2.02.2019

O CASAMENTO DE D. PEDRO I


Francisco I designara gentilmente o dia 13 de maio, aniversário de D. João VI, para a realização do casamento da filha. E enquanto, em Viena, ia uma lufa-lufa de preparativos, a notícia do ajuste, no Brasil, tinha uma repercurssão ruidosa. D. João comemorou-a com festas. Decretou gala na Corte. Deu beija-mão ao corpo diplomático. As fortalezas embandeiraram-se Salvas reais, repiques de sino, foguetório. À noite, no Teatro S. João, houve espetáculo de honra. El-Rei compareceu em pessoa. A multidão ovacionou com delírio a futura Princesa. Foi uma noite alegríssima.

Certo dia, por um paquete inglês chegado de Falmouth, desembarcou no Rio o Conde de Wrbna. Era o Mordomo-Mor do Imperador austríaco. Vinha especialmente de Viena, como mensageiro de Francisco I, trazer a D. João VI a notícia oficial de que se realizara, com grandes pompas, o casamento do Príncipe e da Arquiduquesa. E o Conde Wrbna contou, com minúcias, o que foram essas pompas. Que maravilha!

É o dia 13 de maio. Oito horas da noite. A capela do Palácio Imperial rebrilha. A corte austríaca, alvoroçada e sôfrega, acorreu garridamente à cerimônia retumbante. Há um forte dardejar de pedrarias. Branquejam decotes estonteantes. Ruge-ruge de sedas. Fuzilam insígnias nas casacas verdes. Muitas casacas verdes. O Senhor Marquês de Marialva, rodeado pelos nobres do seu séquito, atrai, como um foco, os olhares de toda a Corte. A suntuosidade do Embaixador estonteia. Ultrapassa tudo o que já se viu em Viena.

De repente, na Capela Imperial, soa uma trompa de ouro. O Reposteiro-Mor levanta a tapeçaria de veludo. Os cortesãos abrem alas respeitosas. O Imperador e a Imperatriz da Áustria entram. Trazem a noiva. D. Leopoldina vem toda de branco. Está deslumbradora! O seu vestido é um poema de rendas de Bruxelas. Faisca nele, orvalhando-o de luzes, uma pedraria imensa. Tomba-lhe da fronte, como uma cascata de espumas, a grinalda finíssima, apresilhada nos cabelos por fuzilante diadema de pedras brasileiras, mimo do noivo. A cauda tem cinco metros. Sustêm-na oito damas de honor. Todas em grande gala, fulgurantes, com enormes "balões" de seda rosa broslados de arminhos. É encantador! Ao lado da noiva, magnífico na sua casaca preta, luvas brancas, brilhantes chispando no peitilho rendado, vem o Arquiduque Carlos. Sua Alteza representa o noivo. E ambos, sob a música aristocrática de Haydn, debaixo de pétalas de rosas, que tombam num chuveiro, encaminham-se até ao altar. Então, no vasto silêncio que se fez, Sua Eminência, o Cardeal Camerlengo, assistido por quatro Bispos, realiza o casamento. A grandiosidade do ato eletriza a todos. O Imperador está comovidíssimo. A Imperatriz chora. Nessa noite, por entre júbilos fragorosos, Viena inteira iluminou-se. A cidade estrugiu debaixo da mais frenética atoarda de festa. E enquanto, nas ruas, o povo bramia de entusiasmo, lá dentro, no Palácio Imperial, festejando o acontecimento altíssimo, Francisco I, oferecia à Corte, na Sala dos Espelhos, o grande jantar de gala.

O BAILE DE MARIALVA

O Marquês de Marialva deu um baile em honra de sua Princesa. Foi um dos bailes mais culminantes da Europa. Acontecimento imorredouro nos fastos da diplomacia galante. Marialva arruinou-se com ele. Não se contentou em gastar as grossas ordens que vieram de D. João: dissipou nessa festa toda a herança que herdara do pai. O grande fidalgo, desde a sua chegada triunfal, aturde a Corte da Áustria, então a corte mais faustosa do mundo, com as suas esbanjadas magnificências de nababo. E com uma prodigalidade torrenciosa, novo Buckingham, o embaixador derrama às mãos cheias por todo o Paço, desde Metternich até o último dos camareiros, presentes de opulentissima suntuosidade, punhados de diamantes, soberbos fios de pérolas, pedras de toda cor, pilhas de barras de ouro.

Para o baile, esse baile nobre, gentilíssimo, em que empenhara com alma a sua reputação de homem mundano, Marialva cometeu loucuras incríveis. Verdadeiras fantasias de rei oriental! Mandou construir pavilhões riquíssimos nos jardins de Rugarten. Recheou-os de móveis italianos da Renascença. Decorou-os com tapeçarias velhíssimas, "gobelins" raros, assinados Lebrun. Cobriu-os de sedas e de damascos. Estrelejou-os de lustres de cristal. Inundou-os de quadros e de mármores. E, enfim, com aquelas grandezas de espantar, o gentil-homem abriu os seus salões para a. festa única. E recebeu, na noite memorável, a corte inteira de Viena. A Duquesa de São Carlos, embaixatriz de Espanha, mulher do célebre Duque de São Carlos, amigo íntimo do rei, fez as honras da casa.

Às nove horas, ao som do hino, entraram os Imperadores. Vieram com Suas Majestades todos os Arquiduques e todas as Arquiduquesas. Vieram também o Príncipe Real da Baviera e o Duque de Saxe. Metternich, com o fardão recamado de crachás, compareceu em grande gala. Os pavilhões borborinhavam. Trançavam por eles os nomes mais altos da Áustria. Rompeu o baile a Senhora D. Leopoldina. Sua Alteza dançou uma polonaise com o Senhor Marquês de Marialva. Os monarcas não dançaram. Mas, Suas Majestades felicitaram rasgadamente o Embaixador pelo deslumbramento da festa. Aquilo era um conto de fadas! Metternich dizia a todo momento, alto, derramando olhos tontos por aquele faiscar:
- Mas é uma festa das mil e uma noites! É uma festa das mil e uma noites!

As onze horas, serviu-se a ceia. Marialva sentou-se com os Imperadores à mesa da família real. Havia quarenta talheres. E toda a baixela desse serviço, gravada com as armas dos Marialvas, era de ouro maciço. Os demais convivas espalharam-se em pequenas mesas. Foram todos - e eram mais de mil! - servidos em baixelas de prata. Os Imperadores retiraram-se às duas. O baile continuou até ao amanhecer. Custou, nesses velhos tempos, mais de um milhão de florins! E Marialva, num gest muito seu, ofereceu no dia seguinte, aos pobres de Viena, os pavilhões com todas as maravilhas que lá havia. Não retirou deles uma única alfaia.

A PARTIDA

Dias após, dentro dum coche dourado, partia D. Leopoldina para Liorne, onde a aguardavam as naus de D. João VI. Em Florença, à espera de Sua Alteza, chegara o Marquês de Castelo-Melhor, vindo especialmente do Brasil para receber a noiva. Também já lá estavam o Príncipe de Metternich e o Marquês de Marialva. O Grão-Duque de Toscana, cunhado de D. Leopoldina, recebeu-a com grandes brilhos. Hospedou-a no Palácio Pitti. E nessa mesma noite, no salão nobre do velho Palácio, o Grão-Duque reuniu a Corte numa solenidade de gala. E aí, com muitos ritos, entregou protocolarmente a Arquiduquesa, em nome de Francisco I, ao Marquês de Castelo-Melhor, o enviado de João VI.

A comitiva, luzida e bela, partiu na manhã seguinte para Liorne. No porto, muito airosa, ancorava nau "D. João VI" que devia conduzir Sua Alteza ao Brasil. D. Leopoldina embarcou. Acompanhavam-na o Marquês de Castelo Melhor, o Conde de Louzâ e o Conde Penafiel. A princesa escolheu como camareiras, para servirem-na, a Condessa de Huembourg, a Condessa de Berentheim, a Condessa de Londron, todas damas da Corte austríaca. Comboiava a nau "D. João VI" uma corveta de guerra. Era a "São Sebastião". Vinha nela o Conde de Eitzi, como Embaixador Extraordinário de Francisco I, escudando a Princesa até a América.

Assim, na Aústria, realizou-se um dos mais estrondosos casamentos que já viu o mundo. Mas, o brilho espaventoso das festas não se apagou em Viena. Repercutiu também no Brasil. Que é que fez a Corte do Rio para receber a mulher do Príncipe herdeiro?

A CHEGADA

Do Arsenal de Marinha, vistosamente embandeirado, parte a galeota do rei. Vai nela a Família Real. D. João VI viera com o fato novo de pano inglês e a grossa bengala de castão de ouro. D. Carlota pusera o vestido rodado, cor de pérola, e o seu famoso trepa-moleque de safiras. D. Pedro embarcara, fremindo. Os seus olhos fuzilavam. O coração batia-lhe aos saltos.

E a galeota, com seus bigodões de espuma, fura a ondada mole, rumo dos barcos que entram. Estaca. Na nau "D. João VI", com os seus uniformes de veludo e prata, os marinheiros estendem-se em continência. Tomba a escadinha de bordo. Rompe o hino. E D. Leopoldina, varando a ponte, surge ante os olhos da Família Real. Sua Alteza vem acompanhada pelo Marquês de Castelo-Melhor. Desce com majestade do tombadilho. Salta airosamente para dentro da galeota E ali, na baia azul, sob o céu brasileiro, D. Leopoldina precipita-se aos pés dos soberanos. D. João ergue-a carinhosamente. Beija-a na testa:
- Minha filha!

D. Carlota toma-a nos braços. Aperta-a. Beija-a longamente. Depois... Depois é o momento curioso. Nada mais galante. D. João, com um gesto, apresenta D. Leopoldina a D. Pedro:
- Minha princesa, eis ai o teu príncipe!

Os dois fitam-se. Sorriem. E na galeota, - sob a curiosidade brejeira dos tripulantes, o príncipe e a princesa beijam-se na face. D. Pedro é moço formoso. Com os seus dezoito. anos, sadio e desempenado, com o seu moreno tropical, os seus olhos negros e enormes, o príncipe é um galhardo tipo de homem, um mancebo varo nu e sedutor. D. Leopoldina devora-o com os olhos. Toda ela ri! E afagando a mão do noivo, com ternura:
- Mein liebling!
E D. Pedro, radiante, num enlevo:
- Minha princesa!

Na galeota, com grandes ansiedades, esvoaçam logo as perguntas. E a travessia? E a saúde? E a nau? D. Leopoldina responde. E sorri. E papagueia. Sua Alteza fala em francês. Às vezes por mera caçoada, tenta um português cômico;
- "Prrazil mui linda! Mui linda"!

E aponta as montanhas, a baía crespa, o céu, todas as embebedantes maravilhas do Rio. Durante meia hora, foi um grulhar amistoso. A galeota encheu-se dum alvoroço quente. Uma alegria! E assim, dadas as boas-vindas, combinou-se o desembarque para o dia seguinte. D. João marcou a hora. E D. Leopoldina ergueu-se. Beijou a el-Rei. Tornou para a nau. D. Carlota e D. Pedro acompanharam-na até ao tombadilho.

OS ENFEITES E OS ARCOS

D. João alindou a sua cidadezinha com atavios de gala. Enfeitou tudo com garridices vistosas. O pobre Rei timbrou em receber a nora com luzimentos únicos. No cais, em frente ao Arsenal de Marinha fez construir uma vasta ponte de madeira que avançava pelo mar. A princesa poderia desembarcar ali com mais comodidade. Alcatifou-se a ponte com tapetes caríssimos. Cobriram-se os corrimãos de panos de Arrás. Ergueu-se, logo à entrada, um pavilhão soberbo, muito berrante, onde se viam, em cores fortes, as armas de Portugal e da Áustria. Quatro águias enormes seguravam nos bicos festões de folhagem que tombavam baloiçantes. Por toda parte, onde devia passar o séquito, houve um esbanjar de aprestos. Areia branca, folhas esparzidas, pétalas de rosa por todo o chão. Os monges de S. Bento alegraram de sedas ruidosas as fachadas do seu mosteiro.

Não houve casa, no itinerário, que não se enfaceirasse. Eram colchas da Índia, tapeçarias nas varandas, cortinas, veludos colgados à parede. Um esplendor! Na Rua Direita, deslumbrando, ergueram-se três arcos. Foram a grande maravilha decorativa. A maior suntuosidade dos festejos. Os jornais falaram deles com louvores rasgados. Um, o "Arco Romano", era oferecido pelo Comércio. Fora concebido e realizado por Grandjean de Montigny e por Debret, os dois grandes artistas que o Conde da Barca mandara vir da França. Era um arco magnífico, com cinqüenta palmos de altura, sustentado por oito colunas dóricas. tendo no pedestal os símbolos do Rio de Janeiro e do Danúbio. Um trazia as quinas e castelos de Portugal; outro, as águias imperiais. Sobre cada um a legenda: "Januarius" - "Danubius". Havia baixos-relevos de grande efeito. Dum lado, a Europa e a Fama: uma tocava a trombeta; outra depositava sobre um altar as iniciais em ouro dos noivos: P. L. Por baixo, também em ouro, fulgia a inscrição típica: "À feliz união, o Comércio".

Mais além, na esquina da Rua do Sabão, o segundo arco. Era tão alto como o de Montigny. Fora risco de Luís Xavier Pereira, maquinista do Real Teatro. Destacava-se nele, lá acima, a figura do Himeneu, circundada pelas figuras da Glória e da Fama. No meio, um medalhão; e no medalhão, em relevo, os retratos de D. Pedro e D. Leopoldina.

No pedestal, em alegorias coloridíssimas, a Europa, a Ásia, a África, e a América. Enfim, em frente à Igreja da Cruz, o último arco. Era um "Triunfo romano". Oito estandartes fincados em terra recobertos de grinaldas e flores. Palmas por toda parte. Em vez da águia romana, a águia austríaca de duas cabeças. Em vez do busto dum general conquistador, o busto em bronze da princesa. Em vez do nome de batalhas ganhas, o rol das virtudes e graças de D. Leopoldina: "Bondade" - "Amabilidade" - "Doçura" -"Sensibilidade" - "Beneficência" - "Constância" - "Espírito" - "Talento" - "Ciência" -"Encantos" - "Graça" - "Modéstia".

O DESEMBARQUE

Onze horas. Dia glorioso. Um sol de ouro redourando tudo. Do Paço da Cidade, aos sons de caixas e de clarins, D. Carlota Joaquina toca para o cais em grande estado. No cais, já na galeota real, D. João VI espera a Rainha e as Princesas. Sua Majestade viera por mar da Quinta da Boa Vista. E a galeota, sem mais tardança, zarpa rumo da nau "D. João VI". Centenas de escaleres engaivotam o mar. Toda a corte parte na espumarada de el-Rei. É um belo torvelinho de damas e de titulares. Balões de seda rosa e casacas de riço em verde. E tudo alegre, fascinante! O cais embandeirado, as naus embandeiradas, os escaleres embandeirados. E salvas nas fortalezas, e repiques de sino, e estrondo de morteiros, e rojões, e músicas atroando os ares. Lindo! A galeota fundeia. Os marinheiros, no tombadilho, fazem continência em honra do Rei. E logo, conduzida pelo braço cortesão do Marquês de Castelo-Melhor, D. Leopoldina desce a escadinha de bordo. E desce encantadora, garridíssima. O mesmo vestido branco de rendas de Bruxelas. O mesmo diadema de pedras. A mesma grinalda tombando-lhe, como uma cascata de espumas. Acompanham-na o Conde de Penafiel e o Conde de Louzã, veadores de Sua Alteza. Depois, em vastos decotes, as Damas austríacas que acompanharam a Sua Alteza. E D. Leopoldina entra na galeota. Os reis recebem-na com efusão. Beijam-na na testa. O Príncipe beija-a na face. As Princesas beijam-na.

D. João, nesse instante, abre uma caixa de xarâo que o guarda-jóias trouxera. Toma dum colar de pérolas. É magnífico. Tem quatrocentas pérolas. E cavalheiresco, todo num sorriso, enrodilha-o no pescoço da nora. D. Carlota, por sua vez, enroda-lhe nos braços duas pulseiras de safiras imensas. São safiras incomparáveis, as maiores do Brasil. D. Miguel oferece-lhe uma afogadeira de rubis. D. Maria Teresa um trepa-moleque de brilhantes. D. Maria Francisca uma colossal borboleta cravejada. Todas as infantas trazem o seu mimo. É uma profusâo de riquezas. D. Leopoldina a cada jóia, sorri encantada:
- Oh! oh!

D. Pedro enfia-lhe no dedo um anel opulentissimo. Há nele uma pedra de dez quilates, azul-querosene. Depois, galantemente, adorna-lhe os cabelos com um diadema de pedrarias. E entrega-lhe, enfim, uma caixa de ouro muito lavrada. D. João, vendo a Princesa abrir a caixa explica modestamente:

- Estão ai dentro, minha filha, os frutos da terra. Este é o país dos diamantes. A caixa estava atulhada de diamantes brasileiros.

O veador de el-Rei, nesse instante, faz um sinal ao mestre da galeota. Os marinheiros, a um só tempo, batem os remos na água. A embarcação voa. E uns instantes depois, debaixo dum sol de ouro, sob a alegria frenética dos campanários, D. Leopoldina pisa a terra do Brasil.

Um séquito único, brilhantíssimo, como nunca mais se viu no Brasil, acompanhou os noivos até à Capela Real. Não o descreva eu, para não me acoimarem de imaginativo. Descreva-o esse tão saboroso cronista, o Padre Luís Gonçalves dos Santos, testemunha presencial da festa. Lá diz o padre nas suas "Memórias":

O SÉQUITO

"Vinha adiante uma partida de Batedores. Seguião-se quatro Moços a cavallo, e os Azemeis cobertos de veludos carmezim. Logo depois os Timbaleiros com atabales. Todos a cavalo, agaloados de ouro, coletes azues agaloados de prata. Seguião-se immediatamente oito Porteiros da Cana. Os dois dianteiros com canas, os mais com maças de prata ao hombro. Vinhão vestidos de casacas pretas com capas da mesma côr. E tudo era de seda. Atraz delles, vinhão os Reis d'Armas, Arautos, e Passavantes, vestidos com armaduras de seda ricamente bordadas. Marchava em um soberbo cavallo o Corregedor do Crime da Côrte. Trazia a beca, a vara alçada, o chapéo de plumas na mão. Acompanhavão-no dous Criados da Casa Real a pé. Após do Corregedor seguindo-se noventa e tres carruagens, todas de quatro rodas, puxadas a dous e a quatro. As primeiras conduziam os do Conselho d'Estado, as últimas os Bispos e Grandes do Reino. Levava cada huma dous Criados á portinhola, muito bem fardados, segundo a variedade das librés dos seus Amos, trazendo todos plumas brancas nos chapeos, que levavão nas mãos. Esta extensa fila de carroagens, todas mui aceadas, e ricas, puxadas por soberbos machos enfeitados com plumas e fitas, por longo espaço de tempo entreteve com prazer os espectadores pela sua brilhante vista. Mas o que era Estado da Casa Real, isto sim, surpreendia pela sua grandeza e magnificencia. Estadeou-se nesta Côrte pela primeira vez, com todo o esplendor. Vinhão tres coches da Casa Real. O primeiro levava os Guarda-Roupas; e os outros os Estribeiros Móres, os Mordomos Móres, o Camarista, os Viadores. Cada hum destes coches era puchado a seis, acompanhados de quatro Criados a pé. O que occupava o ultimo lugar tinha mais dous Moços da Estribeira ao lado das portinholas. Seguia-se o Tenente da Guarda Real e o Estribeiro Menor, ambos a cavallo, cada hum assistido de dous criados a pé.

Via-se então o coche de el-Rei. Era forrado de veludo carmezim. Este a todos sobrepujava em riqueza e magnificencia. Era tirado por oito formosissimos cavallos com areios de veludo e ouro. De cada lado tinha huma ala de Moços da Camara a pé, e descobertos. Pela parte de fóra destes, hião os Archeiros com as suas alabardas; e mais por fora ainda, quatro Moços de Estribeira ricamente fardados. Ao pé do Real coche, de cada lado, hião a cavallo dous Ferradores com pastas. Junto de cada cavallo hum Criado a pé.

Neste riquissimo coche conduzião Suas Majestades a Serenissima Senhora Princeza Real, que vinha assentada á frente ao lado do Augusto Esposo. Sua Alteza Real vinha riquissimamente vestida de seda branca, bordada de prata e ouro, e riquissimamente ornada de brilhantes; hum finissimo véo de seda branca, que da cabeça pendia sobre o rosto realçava a belleza do seu Real semblante. Em seguida, noutro soberbo coche, forrado de veludo verde, vinhão o Serenissimo Senhor Infante D. Miguel e as Serenissimas Senhoras Princezas. Em outro, igualmente soberbo, o qual era forrado de seda ouro, vinhão a Serenissima Princeza, e as Infantas. lmmediato ao coche de Suas Magestades trotava o Capitão da Guarda Real, o Excellentissimo Marquez de Bellas, seguido de varios Criados a pé. Seguia-se atrás o magnífico coche do Estado, puxado a oito, com oito Criados a pé. E fechavam este pompossissimo acompanhamento os coches das Camareiras Móres, das Donas de Honor, das Damas Açafatas. Hia ao lado do coche das Damas hum Moço de Camara, a cavallo, servindo de Guarda-Damas, acompanhado de hum Criado a pé com telis encarnado no braço.

Ao passar Suas Magestades e Altezas Reaes por baixo do primeiro arco, fronteiro ao Arsenal, dous lindos Meninos, ricamente vestidos, que estavam em pé sôbre os pedestaes das columnas, hum com os emblemas do Amor, outro do Himeneo, apresentaram a Suas Altezas Reaes huma grande corôa de flores artificiaes, delicadamente dobradas. Esta corôa, no momento da passagem, desceu da abobada do arco, donde estava suspensa: ao mesmo tempo, sobre o Real Coche, esparziram-se nuvens de flores naturaes. Parou depois o coche por baixo do segundo arco. Nesse instante voaram grandes volutas de aromas, que se queimavam em dois vasos, ao mesmo tempo que cahiam chuveiros de flores da abobada, das varandas, e das janellas das casas vizinhas. Penetrou depois o Real Coche, por entre as verdes palmas do terceiro monumento, sob vivas e aplausos que nunca mais cessaram até a Real Capella, onde chegou o coche. Seriam tres horas da tarde.

Por entre mil vivas e applausos, descerão do coche Suas Magestades e o Serenissimo Senhor Principe Real, que immediatainente deo o braço para descer sua Augusta Esposa. Apearam-se dos seus respectivos coches o Serenissimo Senhor Infante D. Miguel e as Serenissimas Senhoras Princezas e Infantas. Assim entrou El Rei Nosso Senhor, com toda Real Família, para dentro da Egreja. Seguiram-n'o a Côrte, os Bispos, a Nobreza, o Senado da Camara. Rompeu immediatamente a grande orchestra da Real Capella Mór, onde havia hum riquissimo Solio de lustrina de ouro encarnado. Debaixo do docel estavão dez cadeiras, nas quaes El-Rei, e as mais Pessoas Reaes se sentarão. Entretanto o Bispo, Capellão Mór, subiu ao seu Solio, e o Cabido tomou logar na quadratura. Feito hum breve repouso, o Mestre de Ceremonias deo o signal. Levantaram-se todos. O Serenissimo Senhor Infante toma pela mão o Serenissimo Senhor Principe Real. A Rainha Nossa Senhora pegou na mão da Serenissima Senhora Princeza Real. E forão apresentar os Augustos Desposados ao Bispo para lhes lançar as Bençãos Nupiciaes. Puzerão-se então Suas Altezas Reaes de joelhos sobre almofadas, diante do Altar. E Sua Excellencia deo as Benções em canto festivo".

Assim, com essas pompas incríveis, casou-se aquela que foi a nossa primeira imperatriz. Assim, casou-se aquela que foi a mais humilhada das mulheres e, talvez, a mais desgraçada de quantas já se sentaram em trono.

OS CIÚMES DA PRINCESA

Na chácara do Cauper, à Rua Conde da Cunha, o Príncipe D. Pedro acabara de almoçar. Era todos os dias a mesma coisa. D. Pedro vinha sentar-se à mesa, pedia o almoço O Cauper, de Pé, servia a sua Alteza. As filhas do Cauper, também de pé, assistiam honradíssimas ao comer do herdeiro do trono. E D. Pedro, moço democrático, inteiramente sem protocolos, jovializava a mesa com a irrequieta folgazanice dos seus dezoito anos. O almoço corria sempre alegre. Ferviam as futilidades. D. Pedro bisbilhotava tudo. Indagava dos mexericos. Punha-se ao corrente dos escândalos sociais, das festas, dos namoros que houve na serenata em casa do Marquês de Santo Amaro. E tudo entre meado de muito mimo e de muita galantaria sem nenhuma intenção. Tudo ingênuo. Tudo sem malícia.

O Cauper - Pedro José Cauper - era o guarda-roupa do príncipe. Foi o último guarda-roupa da solteirice de D. Pedro. Não havia nesses tempos problema mais difícil do que descobrir um palaciano que calhasse para tal cargo. Se o homem era sisudo e grave, pessoa de bons conselhos, D. Pedro embirrava-se logo, metia-se a descompô-lo, armava ao pobre diabo toda a casta de diabruras e de pervesidades. Se o homem era peralta e folião, D. Pedro, de parceria com ele, botava-se a fazer estroinices, patuscadas incríveis, ceatas no Botequim da Corneta, mil proezas que, ao reboarem em S. Cristóvão, arrepiavam o pacato e burguesissimo D. João VI. Ao sair de Lisboa - D. Pedro tinha apenas seis anos - veio como guarda-roupa de sua Alteza aquele pachorrento Marco Antônio Montaury, "homem probo, mas incapaz de uma advertência ao príncipe". Este Montaury morreu no Brasil. Sucedeu-lhe no alto e honrosíssimo posto o seu irmão, João Martinho Montaury. Este também, logo depois falecia no Rio de Janeiro. Entrou então para o serviço do príncipe Manuel Francisco de Barros, o filho do Visconde de Santarém.

"Este guarda-roupa era mui sério e grave (lá diz o cronista) e por isso D. Pedro não gostava dele e nem Manuel Francisco gostava do comportamento do príncipe". O herdeiro do trono teve horror ao seu camarista. Foram tão incompatíveis, tão encontrados em tudo, que D. João tirou o oficio a Manuel Francisco e mandou-o para a Europa. Galardoou, porém, os seus préstimos, nomeando-o embaixador. Manuel Francisco brilhou então na diplomacia e brilhou nas letras. Seguiu-se no emprego Joaquim Valentim de Sousa Lobato. Este já ocupava o cargo de guarda-roupa do próprio Rei. Era irmão dos Lobatos. Dos homens mais afortunados no tempo de D. João VI. Daqueles que abiscoitaram os empregos mais lucrativos da época. Tanto, e de tal forma, que no Rio se tornou expressão corrente: - "Fulano é um sujeito muito feliz. É feliz como os Lobatos!"

Este Joaquim Valentim era um cortesão desbragado de modos, costumes soltos, escandaloso. Fez com D. Pedro todas as peraltices imagináveis. Tinha tais condescendências com o príncipe, tão despudoradas, que, no dizer horrorizado e pitoresco do cronista, "chegava a ponto de levá-lo à casa das moças!" D. João, ao saber das inconveniências de Sousa Lobato, também lhe tirou o oficio. Foi então que chamou Pedro José Cauper e nomeou-o guarda-roupa.

O Cauper era homem excelente, casado, mas pouco cioso da reputação da sua casa. O povo murmurava dele. E murmurava com razão. Cauper tinha filhas solteiras e bonitas. Deixaram fama, no Rio, de raparigas lindíssimas. Era natural que Cauper, nesses tempos de impiedosa maledicência, zelasse ferozmente pela reputação delas. Mas qual! O guarda-roupa recebia o príncipe todos os dias em sua casa. E obrigava, todos os dias, as filhas a fazerem companhia ao moço Bragança. E era certo, depois do almoço, D. Pedro virar-se com singeleza para o Cauper:

- Oh, Cauper! Fica-te por ai: eu vou me divertir um bocado com as tuas filhas... E lá se ia. Às vezes, metia-se no bilhar. Outras vezes, punha-se a jogar gamão. E no mais das vezes, quase sempre, saia a passear com as moças pela chácara. Não passava disso. Tudo ingênuo. Tudo sem malícia. Mas era chocante! A nomeada do príncipe fora sempre tenebrosa. Todo o mundo sabia que D. Pedro era um atrevido. Um grandíssimo maroto que não respeitava sequer as famílias. Nada mais lógico, portanto, que a freqüência do rapaz conquistador em casa onde havia moças belas e solteiras desse muito que falar às más línguas. E o povo falava sem dó. Diziam-se coisas crespas... Por esse tempo, na Corte, andava uma lufa-lufa. Fervia um rodopio de preparativos. Esperava-se a todo o instante a chegada de D. Leopoldina, arquiduquesa da Áustria, noiva de D. Pedro. A nau "D. João VI", que se redourara nos estaleiros, já havia partido para Liorne com o fim único de trazer a escolhida do herdeiro do trono. E como partira linda a nau! Novinha, toda alcatifada, muita seda, os marinheiros agaloados de veludo e prata.

Foi num daqueles dias, terminado o almoço, que D. Pedro falou comovido:
- Hoje é o dia das despedidas, Cauper; amanhã, fundeia no porto a "D. João VI", que vem ai com a minha noiva. E eu, ao depois, não poderei cá vir todos os dias como agora venho. - Pena é, Senhor D. Pedro, tornou o Cauper, consternado; e pena grande! Vossa Alteza honra tanto a nossa casa...
Caiu um silêncio embaraçante. Mas, o príncipe, que não suportava mágoas, quebrou logo o silêncio dorido:
- Não falemos mais nisso... Tristezas não pagam dividas. Oh, Cauper, fica-te um instante por ai; eu vou me divertir um bocado com as tuas filhas...
E saiu a passear com as moças pela chácara.

D. Leopoldina chegou. O Brasil inteiro desentorpeceu-se com o ribombo das festas. Que alvoroço! Revolucionou tudo. Saíram das velhas arcas mil tafularias de gala. A corte cobriu-se de louçanias. Ferreteava toda a gente uma grande ânsia por conhecer a futura imperatriz. Mas... que decepção! D. Leopoldina era feia. Ruiva e gorda, lábios grossos, olhos esverdeados, a princesa encarnava em si o tipo clássico dos Habsburgos. Não tinha elegância e não tinha graça. D. Pedro, como ninguém, sentiu o desfulgor da mulher.

Aquilo gelou-o.

Nada mais explicável, nada mais humano, do que esse desapontamento do príncipe. D. Pedro havia deixado os braços da Noemi, a bailarina do Teatro São João, essa francesinha endoidecedora que enchera os seus dezessete anos com o mais picaresco romance de amor. O coração ainda sangrava-lhe. O moço boêmio ainda sofria perdidamente de paixão. E eis que nesse momento, ainda na dor que curtia, surge-lhe a mulher. Surge-lhe uma criatura sem encantos e sem feitiços, D. Leopoldina era feia! E por isso, só por isso, a filha de Francisco I não teve nunca a boa fortuna de seduzir o coração do príncipe. Não pôde nunca cicatrizar a ferida rasgada impiedosamente naquela alma de namorado.

D. Pedro, desde o momento em que viu a esposa, comprendeu nítido o abismo que foi intransponível. Dia a dia, quanto mais íntima se tornava a vida conjugal, mais fundamente se acentuava a incompatibilidade daqueles dois gênios.

O príncipe foi sempre, em toda a sua existência, um louco por mulheres. Foi o seu fraco. O traço culminante do seu caráter. D. Pedro amou furiosamente na vida. Amou quando príncipe. Amou quando imperador. Amou quando rei no exílio. E amou com todos os desbragamentos da sua índole de fogo. Mas, por ironia, D. Pedro só não amou a esposa. Por quê? É que D. Leopoldina não foi hábil. Não teve a astúcia de se fazer amar: preocupou-se muito pouco em ser mulher. Desleixou sempre a arte de seduzir pela graça.

Não cuidou nunca desses pequeninos nadas de toucador, essas frioleiras encantadoras com que as "coquetes" tecem a rede dourada de caçar os homens. D. Leopoldina nunca se enfeitou. Nunca teve paixão por vestidos. Nunca mostrou capricho por um perfume. Nunca pôs uma flor na trança. Nunca se carminou. Nunca se frisou. Aparecia sempre com umas roupas muito amplas, o corpo muito largado, os cabelos muito corridos, sem colete, os seios balouçando. Todos os contemporâneos, afora Carlos Seidler, pintam-na assim. Jacques Arago, que a viu muitas vezes, descreve-a num flagrante: "point de collier, point de pierres aux oreilles, pas une bague aux doigts. La camisole attestait un grand usage; la jupe était fripée..." E a baronesa de Fisson de Montet, dama da corte austríaca: "I'archiduchesse Leopoldine n'était pas jolie; elle n' avait ni grace, ni tournure, ayant toujours eu l'aversion des corsets et des ceintures, etc.".

Além desse feitio negligente, tinha ainda a princesa uma paixão que mais a distanciava do marido; gostava loucamente de livros. Foi uma estudiosa tremenda. Adorava as ciências naturais e positivas. Ficou célebre o seu entranhamento por matemática e por botânica. Encerrava-se dias e dias nos seus aposentos devorando Keppler. Passava dias e dias empalhando sagüis ou catalogando flores exóticas. Foi ela quem trouxe da Áustria os dois famosos sábios Spix e Martius, que tão altos serviços prestaram à fauna e à flora tropicais. Ora, contrastando com a mulher, D. Pedro era um ignorantão. O que deixou nosso primeiro imperador como amostra das suas humanidades envergonha a gente. As suas cartas arrepiam. Um ginasial, hoje, ri-se da pasmosa incultura do Bragança. Nunca se preocupou com livros, e, muito menos, com Kepplers e sagüis empalhados. Ele mesmo, ao mandar educar o filho, o nosso grande Pedro II, dizia com chiste e bom humor:
- Este há de aprender, garanto! Não há de ficar como o pai. Porque eu, e o mano Miguel, se Deus quiser, havemos de ser os últimos ignorantes da família...

D. Pedro, portanto, não tolerava livros. Preferia descer às cavalariças e ir ferrar, ele próprio, os seus cavalos. Ai, estava à sua vontade. Apertava a mão dos picadores, igualava-se a eles, discutia, montava em potros bravos. Uma verdadeira paixão! Ora, dada essa diversidade de gostos, era evidente que o príncipe não achasse na mulher a mulher sonhada. E foi um infeliz. A vida de ambos, portas a dentro, tornou-se um pungente desfiar de rusgas. D. Pedro esfriou logo. E essa frieza veio à tona sem tardar. Mal findaram os festejos, quinze dias após a chegada, já D. Pedro se enfarava da lua de mel. E para desenfastiar-se, reprimindo a custo os bocejos, D. Pedro pensou logo no Cauper. Certo dia, com espanto de toda corte, o príncipe levou a princesa almoçar em casa do seu guarda-roupa. O palaciano e as filhas receberam suas altezas com júbilos irreprimíveis. Foi uma festa! Um renascimento! D. Pedro tinha a mesma jovialidade de solteiro. A mesma alegria, a mesma folgazanice, a mesma simplesa. Ao terminar o almoço, com a sem-cerimônia dos velhos tempos, D. Pedro lá foi bradando:
- Oh, Cauper, fica-te por ai com a princesa; eu vou me divertir um bocado com as tuas filhas.

E saiu com as meninas pela chácara. Evidentemente, não passava disso. Tudo ingênuo. Tudo sem malícia. D. Leopoldina, porém, não gostou. Mordeu o lábio; achou estranho. Mas, não deixou escapar palavra. E começou, na chácara do Cauper, a mesma freqüência de antes. Era todos os dias a velha coisa. D. Pedro vinha, trazia a princesa, almoçava. E depois do almoço:
- Oh, Cauper...
E saia com as moças. Mas, não passava disso. Tudo ingênuo. Tudo sem malícia.

Aquela assiduidade ao Cauper, aqueles passeios pela chácara, aqueles mimos e galantarias para com as moças, foram um espinho na alma da princesa. D. Leopoldina começou a sofrer. O ciúme, o tal "green ey'd monster" de Shakespeare, cravou-lhe a primeira mordida no coração. Tornou-se-lhe um suplício acompanhar o marido ao almoço dos Caupers. Aquilo doía-lhe. Aquilo infernizava-lhe a lua de mel. E D. Leopoldina não se conteve. Certa manhã, ainda nos seus aposentos, D. João recebeu a visita da nora. A princesa vinha nervosa, estranhamente inquieta. Entrou. Atirou-se aos pés do monarca, soluçando. El-Rei ergueu-a carinhosamente. E condoído, muito solicito:
- Que há, minha filha? Que há?
D. Leopoldina contou-lhe tudo. Os almoços, as intimidades, os passeios pela chácara, o estribilho de todos os dias:
- Oh, Cauper, fica-te por aí com a princesa: eu vou me divertir um bocado com as tuas filhas.
D. João ouviu. Consolou ternamente a desesperada austríaca. Fez-lhe um agradozinho no queixo:
- Eu sei de tudo, minha filha! De tudo! O Sousa Lobato já me pôs a par dessas leviandades do Pedro. Aquele rapaz é assim mesmo, minha filha: um desmiolado! Mas deixa o caso por minha conta. Eu serei por ti. Beijou a nora, fez-lhe outro agradozinho, mandou chamar ali mesmo o Visconde de Parati, o valido, a fim de resolverem aquele caso de família.

Dias depois, na corte, arrebentou uma notícia palpitante. Uma notícia inesperada, ruidosíssima: o Cauper fora agraciado com um oficio em Lisboa! Um oficio ótimo, dos melhores do Reino, que rendia a bagatela de dezoito mil cruzados! Além do oficio, como alta prova da confiança real, levava o guarda-roupa a missão de transmitir ao governo português ordens e instruções secretas do rei. Tornar a Portugal! Por esse tempo, no Rio, o mais acarinhante desejo da corte era voltar para o Reino. Ninguém se acostumava no Brasil. Os fidalgos detestavam aluda vida sensaborona, colonial, numa cidadezinha suja, tristíssima, cheia de negros e de mosquitos. Ficar com el-Rei era sacrifício. Era um morrer de tédio. Um suicidar-se. Eis porque, na corte, ao arrebentar a notícia do embarque do Cauper, não houve cortesão que não suspirasse, invejoso:
- Ora, vede o Cauper! Não há como ser valido do príncipe... Que felizardo! É feliz como os Lobatos...

Enfim, numa corveta inglesa, embarcou para o Reino o guarda-roupa do príncipe. D. Pedro e D. Leopoldina foram a bordo levar aos amigos o abraço de despedida. O Cauper estava chocadissimo. Ao dizer adeus, então, desenrolou-se uma cena tocante. O guarda-roupa chorava. As moças choravam. D. Pedro chorava. D. Leopoldina chorava... Foi um mar de lágrimas.

Nessa noite, depois do terço, no oratório, D. João perguntou baixinho à nora:
- Está contente, minha filha?
E a princesa, com um súbito clarão nos olhos:
- Contentíssima!
E beijou, agradecida, a mão do rei.

Texto de Paulo Setúbal em "As Maluquices do Imperador", excertos p.16-26. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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