homem com as mãos vazias, não é um combatente. É mesmo, o contrário de um homem da guerra. Esta batalha, ganha aos olhos de todos, Jesus fará tudo para perdê-la. E o que faz? Nada. Ou, faz assim:fala. Fala por duas horas intermináveis. em suma: Jesus esquiva-se. Poucos dias depois, ele dará a Pôncio Pilatos a famosa resposta que resumirá, e esclarecerá, esta derrota consentida:" Meu reino não é deste mundo." Por estas palavras, Jesus dá a prova que é o messias no sentido puramente espiritual, muito distante do messianismo material dos zelotes. Eis o que Judas não compreendeu. Mas quem teria compreendido? E os outros discípulos, eles compreenderam? E esta multidão excitada que logo se dissipou, murmurando sua decepção: ela compreendeu? Não, ninguém compreendeu. Nunca se insistiu o bastante sobre a ambiguidade dos atos e das palavras de Jesus.

Judas está, portanto, desorientado. Sua fé em Jesus é posta à prova. Já não pode acreditar nele: quem é este messias que se recusa a desencadear a Guerra Santa quando o povo entusiasmado está pronto para segui-lo,e logo falará da necessidade de comer a sua carne, de beber o seu sangue para conseguir a vida eterna? Judas procura compreender... Judas espera. De fato, ele não pode deixar de acreditar na vitória: tão perto de acontecer! É insano! Ele quer tirar a limpo. Assim, vai obrigar a Jesus a manifestar seu poder através de atos e justificar desta forma, perante o mundo, suas pretensões messiânicas. O abismo entre a fé e a pregação de Jesus é insuportável neste momento para Judas. Para ele, o dilema é simples: o Cristo está triunfante ou não.

Judas vai, portanto, colocar Jesus na parede. Vai forçá-lo a escolher entre a realeza através de seu poder de comandar e a morte que é o prêmio dos impostores. De onde a ideia de uma traição 'reveladora' da verdadeira natureza do Cristo. Aliás, essa conjectura não exclui que Judas tenha acreditado que Jesus era realmente o messias. Ao contrário, ao entregá-lo a seus inquisidores, o homem de Iscariotes está certo de que Jesus manifestará sua legitimidade messiânica.

O Cristo se revelará em toda a sua força e Israel será salva. A esperança de Judas é tão forte que ele está convencido de que, mesmo se Jesus for morto,ele ressuscitará no instante seguinte para reaparecer no céu flamejante à direita de seu Pai, como rei de Israel e do mundo.

TÃO PRÓXIMO DA VITÓRIA DE SEU POVO, JESUS RENUNCIA

Disse a si mesmo: onde está o risco? Aquele que ressuscita os mortos não é o mestre da vida? Esta teoria de um Judas cheio de fervor e que 'entrega' Jesus para empurrá-lo à ação,obrigando-o desta forma a atingir seu objetivo, foi desenvolvida por Goethe. A traição de Judas torna-se aqui uma forma de ato de fé. A tomada de consciência de seu erro, leva-o ao suicídio. Eis uma hipótese de fato digna de crença. Conduz a inocentar Judas que, desta forma, teria 'traído' sem intenção culpável.O ato de Judas não seria senão o resultado de um erro de interpretação dos ensinamentos - desconcertantes, é preciso confessar - do Nazareno.

Qualquer que tenha sido o grau de fé de Judas, no momento da 'passagem do ato', é estritamente impossível, tanto moralmente quanto penalmente condenar seu gesto. Pois é o gesto de um homem de sentido e verdade. Qual significado pode ter a fuga de Jesus aos olhos de Judas, aos seus olhos de zelote? Quem traiu neste momento? É trair forçar a se afirmar aquele que se diz o Salvador... no instante da vitória final? É traição tentar precipitar acontecimentos que os profetas,há séculos anunciaram? É traição querer obrigar o homem, que encarna a esperança de seu povo, a matar seus inimigos?

Para Judas a traição é a única forma de rasgar o véu. Não nos esqueçamos de que Judas é um sicário. Judas mantem-se fiel à libertação de Israel. A traição é uma espécie de prova, um pouco como este procedimento medieval de onde sair a verdade. A traição se inscreve em uma lógica radical: a este estado do combate messiânico, é preciso acelerar o final, isto é, passar à ação. O desfalecimento imprevisível de Jesus justifica a urgência de introduzi-lo à força no antro dos seus adversários para obrigá-lo a manifestar seu poder de líder sobrenatural. Se Jesus não pode fazê-lo sozinho, o exército celestial voará ao seu encontro e Javé, em sua glória, imporá ao mundo seu Messias.

De tudo isso, nada aconteceu. Jesus é sacrificado sem que a legião de anjos o tenha libertado de sua cruz. Judas constata seu erro. Eles se enganou, contra tudo que esperava,e de boa-fé. Este erro merece vinte séculos de punição?

Texto de Remy Bijaoui (tradução de Mariana Tachinardi Mizurini) publicado na revista "História Viva',edição de novembro de 2003. Digitação, adaptação e ilustração de Leopoldo Costa para ser postada. 



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