9.18.2015
RITUAL DA PALAVRA NOS CONGADOS
No universo narrativo dos congadeiros, Nossa Senhora do Rosário é a santa que preside a sua devoção e é para ela que o congadeiro canta e dança. A narrativa de aparecimento do resgate da imagem dessa divindade tece, metaforicamente, o enredo que organiza a estrutura dos reinos.
Uma das versões mais recorrentes em Minas nos conta que, no tempo da escravidão, os negros viram uma imagem da santa, vagando nas águas do mar. Os brancos a resgataram e entronizaram numa capela construída pelos escravos, mas na qual os negros não podiam entrar. Apesar dos hinos, preces e oferendas, no dia seguinte a imagem desaparecia do altar e voltava ao mar. Após várias tentativas frustradas de manter a santa na capela, os brancos rendem-se à insistência dos escravos e permitem que eles vão rezar para a imagem, à beira-mar. Uma guarda de Congo dirige-se, então, para a praia e, com seu ritmo saltitante, sua coreografia ligeira, suas cores vistosas, paramentos brilhantes e fitas coloridas, canta e dança para a divindade. A imagem movimenta-se nas águas, alça-se sobre o mar, mas não os acompanha. Vêm, então, os moçambiqueiros, pretos velhos, pobres, com vestes simples, pés descalços, que trazem seus três tambores sagrados, os candombes, feitos de madeira oca e revestidos por folhas de inhame e bananeira. Com seu canto grave e glutal, seu ritmo pausado e denso, as gungas, seus patangomes e sua fé telúrica, cativam a santa que, sentada no tambor maior, o Santana, acompanha-os devagar, sempre devagar.
Nas festividades, o terno ou guarda de Moçambique é o que produz as majestades, as coroas e os coroados, e o que representa o poder espiritual maior nos rituais reencenados anualmente, poder esse que emana dos tambores sagrados, guiando o rito comunitário.
Durante as celebrações, esse mito fundador é recriado e aludido nos cortejos, falas, cantos, danças e fabulações, em um enredo multifacetado, em cujo desenvolvimento o místico e o mítico e se hibridizam com outros temas e narrativas que recriam a história de travessias do negro africano e de seus descendentes brasileiros. Os protagonistas do evento são diversos, dependendo da região e tradição das comunidades. Em Minas, a diversidade de guarda engloba, dentre outros, Congos, Moçambiques, Marujos, Catopés, Candombes, Vilões e Caboclos.
Dentre todas, duas guardas, no entanto, destacam-se: o Congo e o Moçambique. Ambos os grupos vestem calças e camisas brancas. Os Congos, entretanto, além dos saiotes, geralmente de cor rosa ou azul, usam vistosos capacetes ornamentados por flores, espelhos e fitas coloridas. Movimentam-se em duas alas, no meio das quais postam-se os capitães, e performam coreografias de movimentos rápidos e saltitantes, às vezes de encenação bélica e rítimo acelerado. Cantam o grave e o dobrado e representam a vanguarda, os que iniciam os cortejos e abrem os caminhos, rompendo, com suas espadas e/ou longos bastões coloridos, os obstáculos. Um dos seus cantos traduz esse espírito guerreiro:
"Esse gunga é que não bambeia
Esse gunga é que não bambeia
Ô, que não bambeia
Ô, que não bambeia"
Já o Moçambique, senhor das coroas, recobre-se, geralmente, de saiotes azuis, branco ou rosa por sobre a roupa toda branca, turbantes nas cabeças, gungas nos tornozelos e utilizam tambores maiores, de sons mais surdos e graves. Dançam agrupados, sem nenhuma coreografia de passo marcado. Seu movimento é lento e de seus tambores ecoa um ritmo vibrante e sincopado. Os pés dos moçambiqueiros nunca se afastam muito da terra e sua dança, que vibra por todo o corpo, exprime-se, acentuadamente, nos ombros meio curvados e nos pés. Seus cantares acentuam, na enunciação lírica e rítmica, a pulsação de seus movimentos:
"Olé, vamos devagá
Olê, vamos devagá
Moçambiqueiro não pode corrê
Moçambiqueiro não pode corrê
Olé vamos devagá."
Todos os congadeiros trazem, além do terço, o rosário cruzado no peito, seu signo mais visualmente característico, coletivamente.
Os estandartes das guardas, os mastros, o cruzeiro no adro das capelas e igrejas do Rosário, os candombes, o rosário, dentre outros, são elementos sagrados no código ritual, investidos da força e energia que asseguram o cumprimento dos ritos. Assim, no Moçambique o bastão é o símbolo maior do comando .dos principais capitães e no Congo, o tamboril e/ou a espada cumprem a mesma função.
Durante as celebrações, os reis e as rainhas são os líderes do cerimonial, numa estrutura de poder embasada em posições hierárquicas rígidas. Atualmente, algumas comunidades apresentam um grande trono, composto por rei e rainha congos, reis perpétuos, rainha de Santa Efigênia, Rainha de N. S. das Mercês, rei de São Benedito, reis festeiros, além de príncipes e princesas. No passado, entretanto, apenas os pares de reis congos e reis festeiros eram comuns no Império dos congado. Com exceção dos reis festeiros, substituídos a cada ano, todas as demais majestades são vitalícias e de linhagem tradicional no Congado. Nessa hierarquia, destacam-se o rei congo e a rainha conga, as majestades mais importantes e as coroas mais veneradas. Enquanto os outros reis e rainhas representam N. S. do Rosário e outros santos do panteão católico, os reis congos simbolizam, além dessa representação, as nações negras africanas. Essa ascendência é traduzida pelo papel ímpar e singular que desempenham nos rituais e funções, e pelo poder com. que sua coroa e paramentos são investidos.
Assim, segundo João Lopes, capitão-mor da Irmandade de N. S. do Rosário do Jatobá, "outros reis e rainhas podem ser brancos, mas os reis congos devem ser negros". Dona Leonor Galdino, rainha conga dessa irmandade, assim define o poder investido na coroa dos reis: "A coroa representa poder, majestade, autoridade máxima". Um dos cantares celebra ludicamente esse poder superior:
"Lá na rua de baixo
Lá no fundo da horta
A polícia me prende
ô lê, lê
Sá rainha me solta."
Na tapeçaria de linguagem dos Congados, a palavra adquire uma ressonância singular, investindo e inscrevendo o sujeito que a manifesta ou a quem se dirige em um ciclo de expressão e poder. No circuito da tradição, que arquiva a palavra ancestral, e no da transmissão, que a reatualiza e movimenta no presente, a palavra é sopro, hálito, dicção, acontecimento e performance, metáfora do saber. Esse saber, por sua vez, se torna acontecimento não porque se cristalizou nos arquivos da memória, mas, principalmente, por ser reeditado na performance do cantador/narrador e na resposta coral. Combinatória e síntese de elementos "que transmite um poder de realização", a palavra proferida é investida de um poder de ação nas manifestações rituais de ascendência banto, muito similar à sua investidura nos rituais nagô, como afirma Juana Elbein dos Santos:"Se a palavra adquire tal poder de ação, é porque ela está impregnada de às e, pronunciada com o hálito-veículo existencial- com a saliva, a temperatura; é a palavra soprada, vivida, acompanhada das modulações, da carga emocional, da história pessoal e do poder daquele que a profere".
Ao contrário do texto escrito, que guarda a palavra, oferecida circunstancial e solitariamente a seu leitor, que com ela estabelece ou não vínculos de prazer, de saber e de reescritura, a palavra oral existe no momento de sua expressão, quando articula a sintaxe contígua, através da qual se realiza e fertiliza o parentesco entre os presentes, os antepassados e as divindades. Conforme a mesma autora, a transmissão oral "é uma técnica a serviço de um sistema dinâmico. A linguagem oral está indissoluvelmente ligada à dos gestos, expressões e distância corporal. Proferir uma palavra, uma fórmula, é acompanhá-la de gestos simbólicos apropriados ou pronunciá-la no decorrer de uma atividade ritual dada".
Paul Zumthor, reiterando esse agenciamento sígnico entre a voz e o gesto, acentua: "A palavra pronunciada não existe (como o faz a palavra escrita) num contexto puramente verbal:ela participa necessariamente de um processo mais amplo, operando sobre uma situação existencial que altera de algum modo e cuja totalidade engaja os corpos dos participantes. (...) Na fronteira entre dois domínios semióticos, o 'gestus' dá conta do fato de que uma atitude corporal encontra seu equivalente numa inflexão de voz, e vice-versa, continuamente".
Assim, nos Congados, cada situação e momento rituais exigem propriedade da linguagem, expressa nos cantares: há cantos de estrada, cantos para puxar bandeira, cantos para levantar mastro, cantos para saudar, cumprimentar, invocar, cantos para atravessar portas e encruzilhadas, e muitos outros. Em cada situação, o capitão deve saber o canto adequado para aquele lugar e momento, pois o sentido da palavra e seu poder de atuação dependem, em muito, da propriedade de sua execução. Ele deve saber o que cantar e em que circunstâncias se produzem a eficácia do canto, a vibração da voz e os movimentos gestuais necessários ao sentido. A performance é que engendra o sentido da linguagem e as possibilidades de significância e eficácia do ritual.
Esse modo de percepção e dimensão da linguagem na cultura religiosa afro-brasileira faz parte dos repertórios africanos transplantados para as Américas. Como afirma Hourantier, "na África tudo começa e tudo termina pela palavra e tudo dela procede", e é pela palavra ritual que se fertiliza o ciclo vital fenomenológico, consenso dinâmico entre o humano e o divino, os ancestrais, os vivos e os infantes, num circuito integrado de complementaridade, que assegura o próprio equilibrio cósmico e telúrico. Por isso, a palavra, como sopro, dicção, não apenas agencia o ritual, mas é, como linguagem, também ritual. E são os rituais de linguagem que encenam a palavra, espacial e atemporalmente, aglutinando o pretérito, o presente e o futuro, voz e ritmo, gesto e canto, de modo complementar. Oferecida "à posteridade como ideal cultural do grupo", a palavra proferida produz a eficácia do rito, pois "o medicamento verdadeiro advém da palavra, legada pelo ancestral".
Laura Padilha acentua a natureza numinosa da voz, e o poder aurático da palavra, na África: "O ato de dizer se fez, portanto, um gesto não gratuito na vasta territoriedade africana, adquirindo um especial matiz entre os sujeitos comunitários, pois tudo, durante séculos, emanou da palavra dita, já que só muito tardiamente a grande maioria dos naturais teve acesso à palavra. (...) Tudo dentro do espaço da vida comunitária africana se construiu/destruiu, por séculos, pela eficácia da voz que tanto re(in)staurava o passado, quanto impulsionava o presente, como anunciava o futuro, antes de e durante os séculos de dominação branco-europeia, quando a escrita não era um patrimônio cultural do grupo".
Para os congadeiros, essa linhagem da palavra vernacular dos antigos sábios das nações dos congados, reis, rainhas, capitães, permanece como signo de referência nos atos rituais, evocados como instâncias da sabedoria que fecundam a comunidade, ressoando nos cantares que os presentificam:
"Essa gunga é de mia pai
Essa gunga é de mia mãe
Essa gunga é de mia vó
Quando chega no rosário
Essa gunga é uma só."
Os festejos de Reinado celebram, em sua liturgia ritual, essa ascendência da memória ancestral, presentificada, pela performance, no tempo e também no espaço. Os cortejos, as visitas de coroas (que louvam seu detentor atual mas também seus antecessores), os círculos concêntricos ao redor dos mastros, do cruzeiro e da capela refazem os rastros legados pelos antepassados no circuito do sagrado:
" ... percorrer caminhos trilhados pelos ancestrais é reviver a força de comunicação com o mundo invisível, é participar do mistério dos que já se foram. Espaço visitado e tempo vivido são fontes de renascimento, de retomo à Unidade, desde que os antepassados deixaram a herança do experimentado".
Esse conjunto de conhecimentos é expresso em atos rituais, afrografias, que instituem a liturgia do Reinado. O saber dramatizado pelos congadeiros realiza-se potencialmente, no modo performático e ritual de sua transmissão, no qual a palavra proferida, legada pelo ancestral, vincula o indivíduo a uma matriz simbólica, que ele simultaneamente movimenta, atualiza, reifica e modifica, sempre de forma curvilínea e prospectiva, conforme dizia um mestre 'anganga muquiche' dos Congados, capitão Edson Tomaz dos Santos: "Festa de sinhá, Reinado de N. S. do Rosário, é coisa de herança, de avô passa pra pai, de pai passa pra filho, de filho fica para os outros filhos e netos". E é assim, pela letra da fala, por essa oralitura, que os congadeiros, há séculos, tecem em Minas a epifania de sua linguagem, num processo numinoso transmissor de uma arkhé, de um axé, de um lagos, enfim. Proçesso no qual o narrar cántado e dançado rompe as teias do oblívio, reinventando a história pelas pegadas tênues ou fundas da memória, como o revela um de seus mais poéticos cantares:
"Zum, zum, zum
Lá no meio do mar.
Zum, zum, zum
Lá no meio do mar.
É o canto da sereia
Que me faz entristecer
Parece que ela adivinha
O que vai acontecer.
Ajudai-me, rainha do mar
Ajudai-me, rainha do mar
Que manda na terra
Que manda no ar
Ajudai-me rainha do mar
Zum, zum, zum
Lá no meio do mar...
É o canto da sereia
E seus prantos muito mais
Naquele mar profundo
Adeus, Minas Gerais."
Texto de Leda Martins publicado no "Estado de Minas' de 25 de outubro de 1997, elaborado a partir do seu livro "Afrografias da Memória -O Reinado no Jatobá" Editora Perspectiva/Mazza Edições, 1997. Digitado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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