O artigo examina como o acaso e o erro estão à raiz da descoberta de Chagas sobre a nova entidade mórbida que tomou seu nome. Do ponto de vista da epistemologia histórica, se faz uma reavaliação dos caminhos tomados pela pesquisa de Chagas, lançando dúvidas sobre a versão que se tornou oficial e concluindo que a lógica da história contradiz o direito da lógica.
Muito cedo os historiadores ligaram a nova doença [tripanossomíase] à descoberta dos flagelados em evolução no intestino do inseto [barbeiro]; no essencial, a descoberta parecia definir um novo mal, já que a este foi dado o nome de seu autor: doença de Chagas. As infecções experimentais, o estudo do ciclo genético do parasito, as observações clínicas e a revelação de uma nova entidade mórbida pareciam decorrências da descoberta: “E assim, do exame eventual do intestino posterior de um inseto, chegou Chagas, pelo encadeamento lógico de um sólido raciocínio indutivo, baseada na observação acurada e em experimentos rigorosos, à descoberta de uma doença humana” (Vilela, 1959, p. 49). A revelação de formas critidiais no inseto recebia o curioso privilégio de inaugurar um novo capítulo da patologia tropical. Graças ao poder da lógica apoiada na experiência, o tempo iria rapidamente colocar no fim do percurso o que estava contido no início.
Desde a década de 1940, repete-se a mesma explicação: Chagas descobriu uma nova entidade mórbida porque a pesquisa das doenças transmissíveis por vetores estava na ordem do dia; na virada do século XIX, a medicina tropical estava em pleno desenvolvimento; os trabalhos de Ross sobre malária tinham sido imediatamente seguidos pela elucidação do modo de propagação da febre amarela e da filariose; as descobertas de Ford, Dutton e Castellani sobre a doença do sono tinham sido confirmadas por Bruce, Nabarro e Kleine, que mostravam que a mosca era o verdadeiro hospedeiro intermediário.
Os historiadores lembram que Chagas estava bem familiarizado com tais enfermidades. Em particular, insistem no fato de que estava bem preparado por suas campanhas profiláticas contra a malária. Chagas, que também era o artífice da noção de infecção domiciliar, não podia deixar de vincular o percevejo doméstico à doença que tem seu nome: ”Não se pode negar que o íntimo conhecimento de Chagas a respeito da malária deve ter contribuído para a percepção intuitiva que teve da situação; e suas especulações ... sobre o barbeiro como transmissor da doença foram, sem dúvida alguma, inspiradas por seu conhecimento da transmissão da malária e do ciclo do desenvolvimento do plasmódio no mosquito e no homem” (Lewinsohn, 1981). À época em que o esclarecimento do modo de difusão de algumas importantes enfermidades modifica as figuras da morte, a corrida aos vetores se torna o momento mais claro nas figuras da verdade.
O saber se tece ali onde se formam estranhas alianças: um parasito, um vetor e uma doença. Bastava abrir os olhos para perceber tais manobras mortais.
Esta reconstituição é historicamente falsa. Vinte anos se passaram antes que os trabalhos pioneiros de Manson, Laveran, Finlay, Evans e Bruce dessem frutos. Não seria errado lembrar que nessa época dominava o esquema clássico, segundo o qual um parasito patogênico implicava um vetor e um hospedeiro definitivos; mas seria errado acreditar que bastava localizar um dos elos para que os outros se seguissem naturalmente. As pesquisas que levaram à elucidação da epidemiologia da malária e da doença do sono foram longas, trabalhosas e mobilizaram a comunidade científica internacional. Em vez de invocar um paradigma da pesquisa ou, ainda , uma série de modelos cuja aplicação permitiria facilmente esclarecer as descobertas da medicina tropical, é preciso destacar os obstáculos encontrados na elucidação dos ciclos dos parasitos.
Tais elementos obscuros são como ínfimos grãos de areia num mecanismo delicado, cujos efeitos de grimpagem mantiveram viva a atenção de mais de um pesquisador. O esclarecimento das vias graças às quais os seres vivos perseguem obstinadamente seu fim não é simples. Mas, por uma ilusão freqüente, a qual Vilela impôs a dimensão de um mito, a história até mesmo deu à epopéia brasileira a cor da medicina experimental: “Nem por muito narradas já, deixa de ser oportuno relembrar as principais etapas das pesquisas que o levaram, de degrau em degrau, a tão brilhante êxito, modelo de aplicação do método experimental, onde a indução lógica só ganha foros de verdade após o controle dos experimentos e observações” (Vilela, 1959, p. 49). Claude Bernard, embora tão distante da temática parasitológica, foi convocado a patrocinar um mito epistemológico.
Na história da medicina, tal ilusão tem um sentido preciso e funciona como justificação retrospectiva: se a pesquisa médica é apenas aplicação do método experimental, o médico brasileiro dominava seu trabalho do início ao fim. Aí está o ponto de erro e a razão que o fez ser cometido tão freqüentemente: desde o dia em que Chagas se encontrou na presença de um tripanossomo patôgenico, foi preciso convocar uma história transfigurada, onde a pesquisa do patológico, ao menos a título de exigência científica, precedia a observação, enfim positiva, de uma nova entidade mórbida.
A necessidade de conhecer a doença e seu agente etiológico já devia existir quando surgiu a preocupação de compreender as formas critidiais encontradas no intestino do percevejo. Em 1935, Marchoux escrevia: “Seu faro clínico, durante as visitas domiciliares, levou-o a notar em certos doentes sintomas que lhe pareciam impossíveis de relacionar a quaisquer das doenças comuns no Brasil. Por outro lado, sua atenção foi atraída para um inseto hematófago que pululava em alguns dos casebres onde seus deveres profissionais o levavam e que na região chamavam de barbeiros” (Marchoux,1934, p. 2).
Mais recentemente, Leonard repete ainda a mesma explicação: ”Para Chagas, que estava a par dos descobrimentos de vetores hematófagos e dos ciclos de transmissão das doenças e a que intrigavam certas enfermidades locais inexplicáveis, isto constituiu uma luz na escuridão” (Leonard,1991, p. 189). Assim, de todas as partes, imaginou-se uma cadeia de razões na qual o primeiro elo conduz Chagas inexoravelmente ao final. Daí essas narrativas teleológicas que baseiam o antes sobre o depois e invocam uma intuição originária de objetos já pertencentes a um complexo patogênico.
Do agente etiológico transportado pelo vetor à doença, não apenas se fecha um ciclo, mas a história gira em círculos.
Entretanto, a cronologia não é flexível: a descoberta de formas critidiais no percevejo foi inicialmente associada a um inofensivo flagelado do macaco. Além disso, a primeira linha de pesquisa seguida por Chagas era estranha ao campo médico. Por que a parasitologia teria de estar no mesmo plano da patologia humana? Foi ao querer elucidar o ciclo do Trypanosoma minasense, um parasito anódino, que teve lugar, de maneira imprevista, a descoberta de um parasito patogênico, o Trypanosoma cruzi.
Então, e só então, a pesquisa se bifurcou em uma nova direção e se orientou para o domínio do patológico. É preciso, em conseqüência, inverter a ordem dos fatores; foi bem mais tarde, quer dizer só após ter encontrado o tripanossomo patogênico, que Chagas aliou seus conhecimentos de parasitologista à sua competência de entomologista e de clínico para descobrir uma doença nova. Os historiadores, depois e a partir de Chagas, repetiram que a descoberta foi feita de modo contrário às descobertas habituais: ”O problema da tripanossomíase americana encontrou uma solução por um caminho inverso ao que se utiliza habitualmente.
Ao invés de partir do homem para procurar o modo de propagação do vírus, Chagas, por uma cadeia de engenhosas deduções, partiu do vírus para chegar ao homem” (Marchoux, op. cit., p. 4). Se isso é verdade, não se pode afirmar que a curiosidade de Chagas tenha sido despertada pela observação de uma patologia insólita, e é preciso dizer que a passagem do agente patogênico até o homem, longe de implicar qualquer dedução, foi instantânea. Se isso é verdade, uma questão permanece em suspenso: como Chagas foi conduzido, por assim dizer, a seu ponto de partida?
É preciso agora descrever a gênese da descoberta do parasito patogênico. A acreditar em Lewinshon, “a história da descoberta, única nos anais da medicina, já foi contada tantas vezes e é tão conhecida, que qualquer pessoa que tente repetir esta tarefa não pode ter qualquer aspiração à originalidade” (Lewinsohn, 1979, p. 523). Se a história consiste em fazer um comentário trivial das obras de Chagas, Lewinshon tem razão. Mas se a história consiste em descrever uma prática científica em seu devir, uma atividade na qual nada acontece de antemão, vale a pena aceitar o desafio. Eis a história de uma pesquisa que encontra seu projeto no desvio de sua primeira linha de pesquisa, é balizada por acidentes de percurso e marcada pelos jogos, inconfessáveis, do acaso e do erro.
Texto de François Delaporte publicado em "História, Ciências, Saúde: Manguinhos" Rio de Janeiro, Editora Fiocruz, vol.1, nº2, nov.1994 – fev.1995, pp. 39-42. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

No comments:
Post a Comment
Thanks for your comments...