1.10.2018

DIMENSÕES DA VIDA FAMILIAR DOS IMIGRANTES NO BRASIL



A CASA

Buscando explorar algumas dimensões da vida familiar, tão valorizada, trato de abordá-la por meio da casa, lidando com tres fatores essenciais da convivência doméstica dos grupos imigrantes: a celebração religiosa, ou a festa que guarda conexão com as efemérides religiosas, a língua e a comida.

Convém lembrar que, ao me concentrar no mundo da casa, não o encaro como um universo desligado do mundo da rua; ao contrário, um dos aspectos mais significativos da vivência doméstica me parece ser aquele em que se dá a confluência dos dois mundos no interior do lar. Desse modo, o jornal, o rádio e, posteriormente, a televisão constituem veículos por meio dos quais mensagens de um amplo e variado universo penetram na esfera privada, impondo determinados hábitos e uma nova organização do espaço e do tempo. Lembro o exemplo de imigrantes, entre os quais figuravam não poucos analfabetos, que se reuniam para ouvir a leitura dos jornais de sua comunidade, sendo o caso mais expressivo o do Fanfulla, publicado em italiano, que chegou a ser um diário. Tais jornais, escritos na língua do imigrante, continham notícias do país de origem e principalmente matérias que diziam respeito à inserção do agrupamento étnico na vida da cidade. Eram, pois, um instrumento valioso no esforço da primeira geração para manter-se fiel às raízes e buscar transmiti-las a seus descendentes.

Por outro lado, devemos acentuar que os próprios elementos selecionados - religião, lingua e comida - não são veículos de um circuito doméstico fechado. Eles fazem parte da interação entre o mundo da casa e uma esfera de socialização mais ampla, incidindo com maior amplitude em um ou em outro, de acordo com sua natureza, as circunstâncias e o correr do tempo. Em regra, a religião constitui um fator que tende a demarcar fronteiras. enquanto a comida revela uma tendência oposta. Assim, nas regiões do Oeste paulista urbanizadas por imigrantes, em torno de núcleos como São José do Rio Preto e Catanduva, os chamados pratos e doces típicos representaram um elo de contato entre as famílias, graças à ação das mulheres. O hábito de oferecê-los às vizinhas possibilitou que o bacalhau, o quibe, a macarronada, bem como os pastéis de Santa Clara, os baklavas, os torrones, passassem a integrar, indiferentemente, a mesa de portugueses, sírios ou italianos.

A forma de organização da casa é, em si mesma, índice da concepção e da própria possibilidade de existência de uma vida privada. Philippe Aries descreve e analisa o longo processo pelo qual, no Ocidente da Europa, a "casa promíscua", em que os cômodos não constituíam espaços separados, deu lugar ao que ele chama de casa modema, propiciadora da discrição, da intimidade, do isolamento. É significativo observar como, no âmbito brasileiro, guardadas as diferenças, ocorreu processo semelhante. Nas palavras de Vainfas, rústicas ou requintadas, tudo parece indicar que as casas senhoriais de outrora ensejavam pouquíssimas condições de vivência privada. Se isso ocorria com as casas senhoriais, as dos pobres, pela precariedade das construções, impediam qualquer possibilidade de privatização.

A cidade de São Paulo, especificamente, caracterizou-se por um modo de vida marcado pela precariedade e rudeza até a chegada das primeiras levas de imigrantes, por volta da década iniciada em 1860. A pobreza da arquitetura paulista, no âmbito de um quadro de isolamento do planalto, foi realçada por Carlos Lemos, revelando condições que, se não impossibilitavam a constituição de uma vida privada, limitavam-na consideravelmente. Lemos lembra que essa arquitetura se repetiu à exaustão, desde o século XVI, chegando incólume ao período de ascenso do açúcar, em fins do século XVIII; depois, ataviada tardiamente à maneira pombalina, alcançou o café, na segunda metade do século seguinte. Ela se baseava na taipa de pilão, única técnica possível em uma região sem pedras e sem indústria de cal. Vale a pena reproduzir seus traços gerais, na descrição de Lemos.

"A vida cotidiana nas casas paulistanas logo anteriores à vinda dos imigrantes ainda apresentava o ranço colonial. Dentro das velhíssimas taipas, as familias circulavam na semi-obscuridade dos cómodos mal iluminados que a terra socada das paredes permitia, tendo como centro de confraternização geral a varanda. Essa varanda, quase sempre, era o cómodo mais arejado da casa, era onde todos ficavam, principalmente depois das refeições e muitas delas, em especial no interior, de clima quente, não passavam de um profundo alpendre todo aberto e contíguo à cozinha, olhando para o quintal, onde ficava a casinha ou secreta, onde se obrava em cima de um buraco que chamavam de sumidouro."

Por volta de 1860, ainda segundo Lemos, surgiram as primeiras novidades, inclusive nas construções e nos critérios de planejamento das casas. Imigrantes alemães foram pioneiros no uso de tijolos nas construções em geral, começando assim a superar a taipa de pilão.

Entretanto, a forma inicial de moradia do imigrante pobre, no período da imigração em massa, em cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo, era extremamente precária. A pobreza não permitia outra coisa senão viver em cortiço  - essa senzala urbana, na feliz expressão de Lemos. O cortiço permitiu utilizar terrenos de pouco valor, geralmente situados nas várzeas, que ficavam inundadas durante as chuvas de verão; adensou também a população trabalhadora perto de seus locais de trabalho, e foi um bom negócio para os empreendedores capitalistas que começavam a se expandir.

A promiscuidade reinante no interior dos cortiços impedia que o imigrante pobre, recém-chegado, estabelecesse uma esfera de vida privada. Entre as descrições existentes, seleciono um minucioso relato de um dos informantes de Castaldi, em que despontam a precariedade das condições de vida em geral, a extrema pobreza de certas pessoas e, ao mesmo tempo, a proximidade estratégica de alguns negócios:

"O cortiço em que morávamos era na rua do Carmo, entre a Ladeira do Carmo de um lado e o palácio do Bispo do outro. Os fundos do cortiço davam para a rua 25 de março onde, naquele tempo, se encontrava o mercado de verduras, de miúdos e de peixe. Dos dois lados da entrada principal, havia três negócios: à esquerda de quem entrava, um carpinteiro; à direita, a barbearia de um tio meu e, pegado, a cantina de outro tio. Da entrada partia um corredor para o qual davam alguns quartos; em cada quarto morava uma familia; o quarto era muitas vezes dividido por uma cortina que separava os homens das mulheres da família. O corredor levava a um quarto, o maior da casa, em que cada qual tinha o seu fogareiro e onde havia um lavatório de uso comum, tanto para a limpeza pessoal como para a cozinha As mulheres cozinhavam nesse aposento, mas cada família comia no seu próprio quarto. As condições higiênicas eram péssimas, usavam-se vasos cujo conteúdo era despejado num gabinete sanitário construído no quintal. Tomar um banho era difícil, porque todos tinham de se arrumar para tomá-lo no quarto. Os meninos usavam o quintal onde havia um tanque para lavar a roupa e um forno. As mulheres combinavam o dia de acender o forno, de modo a aproveitá-lo para fazer pão todas juntas [ ... ] Chegavam [os imigrantes] com a roupa do corpo, pois não possuíam outra bagagem. Alguns dormiam no chão, sobre jornais, outros investiam o pouco dinheiro que tinham na compra de uma cama. Às vezes, alguns dormiam até no quintal, protegendo-se da chuva como podiam.

Se fosse ainda necessário sublinhar a descrição, lembro que os processos criminais da época expressam também a inexistência de privacidade nessas habitações. Neles não faltam referencias a discussões ameaças, gritos que vêm dos quartos vizinhos, através das precárias paredes, ou, nos crimes sexuais, alusões a resistências, sussurros, entregas.

A casa, com características de espaço privado, tem sido associada à ascensão da burguesia e à sedimentação de seus valores, ao longo do século XIX. A historiadora Mchelle Perrot chama-a de "domínio privado por excelência, fundamento material da família e pilar da ordem social". Entretanto, com base nesse anseio socialmente localizado, alcançar a casa própria tornou -se um objetivo generalizado nas camadas pobres.

No cenário brasileiro, por meio da compra, o imigrante almejava escapar a uma vida promíscua, combinando em seu esforço, além disso, uma estratégia de segurança e de ascensão social. O objetivo era a tal ponto essencial, na visão do recém-chegado, que preteri-lo, trocando-o pelo consumo de bens conspícuos, representava um indicador de "falta de juízo': cujas conseqüências danosas surgiriam cedo ou tarde. O viajante Raffard, que visitou São Paulo em 1890, relata que o operário imigrante, morador em cortiço ou cômodo alugado em velho casarão abandonado por família importante, comprava a prestações um lote situado em arruamento popular, em zona fabril. Depois de pago, esse terreno era hipotecado, e com o dinheiro assirn obtido era construída a casa, própria, de três ou quatro cômodos: quarto, sala, "varanda, (sala de jantar e de estar íntimo) e cozinha. Mais tarde, depois de serem pagas as prestações desse empréstimo, era a casa, por sua vez, hipotecada, e com o capital obtido o imigrante estabelecia-se por conta própria e assim iniciava sua ascensão social.

A gente de classe média ou os pobres que em alguma medida se acomodaram, ao buscar um certo grau de privacidade, não deixaram de valorizar o contato com a vizinhança, como fonte de ajuda mútua e de informações. Cena típica dos bairros populares onde, ao cair da tarde, sentadas nas cadeiras postas na calçada, fugindo ao aperto das casas, as mulheres tricotavam, falavam da vida alheia, do tempo, das doenças, dos remédios infalíveis, de tal sorte que a socialização com os vizinhos ampliava os limites das relações interpessoais. Os homens, como um grupo separado, também tinham o hábito desse gênero de encontros. Veja-se este depoimento de um brasileiro, filho de imigrantes italianos, nascido em 1904, colhido por Ecléa Bosi: "[Os carroceiros calabreses] se reuniam na frente de casa, punham cadeiras na calçada e vinha um compadre, vinha outro e conversavam. Imagine a chegada de mais um compadre quando os outros já estavam sentados. Esse mais um cumprimentava: "Buona sera!" "Buona sera! Come va?" Ele trazia uma linguiça calabresa fininha na boca, dependurada, que ia mastigando, do outro lado um cachimbo de barro longo, com bambu. Tirava o cachimbo para responder: 'Bene!' 'Cosa hai fatto?' 'M'aggio fatto una vípeta d'acqua e sto benissímo.' Que quer dizer: tomei um copo d'água, quase 'aspirei, sorvi",.

Passando pelas construções de qualidade intermediária - a casa geminada, a iso]ada de ambos os lados, ostentando um jardim e um quintal nos fundos -, chegamos ao extremo oposto do cortiço, ou seja, o pa1acete mandado construir pelo imigrante enriquecido. Com freqüência, ele constitui um indicador de que o imigrante vitorioso, ao mesmo tempo que trata de imitar o estilo de vida da elite, não procura apagar sua condição de adventício, buscando, pelo contrário, recriar formas arquitetônicas que relembram sua origem.

Além de expressar o êxito económico de seu proprietário, o palacete combina a vida no interior do círculo familiar com outra dimensão, consistindo em um núcleo de prestigio e de proveitosos contatos com a elite. Caso tipico das mansões que as famílias sírias e libanesas mandaram construir junto a suas fábricas do bairro do Ipiranga. Entre elas, destaca-se o palacete de Basilio Jafet, edificado na década de 20, conhecido como Palacete do Cedro, alusão às árvores-símbolos do Líbano plantadas em um terreno de 7500 metros quadrados. Com seus 28 dormitórios, uma dúzia de banheiros de mármore italiano, salões decorados com lustres franceses, móveis do liceu de Artes e Ofícios e afrescos encomendados a artistas italianos, a mansão foi residência da família nuclear e centro de grandes recepções. lá estiveram, em 1954, o então governador de Minas Gerais, Juscelino Kubitschek, e o presidente do Líbano, Camille Chamoun. No dia 7 de setembro, as autoridades que participavam das celebrações do Dia da Independência costumavam comparecer a um almoço que a família lhes oferecia.

Se os Jafet ostentavam sua riqueza no velho bairro do Ipiranga, aproximando fábrica de palacete, os Matarazzo concentravam-se na Paulista, a avenida que constituía um dos maiores símbolos de prestígio e também de riqueza de São Paulo. Ficaram famosos os festejos comemorativos dos casamentos de duas filhas de Andrea Matarazzo, realizados na mesma data, em 1924, respectivamente com o sobrinho deste, Francisco Matarazzo II, e um príncipe italiano. A festa não se limitou a um recinto fechado, pois o cortejo nupcial desfilou ao longo da avenida. Vários anos mais tarde, em 1945, outro casamento realizado na família, dessa vez com um nacional da família Lage, foi festejado durante três dias e três noites, ostentando um luxo que deu origem a uma irônica reportagem do jornalista Joel Silveira 34

No palacete, nem tudo era ostentação. Nele, o imigrante que chegara pobre e enriquecera ia refinando a etiqueta, com os olhos postos no paulista de elite que, por seu turno, imitava o francês. A falta de "classe'' representava uma barreira, aliás logo superada, ao ingresso no mundo .dos chamados paulistas de quatrocentos anos. Descrevendo o palacete mandado construir pelo casal Moraes Barros e a vida requintada que se desenrolava no interior dele, a filha do casal pondera que as famílias imigrantes, mesmo as mais abastadas, não eram convidadas porque não saberiam como se portar. Os estrangeiros - diz ela - viviam restritos a suas «colônias"; ainda assim, lembra-se que brincava com as crianças das famílias Crespi, Matarazzo e Siciliano, as quais passaram a ter
'nunnies' como ela.

O emblemático dessa história é, mais do que qualquer outra coisa, o nome de quem dá o testemunho - a sra. Marina Moraes Barros Cosenza, ao que tudo indica casada com um 'meridionale', ou um descendente de 'meridionale', relacionado com a cidade calabresa de Cosenza.

FESTIVIDADES E RITUAIS RELIGIOSOS

Um aspecto importante da vida doméstica é representado pelos rituais e festas religiosas, ou alusivas à religião. Por causa da crença, estabelece-se, em alguns casos, um calendário que não segue o do país receptor. A diferenciação será tanto maior quanto a tradição religiosa do imigrante for diversa da majoritária no país, como ocorre com alemães protestantes, judeus, japoneses budistas ou xintoístas, sírios e libaneses ortodoxos, maronitas etc. Nos bairros étnicos, o ritmo de vida nem sempre acompanha o da cidade, caso típico dos sábados judaicos que esvaziam, ou melhor, esvaziavam as ruas comerciais do Bom Retiro.

Os rituais familiares associam-se também aos momentos decisivos da vida dos membros de uma família, conforme a etnia- o nascimento, a iniciação como integrante da comunidade, o casamento, a morte.

Tomando o exemplo dos judeus, devemos ressaltar que as festas judaicas ocorrem em dois planos: o da sinagoga - espaço de sociabilidade mais amplo - e o da casa, com uma forte ênfase no reforço dos laços familiares. Aliás, para os primeiros grupos de imigrantes judeus, que vieram ao Brasil em pequeno número- caso, por exemplo, dos sefaradis, provenientes da Turquia, que começaram a chegar a São Paulo nos anos 10 e 20 deste século  (século XX)-, a divisão de espaços só aconteceu em um segundo momento. Desse modo, para a celebração do shabat, poeticamente situado entre a primeira estrela da sexta-feira e a primeira do sábado, ou das festas do calendário israelita, os chamados "turquinos" reuniam-se na casa de um dos membros da comunidade, misto de vivência privada e de centro comunitário.

Sigamos os passos de alguns rituais judaicos mais associados à vida familiar, começando pela cerimônia de circuncisão, originalmente realizada em casa com a presença de um 'mohel' que é não só um especialista na pequena cirurgia como uma figura que faz as rezas pertinentes, à semelhança de um rabino. O ato ocorre em regra pela manhã, sendo marcado pelo afastamento da mãe- a quem o 'mohel' dirige previamente algumas palavras - e das outras mulheres. Terminada a circuncisão, o menino é entregue ao pai, ou a algum convidado de honra, procedendo o 'mohel' à bênção de uma taça de vinho e a uma segunda bênção louvando a Deus pela eleição do povo de Israel. Depois, na tradição asquenaze, serve-se um pesado café da manhã, composto de arenque, pão ázimo e vinho, entre outros pratos.

Outro ritual marcante, por simbolizar o ingresso na vida adulta e na comunidade, é o 'bar mitzva', reservado em princípio ao sexo masculino, quando os meninos chegam à idade de treze anos. Embora efetuado originalmente em uma sinagoga, caracteriza-se também por ser uma festa familiar, com muitos discursos, danças e abundante e variada comida. Na tradição asquenaze, surgem à mesa o 'gefilte fish', feito de carpa moída, os 'vareniques'- bolinhos de batata, cobertos com cebola queimada -, os 'blinis'- pãezinhos recheados de salmão ou caviar -, o peito de frango e, como bebida, a vodca. Na sobremesa, destacam-se os doces secos e as panquecas.

Entre as celebrações religiosas, destaquemos a de Pessach (Passagem), aproximadamente coincidente com a Semana Santa cristã, realizada para celebrar o Êxodo do Egito, rumo à Terra Prometida. Ela se desenrola, no âmbito doméstico, durante sete dias; seu ponto alto é o 'seder' (ordem), jantar que acontece na primeira noite de Pessach, reunindo a família e um ou mais de um membro avulso da comunidade, pois não se deve deixar uma pessoa só em uma noite dessas, como não se deve deixar um cristão solitário no Natal.

A toalha bordada da mesa do 'seder' passa de geração para geração, fazendo muitas vezes parte do "enxoval" que o imigrante judeu traz de sua terra de origem. Sobre ela, são colocados vários alimentos simbólicos: entre eles, doces feitos com uma base de 'matzá' - o pão ázimo que é de rigor na semana de Pessach; ovo cozido e um osso, lembrando o cordeiro pascal e os ofertórios da época em que existia o Templo de Jerusalém; uma vasilha contendo água salgada, para se mergulhar salsinha, alface ou rabanete, simbolizando as lágrimas dos judeus, derramadas durante o Êxodo; o 'haroset' (barro), um doce feito de pasta de amêndoas, maçãs e vinho, lembrando a argamassa que os judeus usavam nas construções do exílio, quando trabalhavam sob o chicote dos feitores. O 'seder' é permeado pelo propósito de levar ao conhecimento das crianças - futuras portadoras da tradição - o episódio da fuga dos judeus do Egito. Elas cantam hinos e canções, ao mesmo tempo que devem responder questões girando em tomo de um tema básico: "Por que esta noite é diferente das outras?"

Uma brincadeira envolve também a criança. Uma grande porção de pão ázimo é dividida em três pedaços, um deles representando a tribo sacerdotal dos Cohen, outra os Levy e uma terceira, o povo de Israel. O chefe da família senta-se sobre este último pedaço e as crianças tentam subtraí-lo; naturalmente, elas "conseguem, realizar a façanha e ganham prendas por sua habilidade".

Em paralelo com os judeus, familias japonesas - mesmo quando formalmente convertidas ao catolicismo- mantêm o culto doméstico dos antepassados, de acordo com a tradição xintoísta. Ele se materializa em um pequeno altar, formado de tabuletas de madeira, no qual são inscritos os nomes dos ascendentes da família. Em uma pequena cumbuca com areia, espeta-se o incenso, tão comum nas celebrações japonesas; em outro, coloca-se uma porção de arroz, a primeira colher retirada do arroz recém-preparado. Os antepassados não recebem apenas o arroz, mas os doces e as frutas mais bonitas, provocando a insatisfação das crianças que só podem comer os doces, já sem o mesmo sabor, no dia seguinte.

Também o cerimonial da morte tem um recorte familiar, realizando-se em casa, com a presença de um monge budista. Cada um dos presentes coloca incenso em uma cumbuca, não o indiano, a que o olfato ocidental está acostumado, mas um incenso de "cheiro forte': impregnando o ambiente. O morto recebe uma saudação especial das pessoas, que devem bater palmas por três vezes e fazer uma reverência diante do corpo. Após o enterro, uma lauta refeição encerra essa etapa do cerimonial fúnebre.

As famílias católicas costumam celebrar uma missa de sétimo dia, em contraste com a tradição budista. Segundo esta, o espírito vaga durante 48 dias, só se libertando da terra no 49º, ocasião em que se realiza um cerimonial doméstico, composto de longas rezas, a que se segue uma mesa farta.

Por outro lado, mesmo no caso de identidade religiosa em termos gerais, entre imigrantes e a população do país receptor, a veneração e a festa religiosa dos primeiros terá marcas próprias. Tomemos o exemplo do culto a são Vito, padroeiro dos imigrantes bareses oriundos de Polignano a Mare.

O culto tem profundas raízes na Itália meridional e na Sicília, tendo se iniciado em torno do ano 3 d. C. Em Polignano, o santo era celebrado com grandes festividades, em três datas dos meses de maio e junho. Como observa Castaldi, os longos séculos de intimidade que os polignaneses tinham com são Vito tornaram-no uma figura familiar em suas casas. Quando começaram a emigrar, muitos levaram consigo a imagem para que ela os defendesse das agruras da viagem, da desproteção na nova terra, das doenças e tantas outras aflições.

A veneração do santo em São Paulo, a partir dos primeiros decênios do século XX, narrada com riqueza de detalhes por Castaldi, é um belo exemplo do encontro de ritual doméstico com festa comunitária religiosa. Nos lares e nos cortiços, os polignaneses mantiveram o culto de são Vito, materializado em imagens simples ou mais refinadas, de acordo com a condição social de seus possuidores. O culto doméstico combinava-se com manifestações da comunidade, que aconteciam no mês de junho, por ocasião dos festejos em honra do santo, em que se expressavam também a relativa riqueza e o prestígio de certas famílias. Castaldi lembra o caso de uma família fundadora da companhia polignanesa de peixe, que armava um altar na sua casa da rua Tabatinguera, cantava os hinos a são Vito e, à noite, queimava fogos de artifício.

Mas, apesar dos esforços, a festa não se comparava com a organizada por outra família que dominava um cortiço da rua 25 de Março, sobre a qual há apenas essa alusão. Os mais pobres realizavam uma comemoração em um cortiço da rua Santa Rosa, esquina da rua do Gasómetro, que durante anos serviu de base aos recém-chegados: "No dia 15 de junho, improvisava-se um altar em que se colocava uma imagem de São Vito e ao qual os devotos levavam flores e velas. As mulheres preparavam as especialidades da sua aldeia, para oferecer às famílias que nessa ocasião lhes visitassem as casas. A tarde, formava-se uma procissão que percorria a rua Santa Rosa do começo ao fim; à noite, no cortiço iluminado por lanternas chinesas, queimavam-se fogos de artifício"

Com o correr dos anos, a festa se institucionalizou mediante a criação de comissões organizadoras; a Igreja do Brás converteu-se em ponto alto das comemorações e estas foram tomando cada vez mais caráter público, com o surgimento das missas em louvor a são Vito e a ênfase posta nas procissões e nas quermesses. É significativo ressaltar, porém, que ainda em torno de 1912-3 a imagem utilizada nas procissões não ficava permanentemente na Igreja do Brás. Objeto de culto doméstico de um membro da colônia, era emprestada à comunidade para as festas e, a seguir, devolvida a seu dono.

Mesmo uma festa cristã básica, como o Natal, pode conter, para o imigrante, notas típicas. Nos depoimentos develhos, obtidos por Ecléa Bosi, um filho de imigrantes italianos, nascido no bairro do Brás em 1906, acentua: "O dia que meus pais mais estimavam era o Natal, que se festejava à moda italiana. Era o dia em que na casa de italianos não faltava nada. A árvore de Natal e o presépio eram uma tradição de todos os anos. A ceia era na véspera e o almoço no dia. Ainda comemoramos, minha esposa, minha filha, meus netos, como quando eu era menino, no Natal de meus pais. Minha esposa faz os doces da tradição: a 'pezza dorci', ou peça doce, que é um panetone".

Uma festa familiar cara aos italianos era a Pascoela, espécie de suplemento da Páscoa, fe5tejada na segunda-feira, após o domingo pascal. Em regra, na São Paulo dos primeiros decênios do século, comemorava-se a Pascoela com um piquenique familiar na Cantareira, no Bosque da Saúde, espaços aprazíveis distantes do centro. Os retratos da época mostramas familias reunidas em torno da toalha branca, estendida sobre a grama ou sobre o mato ralo, na qual estão dispostos os pratos salgados, as garrafas de vinho e as sobremesas, destacando-se, entre elas, a 'pastiera di grano', que hoje pode ser adquirida nas confeitarias refinadas.

A LÍNGUA

A língua representou na vida do imigrante e de seus descendentes tanto um poderoso veículo de comunicação como um obstáculo aos contatos pessoais. A língua comum dos imigrantes portugueses em uma ponta, a dos árabes ou japoneses, em outra, facilitaram ou dificultaram enormemente o processo de integração no país receptor. Em suas memórias, o pintor e ensaísta Tomoo Handa refere-se às dificuldades dos japoneses de entender e falar português, a tal ponto que muitos tratavam de evitar penosos contatos com os brasileiros.

Há também - diga-se de passagem - todo um universo inexplorado de piadas engendradas nos tempos da imigração em massa, nas quais, ora são ridicularizados os problemas encontrados pelo imigrante no uso da língua, ora é ressaltada sua esperteza na utilização de uma aparente deficiência. Tais piadas são muitas vezes transposição do mundo real. É bastante conhecida, por exemplo, a frase dos feirantes japoneses ou mesmo nisseis, em resposta a freguesas que regateiam com maior insistência: ''No comprende".

A língua funciona também como forma consciente ou inconsciente de resistência à integração. É o caso, por exemplo, dos japoneses que se recusam a aprender o português admitidas todas as dificuldades de aprendizado e também de outras etnias, incluindo-se nesta referência até mesmo os italianos que chegaram ao Brasil nos últimos decênios do século XIX.

Como decorre dos romances escritos por japoneses e nisseis analisados por Célia Sakurai, o japonês- por imposição dos mais velhos - foi em regra a "língua oficial, no circulo doméstico. Para preservar a continuidade e a manutenção dos laços com o país de origem, os filhos começavam a estudar em casa, com o objetivo principal de dominar desde cedo a língua japonesa. Uma das personagens de um romance escrito por Hiroko Nakamura explica da seguinte forma as razões mais profundas da busca de conservação das raízes: "Os imigrantes japoneses tinham o compromisso de honra de só retornarem ao Japão como vencedores. Não podiam sequer pensar em levar seus filhos, nascidos aqui como gaijin. Era preciso que eles aprendessem a ler e a falar a língua japonesa. Esta era a maneira que eles encontravam de não terem seus filhos considerados como estrangeiros pelos japoneses, quando retomassem ao Japão".

É significativo observar, porém, que ao longo dos anos os japoneses foram reconhecendo a dificuldade, se não a impossibilidade, de retornar ao país de origem. Dessa percepção decorreu a tendência a "aculturar-se": por meio da conversão muitas vezes formal ao catolicismo, da escolha de nomes cristãos para os filhos, da preferência por padrinhos brasileiros. Convidados a participar da mesa dos japoneses, tais padrinhos talvez tenham sido os primeiros nacionais a provar e a estranhar os pratos da cozinha nipônica, e por fim a aderir a eles.

Por sua vez, os italianos, provenientes de uma Itália unificada em data relativamente recente (1870), falavam em regra o dialeto regional e conheciam muito pouco o idioma italiano. Na vinda para São Paulo, as marcas distintivas se desdobraram no falar o dialeto, falar italiano e falar português. A superação do dialeto pela língua do país unificado se fez no Brasil por meio da leitura da imprensa italiana local e do ensino ministrado pelas escolas que a comunidade fundou. Tal superação representou um indicador de ascenso social, mas provocou -sérios conflitos adaptativos, como sugere este testemunho obtido por Castaldi: "Em 1927, nosso pai alcançou o ápice da sua carreira de atacadista de cereais e nesse mesmo ano comprou um palacete perto da avenida Paulista. Na nova casa era proibido falar dialeto: 'todos: dizia meu pai, 'devem falar a língua de Dante'. Até seus velhos amigos que iam visitá-lo em casa deviam falar em italiano; no escritório, ao contrário, o dialeto era ainda permitido. Essa sua mania causou-lhe muitas inimizades e dentro de poucos anos encontrou-se isolado, tanto que, depois do casamento dos filhos (em geral com descendentes de italianos do norte, 'gente fina'), voltou a residir no Brás".

Notem-se, nesse depoimento, as marcas prestigiosas da mobilidade ascendente: a casa na avenida Paulista, o uso do italiano associado a uma grande figura literária, o casamento dos filhos de um bares com "gente fina': ou seja, os italianos do Norte. Ao mesmo tempo, há um indicio de "retorno às origens", por parte de um pai cujos filhos partiram do lar e que, em razão da língua e da ascensão social, se afastara de seu grupo. Regressar ao Brás significava retornar à referência básica, recusando o fausto e o isolamento que se impusera na avenida Paulista; significava também - é lícito sugerir- o retorno ao dialeto, agora revalorizado.

Do ponto de vista das relações entre língua e vida privada, é interessante observar alguns traços originais desse breve excerto. O esforço de ascensão social leva o pai do depoente a recusar, no interior do lar, o uso de sua língua íntima, utilizada entretanto em um espaço que denota outro tipo de intimidade: a intimidade dos amigos, transitando em um ambiente exclusivamente masculino, destinado aos negócios em primeiro lugar mas não só a eles, como é o caso do escritório.

No ambiente familiar, a língua constituiu uma fonte de estranheza entre as gerações ou, com outro sentido, de delimitação de fronteiras. O primeiro caso vincula-se à influência da instrução: ao aprender a norma culta do português, a segunda geração perceberá como seus pais e parentes falam mal a língua. Muitas vezes, diante de colegas e amigos, sentiam vergonha da fala mais ou menos estropiada de seus ascendentes, circunstância que geraria em muitos, anos mais tarde, um forte sentimento de culpa.

Para os pais, a língua de origem possibilitava a comunicação cifrada. Desse modo, ela servia de veículo para as conversas íntimas entre marido e mulher, longe do alcance de terceiros, especialmente das empregadas domésticas, no caso das famílias de classe média e alta, consistindo na língua do segredo, na feliz expressão de Castaldi. Ainda que os subalternos pudessem acender uma luz indicando anormalidade, tão logo a conversa estranha se iniciava, não podiam compreender o tema, versando sobre seus defeitos reais ou imaginários, sobre o orçamento doméstico, sobre negócios cujas cifras pareceriam assustadoras aos ouvidos de gente de poucos recursos.



A COMIDA

Em São Paulo, a cozinha étnica surgiu em contraste com um regime alimentar prévio pouco variado, por parte da população nacional; essa frugalidade compatibilizava-se, aliás, com a simplicidade da existência, como tratei de lembrar, falando da habitação. Como observa lemos, o passadio era simples, com cardápios de poucas variantes. Arroz, feijão, toda sorte de cozidos de carne herdados de Portugal e, principalmente, a paçoca e o cuscuz. A farinha de mandioca era fundamental, misturada no feijão, no prato ou já na panela de barro. Seria exagero atribuir apenas aos imigrantes a transformação dos itens dessa cozinha. A acumulação de riqueza, derivada essencialmente da expansão cafeeira, permitindo a multiplicação das viagens à Europa, a contratação de cozinheiros especializados, mudou os padrões alimentares da burguesia paulista, ela mesma em processo de constituição ao longo dessa mudança.

Os pratos italianos- as massas em particular -levaram algumas décadas para serem socializados, até transformar- se em itens triviais dos menus das casas de familia de qualquer etnia e dos restaurantes. É bem verdade que, já nos primeiros anos do século, as vendas de São Paulo ofereciam ingredientes da cozinha italiana, "montanhas de caixas de tomate siciliano e de massas napolitanas" como observou, em 1907, Gina Lombroso Ferrero. Na mesma época, hospedado em um hotel da cidade, o jornalista português Sousa Pinto notava: "Ao jantar, servem-nos minestra e risota - é a Itália, não há que ver, a Itália com arrol de açafrão e queijo ralado"

Mas, apesar dessas indicações, ainda na década de 40 era necessário ir a um bairro de imigrantes - o Brás ou a Mooca - para se comer um fusilli, um rigatoni, um cappelletti. Levou ainda mais tempo para se perceber que o que se chamava genericamente de "comida italiana' era na verdade comida meridional, muito diferente da do Norte da península. Também a comida síria e libanesa ficou confinada, por longos anos, nos restaurantes de aparência modesta e de lautos pratos da rua 25 de março e arredores, ou no interior das casas.

Nos lares dos imigrantes, outros pratos foram se integrando à cozinha étnica, por influência genérica do meio e das aptidões das cozinheiras em particular. Dou um exemplo extraído de minha história familiar. Os pratos de origem judaica sefaradi eram mesclados, em pequena escala, com arenques e pepinos acrescentados por meu pai, pertencente ao ramo asquenaze. Mas uns e outros não constituíam o trivial, composto de arroz, feijão, o prato de massa com tempero pesado de tomate e, algumas vezes, o torresmo e o tutu de feijão. A figura decisiva na combinação aparentemente inusitada desses pratos era a cozinheira de muitos anos, de ascendência ítalo-mineira.

De qualquer forma, a comida étnica representou, sobretudo nos primeiros tempos da imigração, uma ponte para a terra de origem, a manutenção de um paladar, assim como uma afirmação de identidade. ~1anter hábitos alimentares era relativamente fácil em uma cidade como São Paulo, mas o mesmo não acontecia no interior do estado. Handa faz um relato detalhado das dificuldades de seus patrícios, nas áreas de colonização, em que se mesclam aversões e tentativas de adaptação. Exemplificando, os japoneses começaram a participar, com muitas restrições, da matança de porcos, como forma de estreitar relações com gente de fora de seu círculo, porém na hora de comer ficavam enjoados, ao lembrar a matança do animal e o modo de limpá-lo. Por outro lado, como não encontravam peixe fresco, utilizavam bacalhau seco ao fogo, que achavam extremamente salgado, pois não o punham de molho. A minuciosa descrição de Handa refere-se também à dificuldade de lidar com os temperos da nova terra e à carência dos temperos apreciados pelos imigrantes; o shoyu -molho de soja hoje em dia corriqueiro em muitas casas paulistanas- era vendido apenas nas cidades e só começou a aparecer quando os japoneses foram se transferindo em maior número para os centros urbanos.

Um dos significados mais importantes da comida étnica é o de ser a materialização de um elo afetivo poderoso para as gerações de imigrantes, sobretudo ao ser perpetuada por mãos femininas. O caso mais conhecido é o da macarronada domingueira da 'mamma', reunindo a família dispersa, que, lamentavelmente, acabou sendo caricaturada pelos comerciais de televisão.

Apesar dessa e de outras incursões deformadoras, a comida será sempre lembrada pelos descendentes de imigrantes como um elo com o passado, com personagens queridos mortos - mães, avós, tias, que preparavam pratos especiais cujo segredo levaram consigo-, com um tempo sem retorno da infância na casa materna.

Até mesmo apreciações muito negativas da terra de origem podem ser surpreendentemente contraditadas pela via dos frutos e da comida. A mesma pessoa, antes citada, que afirma ter se sentido aliviada ao deixar a Polônia, por causa da discriminação contra os judeus, refere-se ao país de forma quase edênica, em outra passagem de seu depoimento: 'A gente se juntava, as famílias, no inverno. Fazia comida, a gente tinha vida. Não tinha doenças. Eu me lembro até hoje. Quando vinha o tempo do verão, as frutas. O tempo dos cogumelos, que cogumelos eu comia na Polônia. Outro dia minha filha trouxe cerejas. Experimentei uma. Eu ainda tenho o paladar na boca das cerejas da Polônia[ ... ] O pão de lá, que coisa louca! Pão preto, pão branco, pães doces e tortas. O que não se tinha lá! Sorvetes, quando vinha o verão. A gente tinha o paraíso ... ".

Na minha história pessoal, os pratos da comida sefaradi, servidos no dia-a-dia ou em momentos comemorativos excepcionais, foram sempre uma referência afetiva. De um lado, porque representavam uma atenção, uma prova de carinho para com os mais jovens da família, que os "velhos" tinham dificuldade em expressar de modo mais explícito; de outro, porque vinham cercados de uma referencia telúrica, da ''terra" de clima ameno e de mares calmos, que ficara encravada no âmago do Mediterrâneo.

Para propiciar o congraçamento nos domingos e reduzir as possibilidades de que este se convertesse em palco de atritos, minha família inaugurou ou reinaugurou, com grande êxito, um 'meze' - momento prévio à refeição principal. De pé, em torno da mesa do almoço, a família se servia de anchova, erva-doce, 'hummus', 'iaprak' (denominação em turco da folha de parreira enrolada, com recheio de carne), tudo deglutido com uns bons goles de sambuca.

Até que ponto setia possível recortar uma vida privada específica dos "velhos imigrantes" e seus descendentes, no tempo presente? Se os contornos do tema são imprecisos para um passado distante, essa imprecisão se transforma em uma quase-impossibilidade nos dias atuais. Os traços de uma vida privada específica foram sendo borrados, embora não eliminados de todo, pela integração das correntes imigratórias por diferentes vias que vão da ascensão social à socialização da comida e até mesmo dos rituais. Uma indicação menos óbvia desta última circunstância é a presença crescente de não-judeus em rituais do calendário hebraico, recebidos como amigos da casa, assim como a atração exercida por tais celebrações.

Devemos ainda levar em conta que, a partir dos anos 30, excetuando-se os primeiros anos da década com relação aos japoneses, a imigração para o Brasil perdeu muito de seu significado, não obstante a presença de novos contingentes de outras terras chegados principalmente a São Paulo, como os coreanos e gente de países limítrofes com o Brasil - caso dos bolivianos, paraguaios, argentinos etc. Mudou o eixo dos fluxos migratórios, concentrando-se o fenômeno nas migrações internas. Embora se trate de realidades diversas sob muitos aspectos, penso que os fluxos externos e os internos têm pontos comuns. Afinal de contas, cortes e continuidades, discriminação e preconceito, êxito, integração ou fracasso, integram a história de vida de muitos nordestinos que migraram para o Centro-Sul. Uma incursão no terreno comparativo não seria tentadora?

Texto de Boris Fausto/Emidio Luisi em "História da Vida Privada no Brasil",volume 4, "Contrastes da Intimidade Contemporânea", Companhia das Letras, São Paulo, 1998, excertos pp. 36-61. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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