8.22.2017

VINHO E CULTURA - DOS LIVROS E DE SEUS AUTORES


O PRIMEIRO LIVRO DE VINHOS EM PORTUGUÊS

Já falamos em outras oportunidades sobre os primeiros livros de cozinha em língua portuguesa, bem como a bibliografia báquica brasileira, modesta, como vimos.

A quantidade de livros sobre vinhos editada em Portugal, entretanto, é copiosa. Afinal, o país é vinhateiro desde as origens, e, como muito bem lembrou recentemente Mário Soares, é a nação mais antiga da Europa, em suas fronteiras.

Se o primeiro livro de cozinha em português, o de Domingos Vieira, data de 1680, o primeiro especificamente sobre vinhos só apareceu em 1711, o Agricultura das Vinhas, de Vicêncio Alarte, pseudônimo de Sylvestre Gomes de Moraes, licenciado em Direito Cesáreo pela Universidade de Coimbra.

Gomes de Moraes, informa Diogo Barbosa Machado em sua Biblioteca Lusitana de 1752, nasceu em 1644 na vila de Torres Novas, filho de Laureano Gomes de Moraes, médico formado também em Coimbra, e morreu em Lisboa em 1723. Bem-dotado de espírito, foi advogado da Casa da Suplicação, procurador da Fazenda da Casa e Estado de Aveiro e das Mitras de Coimbra, Algarve e Baia. De sua extensa obra jurídica destaca-se o Tractatus de Executoribus Instrumentorum & Setentiarum, em três alentados tomos.

Foi também vinhateiro, enólogo e enófilo, um “agricultor de vinhas”, em suas próprias palavras.

A Agricultura das Vinhas é uma obra curiosíssima e uma ode ao vinho. Vicêncio Alarte, já em suas palavras dirigidas “Ao leytor”, mostra-nos seu estilo original e personalidade forte ao afirmar que não se dirige ao leitor “amigo”, “pio” ou “benévolo”, mas ao “inimigo”, “ímpio” e “maligno”, afirmando textualmente: “Não te quero dar conta do que digo no livro, porque, se o leres, acharás o que nele digo; se o quiseres ler, faze-o; se o não quiseres ler, não se me dá disso; e se o leres e te parecer bem, não quero que me louves; e se te parecer mal, faze outro melhor”.

Não tivemos ainda acesso à obra, mas apenas a alguns trechos transcritos por Luiz Costa, diretor das Caves São João, da Anadia, em sua exposição à Confraria dos Enófilos da Bairrada, em novembro de 1986, da qual tiramos estas notas.

Ainda assim, pode-se ter uma idéia bastante aproximada do delicioso livro, que mereceria logicamente ser reeditado, fac-similado e com ortografia atualizada, como vem sendo feito com tantos livros raros e importantes.

Vejamos bem sucintamente algumas passagens do livro de Vicêncio Alarte, editado há 276 anos:

“Porém a verdade é que esta planta a criou Deus no princípio do mundo como as mais árvores e se conservou sem cultura até Noé; que vendo quanto era necessário para o sustento humano foi o primeiro que plantou a vinha, e colheu o fruto dela, o que foi disposição divina para o remédio do gênero humano para que a virtude do vinho suprisse a qualidade e vigor que a terra tinha perdido com as águas do dilúvio.

E pelas virtudes que tem, se chama vitis, quase vita, porque o vinho restaura com facilidade os espíritos vitais dissipados, conforta, repara, aumenta, fortifica o calor natural debilitado que é o principal instrumento de vida. . . porque o vinho tomado com moderação conforta os corpos, alegra o coração, sara as enfermidades, dá bom nutrimento ao corpo, torna a saúde perdida, guarda o calor natural. Entre todas as bebidas e mantimentos é o mais confortativo em razão de familiaridade que tem com a natureza.

Alumia e afugenta os fumos tenebrosos que induzem tristeza, administra vigor a todos os membros do corpo, aguça o entendimento e o faz dócil para investigar as coisas difíceis. Faz animosos e atrevidos os homens para empreenderem coisas grandes”.

E por aí vai, usando o vinho para o “catarro”, para o “entupimento dos narizes”, para “conservar o cabelo da cabeça e o fazer negro”, “mezinha universal para todas as feridas e chagas”, “tira as névoas e catarros dos olhos”, etc., etc., etc.

Sem dúvida, parece que o Dr. Sylvestre exagera um pouco, mas tem toda a razão quando afirma que o vinho “recreia os sentidos, alegra o coração... se se tomar com o modo devido”, pois não há “coisa mais perniciosa se se exceder a temperança”.

Quase três séculos nos separam de Vicêncio Alarte, mas o prazer que nos traz sua leitura é grande.

Na condição de bibliófilo e enófilo, cabe-nos a obrigação de tentar uma reedição da obra junto a editores e apreciadores de vinhos e livros raros.

Queremos crer não seja ela impossível, em se dispondo do original, naturalmente, pois somos tantos os interessados, e como diz o próprio autor, “o uso do vinho convém a todos os homens, idades, tempos e regiões”.

O uso do livro também, com a vantagem que deste podemos abusar.

O VINHO E FREUD

Já tratamos algumas vezes da complexa personalidade atribuída pelos homens a Baco. O deus do vinho criado pelos antigos tem, mais que seus companheiros do Olimpo, aspectos humanos. Alegre e jovial em algumas passagens, é cruel e vingativo em outras, como na tragédia de Eurípedes, As Bacantes, em que enlouquece suas seguidoras, que despedaçam Penteu, rei de Tebas.

Mesmo seu aspecto físico varia. Gordo, baixinho, roliço e de fisionomia debochada em algumas estampas, encarna não os prazeres do vinho, mas as libações alcoólicas. Nos textos antigos, o filho de Zeus é jovem, esbelto, de cabelos espessos e rutilantes, de olhar expressivo, cheio de vivacidade, traços ausentes no mais aristocrata dos borrachos.

Nesse aspecto Baco, o Dioniso dos gregos, está mais ligado ao cultivo da videira, que fez conhecer aos homens, que ao consumo do vinho. Certamente foi elevado à condição de divindade pela imaginação milenar do homem, por ter ensinado aos mortais o culto da videira, planta sagrada desde tempos imemoriais.

No Velho Testamento, Adão cobriu os órgãos genitais com uma folha de parreira, quando teve a primeira noção do pecado. Embora este esteja simbolicamente ligado à maçã, a folha da parreira não bastaria ao propósito.

As citações se repetem: “Eu sou a videira, e meu pai é o viticultor” (São João, 15:1). Em Mateus (26:27), Jesus diz: “Em verdade vos digo que desta hora em diante não beberei mais deste fruto da videira até aquele dia em que o beberei de novo convosco no reino de meu Pai”.

Assim, beber o vinho, o sangue do Cristo, seria purificar-se, identificar-se com seu semelhante e com o próprio Cristo, e através do seu sacrifício, redimir a condição humana do “pecado original”, que na realidade não é tão original assim.

Também em Mateus, 26:27, lemos:

“Bebei dele todos, porque isto é o meu sangue, o sangue da nova aliança, que é derramado por muitos para a remissão dos pecados”. Foi esse mesmo vinho que entusiasmou e inspirou o homem
para a música, a dança, a pintura, a escultura, enfim, para a alegria de viver.

Perde-se, entretanto, na história do mundo a origem do uso e do abuso das bebidas fermentadas. Dioniso foi, talvez, o deus que mais influenciou o gênio e a raça helénica. As grandes dionísias celebradas em março constituíam um imponente cortejo, do qual faziam parte magistrados e sacerdotes, moças e crianças, seguidos pelo povo, que carregava vasos de vinho. No cortejo havia também um bode, para ser imolado a Dioniso. Esse ritual parece haver sido importado da Ásia, em tempos imemoriais. Os acompanhantes do cortejo cantavam e dançavam, recitando os “diálogos”, nos quais se enalteciam as façanhas dos deuses. Surge aí a peça teatral, a tragédia, de tragos (bode) e ode (canto).

Nietzsche analisa em profundidade esse aspecto, e Gastão Pereira da Silva, um dos primeiros divulgadores das ideias de Freud entre nós, vê na união do bode com o deus, na figura do sátiro, a aliança de Dioniso e Apoio e com eles a origem das orgias, das bacanais bárbaras e licenciosas da Antiguidade (Vícios de Imaginação, G. Pereira da Silva, Ed. Itatiaia, 1968).

Fica clara a ideia da embriaguez ligada ao deus, que, convivendo entre virgens formosas, embriagava-as em festins e orgias, para possuí-las. Pois não se uniu ele à própria Afrodite?

Sendo o bode inimigo das parreiras, pois as come e destrói, Dioniso seria o violentador das ninfas. Como último a surgir entre os deuses maiores, nele foram simbolizados todos os amores incestuosos do Olimpo.

Se Freud não o explica, seu discípulo Pereira da Silva, apoiado em Nietzsche, o faz, transfigurando Dioniso em sátiro, metade homem, metade bode, perseguidor incansável de ninfas não totalmente hostis aos seus desejos.

Da Antiguidade clássica às origens do cristianismo e aos nossos dias, chega-nos a lenda de Dioniso, deformada pela imaginação dos povos, transformando em arte o que era uma fusão de sensualidade, crueldade e misticismo.

A inteligência e a sabedoria helénica deram, através de Dioniso (e depois de Baco), o conhecimento, a origem e o significado dessas duas tendências em que se debate eternamente a condição humana, a alma e o corpo, Apoio e Dioniso.

E esse debate Freud, melhor que ninguém, explicou.

O VINHO NO “QUIXOTE”

Entre os grandes clássicos da literatura universal sempre nos atraiu o Quixote. Lido na juventude, como texto humorístico, o “Cavaleiro da Triste Figura” continua nos perseguindo.

Apesar dos grandes ensaios de Unamuno, de Salvador de Ma driaga, Ortega y Gasset, Menendez Pelayo, Clemencia, Bonilha, Pidal, Rubén Dario, Américo Castro, Morejón e tantos outros, a maior parte das facetas psicológicas do cavaleiro manchego e seu fiel escudeiro, Sancho, ainda hoje não nos parece esclarecida.

O incômodo, misto de humor e pena, que o Quixote nos causa talvez se deva a nos vermos nele refletidos. Possivelmente toda humanidade pode estar contida em Sancho-Quixote, em sua simplicidade camponesa e em seu desvario.

Não é, portanto, sem razão que se calcula em 2.500 as edições da obra, em todas as línguas e dialetos. O fidalgo, que já era obsoleto quando da publicação da obra, permanece vivo e atual por quase quatro séculos (a primeira parte é de 1605 e a segunda, de 1615), evidenciando a universalidade e o gênio de Cervantes.

Toda a sua obra e o Quixote em especial estão, como seria de esperar, embebidos em vinho. As referências a este, entretanto, nas andanças de Sancho e seu senhor, nos levariam a um frio índice de citações esparsas.

Preferimos, assim, lembrar uma única passagem, deliciosa para nós, a do encontro de Sancho com o escudeiro do cavaleiro do Bosque, na Parte II, capítulo XIII. Transcrevemos a tradução de Eugênio Amado, a nosso ver a mais fiel, correta e harmoniosa:

“Dizendo isso, pôs a botija nas mãos de Sancho, que, empinando-a grudada à boca, ficou contemplando as estrelas por um quarto de hora. Ao acabar de beber, deixou pender para um lado a cabeça e, com um grande suspiro, exclamou:

— Ah, filho da puta, velhaco, e como é católico!

— Está vendo — disse o do Bosque, ao ouvir o ‘filho da puta’ de Sancho — como louvou esse vinho, chamando-o de ‘filho da puta’?

— Confesso — respondeu Sancho — que agora sei não ser desonra chamar de ‘filho da puta’ a ninguém quando se tem a intenção de louvá-lo. Mas diga-me, Senhor, por tudo quanto é sagrado: este vinho é de Ciudad Real?

— Mas que conhecedor! — espantou-se o do Bosque. — Na verdade, não é de outra parte, e tem alguns anos de antiguidade.

— Diz a mim? — tornou Sancho. — Pois saiba que me bastaria uma provadinha, para chegar a conhecê-lo. Não será bom, Senhor Escudeiro, que tenha eu um instinto tão grande e tão natural nisso de conhecer vinhos, que, se me derem um a cheirar, logo lhe acerto a pátria, a linhagem, o sabor, a safra e as voltas que há de dar, com todas as circunstâncias inerentes ao vinho? Mas não há de que admirar-se, pois tive em minha linhagem, por parte de pai, os dois mais excelentes provadores de vinho que por longos anos conheceu a Mancha. Como prova disso, vou contar agora o que lhes sucedeu.

Deram aos dois a provar vinho de uma cuba, pedindo-lhes seu parecer sobre o estado, qualidade, bondade ou maldade do vinho. O primeiro provou-o com a ponta da língua; o outro nada mais fez do que chegá-lo ao nariz. O primeiro falou que o vinho sabia a ferro; o segundo disse que sabia antes a couro. Disse o dono que a cuba estava limpa, e o vinho não recebera mistura alguma devido à qual adquirisse travo de ferro ou de couro. Apesar disso, os dois famosos provadores mantiveram o que haviam dito. Passou-se o tempo, vendeu-se o vinho e, ao limpar-se a cuba, acharam nela uma pequena chave, pendente de uma correia feita de couro. Por aí verá Vossa Mercê se quem provém de tal raça pode ou não pode dar seu parecer em semelhantes causas.”

A mesma história e quase o mesmo diálogo vem repetido 250 anos depois entre dois monges do Kloster Eberbach, considerados os fundadores da confraria vinícola do mosteiro, no Rheingau alemão.

O episódio dos dois escudeiros é um dos muitos encontros do cavaleiro manchego com os vários vinhos do país, de Ciudad Real, “filhos da puta” e “católicos”.

Dentro de seu delírio, permanece a lucidez do Quixote, “o personagem mais sensato e construtivo da ficção moderna”, no dizer de Julio Garcia Morejón.

Não é, pois, simples acaso ou coincidência tenham sido o Quixote e Sancho sempre acompanhados pelo vinho.

GOETHE E O VINHO

Temos abordado com alguma freqüência o papel do vinho na vida e na obra de algumas personalidades como Horácio, Hipocrates, Shakespeare, Cervantes, Beethoven, Freud, Eça de Queiroz, etc., etc.

Com relação ao maior nome da literatura alemã, Goethe, referimo-nos a ele algumas vezes, principalmente a seus vinhos preferidos, os da Francônia.

Em sua correspondência de 24 de março de 1820, de Carlsbad, estação termal onde se recuperava, pede ao seu fornecedor de Schweinfurt “um barril de vinho da Francônia, o único que me agrada”.

Não sendo essa a única referência elogiosa do poeta aos vinhos dessa região, sempre tivemos como certa sua preferência por esses vinhos.

Há alguns anos, entretanto, recebemos de Erwin Rosenthal, companheiro antigo de copo, conhecedor de vinhos e germanista renomado, um rótulo onde, além das informações usuais sobre o vinho, consta um medalhão com o perfil de Goethe e a palavra Goethewein (vinho de Goethe), bem como a informação de ter sido aquele o Lieblingswein (o vinho predileto do poeta).

O vinho é produzido pelo barão von Brentano em Winkel, no Rheingau. De família ligada às artes e à literatura, D. Domenico chegou a Frankfurt no final do século XVII e seu bisneto, Franz von Brentano, já era vinhateiro em Winkel no início do século passado.

Levantada a dúvida sobre “o vinho de Goethe”, só poderia ser esclarecida na fonte. Não foi muito fácil o acesso ao barão, mas com amigos comuns marcou-se um encontro. Com data e horário rigidamente cumpridos, chegamos à Baron von Brentano’sche Gutsverwaltung, a cantina do barão, onde fomos cerimoniosamente recebidos.

Primeiro problema — que língua falaríamos. De pura maldade, propusemos português, o espanhol. .. mas ficamos no alemão mesmo. Foi-nos mostrada a mansão da família, a Brentanohaus, de dois séculos, um verdadeiro museu, onde ainda reside o proprietário e que foi freqüentada regularmente por Goethe no início do século passado.

Estranhou o barão tivéssemos conhecimento das razões das visitas assíduas do poeta, bem mais interessado nos favores de Bettina von Brentano que propriamente na amizade de seus irmãos Franz e Clemens, também poetas, ou em seus vinhos.

Valeria a pena aqui lembrar que Goethe, literalmente, nasceu e morreu com o vinho, o mesmo que o acompanhou e aqueceu por toda a vida. Ao nascer, em 28 de agosto de 1749, a criança foi dada como morta, quando foi banhada e friccionada em vinho aquecido, “voltando então à vida”. Quando de sua morte, em 22 de março de 1822, em seus últimos momentos reclamou que lhe “haviam colocado açúcar no vinho”.

A conversa se animou e a cerimônia desapareceu ao chegarmos à adega, tornando-se franca e amistosa ao degustarmos os vinhos. Foi quando indagamos diretamente a razão da denominação Goethewein (vinho de Goethe). A resposta não foi totalmente satisfatória: “Por serem vinhos provenientes dos mesmos vinhedos dos quais Goethe bebera em Winkel”. Contestamos então a alegada predileção do poeta por esses vinhos em relação aos da Francônia. A informação foi de que o poeta apreciara mais os Frankenwein até conhecer os de Winkel, dos Brentano, no Rheingau.

Tendo Goethe freqüentado os Brentano até 1815 (quando Bettina já se casara com Achim von Armin), e datando a referência aos vinhos da Francônia de 1820, a afirmação do barão não corresponde aos fatos.

Preferências à parte, os vinhos de von Brentano são excepcionais e a alusão do rótulo a Goethe, uma simples jogada de marketing, baseada no fato de que o poeta freqüentou os Brentano e desfrutou da intimidade da família e de seus vinhos.

A produção do barão é pequena, cerca de 80 mil garrafas anuais, distribuídas por cinco vinhos (em suas várias versões, segundo a época da colheita), um espumante brut, Goetheseckt de Riesling, e um destilado, Goethe-Geist (espírito de Goethe), também de uva Riesling, com 40°GL.

Com relação ainda ao papel do vinho na vida e obra do poeta, o tema é vasto, tendo merecido de Karl Christoffel um interessante estudo, “Der Wein in Goethes Leben und Dichtung” (O vinho na vida e na poesia de Goethe), onde informa que o poeta bebia de dois a três litros diários de vinho.

As obras em que mais se refere à sua bebida predileta são a tragédia Goetz von Berlinchingen, o Schenkbuch (o Livro da Taberna), Der West-Ostliche Diwan (o Divã Ocidental-Oriental) e muito especialmente Sankt Rochus Fest zu Bingen (a Festa de São Roque em Bingen), uma deliciosa descrição da festa do santo padroeiro das vinhas do Rheinhessen.

Esclarecida a dúvida sobre os vinhos preferidos de Goethe, fica-se com a nítida impressão de que também em relação ao vinho o poeta foi eclético, e certamente foi com pleno conhecimento de causa que afirmou:

“O vinho alegra o coração do homem e a alegria é a mãe de todas as virtudes”.

O VINHO EM RABELAIS

Das várias figuras da literatura universal por nós abordadas em cujas obras houve a participação do vinho — como Shakespeare, Cervantes, Horácio, Goethe, Eça, etc. —, em nenhum este se faz tão presente como na de Rabelais.

Vigário e médico, em combinação rara, François Rabelais (c. 1493-1553), figura destacada do Renascimento e humanista erudito, é, no dizer de Otto M. Carpeaux, “o autor do livro mais div' r- tido e mais indecente da literatura francesa”.

A vida, as aventuras e as andanças de Gargântua, Pantagruel e Panurge são narradas com comicidade, irreverência e sátira à elite, à burguesia, aos monges, aos teólogos, aos mestres da Sorbonne, enfim, à sociedade de seu tempo.

Em uma linguagem diferente, com neologismos e combinações inéditas de termos, geralmente ligados às funções naturais, ao sexo e à mesa, Rabelais como que cria um idioma próprio, só seu, no francês quinhentista.

Não é, portanto, de admirar que seus livros, lançados em plena crise religiosa, ao tempo de Calvino e Lutero, fossem condenados e o autor, perseguido.

Em Rabelais o riso e a espontaneidade vencem o medo e a hipocrisia, destacando-se nesse contexto a mesa, com especial relevo para os glutões e para os bêbados, identificados com o clero e com os poderosos da época.

A paixão e a alegria pelo bem comer e pelo bem beber fazem da epopéia heróico-cômica de Gargântua e Pantagruel uma obra sem similar.

Pregador da liberdade total, na mesa de Rabelais debate-se sobre tudo: a natureza das coisas, o amor, a união dos sexos, celebra-se Gáster (divindade dos glutões, gastrólatras, criada pelo autor), a interação do homem com o mundo, discutem-se os alimentos, os vinhos, encerrando-se o ágape sempre com a celebração e vitória dos sentidos.

Recentemente (1965) o russo Mikhail Bakhtin dedicou à obra de Rabelais um longo e primoroso ensaio, traduzido para o francês em 1970 e para o nosso idioma em 1987. Bakhtin analisa em profundidade, entre outros temas, as fontes em que Rabelais teria baseado sua obra e a imagem do banquete rabelaisiano, do berço de Pantagruel à busca da Dive Bouteille, a Divina Garrafa. Cita como possível inspiração a célebre Coena Cypriani, de origem incerta, datando de entre os séculos V e VIII.

A Coena seria para alguns um prolongamento paródico das homilias de Zenão, bispo de Verona. O bispo recolheu do Evangelho e da Bíblia, com muita liberdade e imaginação, as passagens ligadas à mesa, aos alimentos e ao vinho, como que numa antologia caricata.

Reunia todos os personagens do Antigo e do Novo Testamento, que se tornavam convivas de um imenso banquete, de Adão a Jesus Cristo. Confraternizam-se e excedem-se na mesa Adão, Eva, Noé, Caim, Abel, Abraão, Pilatos, Davi, Marta, Pedro, Herodíades, Moisés e tantos outros. A obra é um jogo de total liberdade entre os personagens, coisas, motivos e símbolos sagrados, irreverente mas não ateu.

O banquete teria a intenção de “rever” as Sagradas Escrituras e “libertar a palavra das cadeias da piedade e do temor divino”, tornando tudo acessível ao jogo e à história. É, assim, uma reunião de toda a história na pessoa de seus representantes, em volta da mesa.

Outra fonte rabelaisiana teria sido o chamado Tratado de Garcia de Toledo, do século XI, em que se descreve um banquete da Cúria romana, ininterrupto, onde os cardeais e os papas são torturados por uma sede inextinguível. Bebe-se por tudo — pela salvação das almas, pelos doentes, pelos sadios, pela colheita, pelos viajantes do mar, pelos viajantes terrestres, pela paz, etc., etc.

Homem culto que era, Rabelais certamente teve acesso a todos os conhecimentos e obras disponíveis em seu tempo, que evidentemente influenciaram sua obra.

No prólogo de Gargântua (Livro Primeiro), Rabelais recrimina os que o criticam por seus escritos “rescenderem mais a vinho que a azeite”, símbolo da seriedade piedosa da Quaresma, dizendo- se bem acompanhado por Homero, Ênio e Horácio.

Bem representativo de seu espírito é o final do “Quinto Livro de Pantagruel”, o último, em que ele narra a busca da Divina Garrafa. Após passarem pela ilha de Sonante (imagem de Roma), pelo país dos Gatos Forrados (homens da lei) e pelo reino da Enteléquia (a Sorbonne), encontram finalmente a Dive Bouteille, cujo segredo lhes é então revelado: “Bebam”.

Também a última palavra do livro e de toda a obra de Rabelais, após uma longa tirada irreverente de Panurge, seguindo o conselho da Divina Garrafa, é: “Bebamos”.

Sábio conselho, dado há mais de quatro séculos por um monge-médico, um homem culto, conhecedor do corpo e do espírito.

Parece que o conselho é válido e atual ainda hoje.

“SAÚDE!”

Desde que Jeová confundiu, em Senaar, os construtores da Torre de Babel, os homens não mais se entenderam.

A Academia Francesa calcula que existem atualmente no globo pelo menos 2.796 línguas e cerca de 7 a 8 mil dialetos, oriundos de 62 famílias lingüísticas, das quais a indo-européia (à qual pertencem o português e o inglês) é uma das mais importantes.

Em relação à dificuldade de comunicação, queremos crer seja a mesa a tribuna de maior aproximação entre os povos e nela, o vinho, o mais forte elo de entendimento.

Do simpósio grego, onde tão bem se bebia, ao comissatio romano, aos banquetes monásticos medievais, à mesa pantagruélica da Renascença e aos nossos dias, o vinho tem sido o principal responsável pela comunhão dos homens, e é possivelmente no brinde, na elevação dos copos, como na missa, que essa comunhão se estabelece.

O termo “brinde”, segundo Bloch-Wartburg (in J. P. Machado), deriva da expressão germânica “bring dir sie” (traga-a para si, beba); para Dauzat, viria o vinho da região de Brindisi, no sul da Itália.

Brinda-se em todas as línguas em que os homens bebem e procuram se confraternizar. Cada povo tem uma ou mais maneiras de fazer um brinde, com cerimônias e rituais diversos.

Entre nós é “Saúde!”. O inglês, além do conhecido “Cheers”, usa freqüentemente o “Toast”, que significa literalmente “torrado”. A expressão provém da velha tradição de se molhar o pão torrado ou a crosta do pão no vinho, antes do brinde. Desapareceu o uso, mas ficou a palavra.

Na Alemanha usa-se “Prosit!”, informal, principalmente para a cerveja, ou “Zum woh!”, mais cerimonioso, geralmente para o vinho, erguendo-se o copo antes e depois de beber. Entre os estudantes alemães, principalmente nas Verbindungen, grupos fechados de universitários, vigora ainda uma curiosa tradição, o beber “ex”. Beber “ex” é beber todo o copo de cerveja de um só gole, e o copo pode ter até um litro. . .

O holandês diz “Proostl”, o italiano “Salute!”, o russo “Nazdoróvia! ”, referindo-se à felicidade, ou “Za vasheh!”, à saúde. O gaélico usa “Slainte!”, viva, pronunciado “slón tché”, o hebraico “Leh hayim!”, à vida, e o grego “Is ihien!”, à saúde. Na Grécia dava-se ao brinde o nome de “filotesia”, com o significado de “amizade”.

Em hindi, a língua mais falada do mundo após o chinês e o inglês, saúda-se com “Aapki sehat!” e em indonésio com “Selemat minumi”, paz enquanto se bebe.

Em árabe, entre os que bebem, naturalmente, “Fi sahad tak! ” e em japonês, coreano e chinês é “Kan pei!”, significando copo vazio.

O “chin-chin” universal não é uma expressão onomatopaica, como pode parecer, mas chinesa. Chin é felicidade e a repetição da palavra para o chinês corresponde a “muito”, significando assim o “chin-chin”, muita felicidade.

Em espanhol, sabemos, usa-se “Salud!”, acompanhado ou não de “pesetas” ou “dinero”, de “mujeres” ou “amor y tiempo para disfrutarlos”.

O lituano diz “Svelkata!”, o letão “Uz vaselibu!’, o estoniano “Terve!l” e o finlandês “Maljanne!”

Uma das mais curiosas saudações de beber, por sua origem, significado e ritual é a usada na Escandinávia, o “Skol!”, pronunciado “skál”, após um pequeno discurso. Skol significa caveira, como o skull inglês, tendo o nosso termo “escalpelar” a mesma origem. A palavra advém do costume viking de beber cerveja nos crânios de seus inimigos, esvaziados e limpos, como se fossem canecas. Neles cabia uma boa quantidade de cerveja, e a reposição do “vasilhame” era fácil. . .

Na Escandinávia, em recepções, o anfitrião levantará seu copo tantas vezes quanto o número de convidados, saudando a todos. Bebe-se com os “olhos nos olhos”, mesmo à distância, e repete-se a saudação após o gole. Skál é mais que beber junto, é beber com amizade. Fazer skál com a namorada significa “eu penso em você”. . . É uma comunicação além das palavras.

Skol significa, na realidade, “viva”. Em meus longínquos tempos de Escandinávia, fui acompanhado por um primo, Gilberto Lanhoso, natural de Itatiba, mas sueco honorário, pois lá viveu muitos anos.

Gilberto sempre brindava: “Skál, min skál, din skál, alia vackra flickors skáll” ou “Viva eu, viva você e vivam todas as moças bonitas!”

Não faltavam moças bonitas, e tínhamos muita sede.

Os tempos passaram, tudo passou, construímos nossas vidas fora da Suécia, mas, felizmente, a sede permaneceu.

Skál, Gilberto!

Skál, leitor!, à sua saúde!

Texto de Sergio de Paula Santos em "Vinhos e Cultura". Melhoramentos, São Paulo, 1989, Excertos pp.161-174. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.


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