3.03.2011

O ESPECTRO DA FOME


O ESPECTRO DA FOME

Tempos atrás, um surto de sarampo, de tipo violento e infeccioso, que praticamente dizimou uma localidade mineira do vale do Jequitinhonha, revelou, ou antes, confirmou, a situação calamitosa, em matéria de saúde e desnutrição, em toda aquela vasta região. Logo em seguida, ou pouco antes, as cifras enumeradas no documento trágico de 18 altas autoridades eclesiásticas mostravam a mesma situação por todo o Nordeste. E outro documento, talvez ainda mais impressionante, dos bispos do Centro-Oeste (Marginalização de um povo), confirmava o impacto do primeiro e acentuava-o. Ainda outro documento, no mesmo sentido, e talvez ainda mais alarmante, pois se refere à região considerada mais sadia de todo o Brasil: o Rio Grande do Sul, foi referido no O Estado de São Paulo de 12 de agosto: A Revista da Associação Médica do Rio Grande do Sul publicou o resultado de uma pesquisa feita pela entidade, revelando que quase a metade das crianças gaúchas (1 milhão em 2 milhões e 600 mil) são desnutridas (sic). A desnutrição é responsável pela alta taxa de mortalidade infantil e pela evasão escolar: menos de 10% dos alunos matriculados no primeiro ano atingem a oitava série do ensino fundamental. A desnutrição é causada pela falta de alimentos, dificuldades econômicas e desconhecimento dos princípios de alimentação balanceada. Uma criança de quatro anos da classe A (isto é, das camadas ricas da população, lembro eu), diz a revista, é em geral, 9,19 centímetros mais altas que uma da classe B (isto é, das camadas populares, lembro eu) e seu peso é superior. [pg. 21]
Isso significa que no Estado mais sadio da federação, a desnutrição está concorrendo, fundamentalmente, para a divisão crescente de nossa terra em dois modelos de população: os tipos biologicamente superiores e os tipos biologicamente inferiores. E como estas estatísticas informam, a proporção entre os exemplarei: bem nutridos e sadios e os desnutridos e enfermiços é praticamente de 50%. Isso na região mais sadia e rica de nossa pátria. Imaginemos então o que ocorre nas regiões que representam uma proporção de mais de 80% da nossa população total.
Aliás, há muito que os nossos mais ilustres nutricionistas, como um Rui Coutinho, em obras rigorosamente científicas, sem nenhum bias ideológico ou político, têm chegado a idênticas conclusões.
Há muitos anos, aliás, o eminente sociólogo Josué de Castro, prematuramente falecido há pouco e afastado do seu país pelo terrorismo cultural, desencadeado em 64, deu o alarme em sua obra clássica A Geografia da Fome e, como dirigente eventual da FAO, começava anos atrás uma alocução, em um congresso da instituição, com uma imagem impressionante:
“Enquanto metade da humanidade não come, a outra metade não dorme, com medo da que não come.”
Era, evidentemente, uma imagem literária forjada precisamente para impressionar os espíritos e alertar as consciências. Baseada, aliás, em sentença semelhante lançada em 1950 por Lorde Boyd Orr, então presidenta da FAO, que vejo contestada por outro especialista no assunto, o cientista Colin Clark, da Universidade de Oxford, em artigo transcrito no número de 17 de junho do L’Osservatore Romano. Diz ele:
“A situação da fome (no mundo) é muito grave mas ainda não envolve, de nenhum modo, metade da humanidade.” E considera “contraproducente” qualquer exagero, “pois o homem médio reage imaginando que não pode fazer nada.”
Penso exatamente o contrário. Justamente porque o homem médio, isto é, todos nós suficientemente bem nutridos, temos a tendência natural a não pensar nos desnutridos e a crer que realmente as cifras e os alarmes são exagerados, é que é preciso despertar as nossas consciências adormecidas para o flagelo que já chegou a introduzir um nome próprio e científico para a moléstia da fome: kwaskiorkor — ora grassando, dramaticamente, [pg. 22] no coração da África. Nem creio que essas imagens sejam exageradas, embora acredite que a verdade é a única mestra autêntica das convicções. Acontece, porém, que a verdade sobre a fome incomoda os governos e fere as suscetibilidades patrióticas e, por isso mesmo, são frequentemente vedadas ao grande público, pelas respectivas censuras políticas. Especialmente nos países que se preocupam exageradamente com a imagem que deles se faça no estrangeiro.
E não têm a mesma coragem de dizer as coisas pelos seus nomes como acontece particularmente na Inglaterra e nos Estados Unidos e em todos os países onde existe verdadeira liberdade de informação. Aliás, esse eminente cientista inglês, que subestima o perigo da fome e critica os que exageram as estatísticas, também nesse mesmo artigo declara que
“a população mundial aumenta com um ritmo de aproximadamente 2 por cento ao ano”
, quando esse ritmo chega, em certas regiões latino-americanas, a ultrapassar 3,5 por cento, sem que a produção de alimentos e especialmente sua distribuição pelo povo seja equitativa.
O próprio Clark, aliás, embora subestimando o flagelo da fome, apela para a intervenção imediata dos governos, como único meio de corrigir o desnivelamento desumano entre os bem nutridos e os desnutridos, em conseqüência de fatores políticos e sociais.
“Se é verdade que as disponibilidades de alimentos nos países da África, na média, são superiores ao mínimo necessário, também é verdade que uma iníqua distribuição dos rendimentos acaba por deixar uma grande parte da população à margem da fome.” E cita o caso do sistema de castas na Índia, que “significa que muitos milhões de pessoas estão condenadas a uma existência de discriminação e à impossibilidade de progresso econômico.”
Entre nós, a situação ainda é mais grave, pois não se traiu da existência, nos costumes — embora não mais nas leis —, de um sistema de “intocáveis” à margem da sociedade e da satisfação das suas mais elementares exigências de sobrevivência. Entre nós está ocorrendo exatamente o mesmo, justamente na medida em que cresce a estrutura industrial e urbanística, mas dentro diurna estrutura social de tipo nitidamente feudal. Acredito que o progresso tecnológico esteja em condições de equilibrar o aumento mundial das populações. Mas para isso é preciso reagir [pg. 23] contra o sistema feudal que entre nós corresponde, analogicamente, ao sistema de castas, na Índia, ou ao sistema tribalístico, na África, onde o flagelo da fome é, neste momento, um pesadelo mundial. Como é preciso que as verdades do desnutricionismo crônico da maioria de nossa população sejam ditas livremente, pois não são as obras faraônicas, nem mesmo os esforços da desanalfabetização, que vão nutrir os famintos e vestir os nus, não apenas pirandelicamente.

AS DUAS FOMES

A propósito do flagelo da fome, a que ontem aludíamos, o novo diretor da FAO, o técnico holandês A. N. Boehns, declarou recentemente que:
“A escassez mundial de alimentos é a pior crise que se registra desde a Segunda Guerra Mundial, pois o crescimento demográfico é de 2% ao ano, enquanto a produção de alimentos e a colheita agrícola do mundo, em 1972, teve 3% de redução.”
O crescimento demográfico do Brasil, convém lembrar, é de 3%. Mas essa defasagem entre o dinamismo crescente da vida e o dinamismo decrescente da técnica não pode ser eliminada pela contenção do primeiro e sim pelo incremento do segundo. Como dizia Chesterton, em uma de suas imagens pitorescas, se só temos cinco chapéus para seis crianças, há duas soluções a empregar: ou arranjamos mais um chapéu ou cortamos a cabeça de uma das crianças...
O nosso saudoso Josué de Castro, precursor entre nós, e mesmo no plano internacional, dos estudos científicos a respeito desse problema trágico da humanidade, e que afeta de modo tão desastroso e doloroso o nosso país, mostrou bem claramente a interdependência entre o problema sanitário da população, cuja fonte é primacialmente de natureza alimentar, e o problema sócio-econômico da estrutura política da nacionalidade. Josué de Castro faz mesmo remontar as causas originais da subalimentação endêmica em nosso país. ao início de nossa colonização.

A fome, no Brasil, é conseqüência, antes de tudo, do seu passado histórico, com os seus grupos humanos sempre em lula e quase nunca em harmonia com os quadros naturais. Luta, em certos casos, provocada e por culpa portanto da agressividade do meio, que iniciou abertamente as hostilidades, mas quase sempre por inabilidade do elemento colonizador, indiferente a tudo que não significasse vantagem direta e imediata para os seus planos de aventura mercantil. Aventura desdobrada em ciclos sucessivos de economia destrutiva, ou pelo menos desiquilibrante da saúde econômica da nação: a do pau-brasil, a da cana-de-açúcar, a da caça ao índio, a da mineração, a da lavoura nômade, a do café, a da extração da borracha, e finalmente a da industrialização artificial baseada no ficcionismo das barreiras alfandegárias e no regime da inflação... E o “fique rico” tão agudamente estigmatizado por Sérgio Buarque de Holanda... Em última análise, esta situação de desajustamento econômico e social foi conseqüência da inaptidão do estado político para servir de poder equilibrante entre os interesses privados e o interesse coletivo.
A princípio por sua tenuidade e fraqueza potencial diante da fortaleza e independência dos senhores de terras, manda-chuvas em seus domínios de porteiras fechadas... Ultimamente, num contrastante exagero noutro sentido, no excesso centralizante do poder... Conseqüência dessa centralização absurda e da política de fachada da República foi o quase abandono do campo e o surto da urbanização... que não encontrando no país nenhuma civilização rural bem enraizada veio acentuar de maneira alarmante a nossa deficiência alimentar.”
Há trinta anos, portanto, um sociólogo da estirpe de Josué de Castro já demonstrava, exaustivamente, a influência dos fatores sócio-econômicos sobre os próprios fatores biológicos de nossa população, através da deficiência alimentar e da primazia dos interesses privados, junto à incapacidade equilibrante das instituições políticas. E como as causas sociais são sempre correlativas, essa “deficiência alimentar”, causada primacialmente por fatores político-sociais, veio afetar indiretamente essas estruturas políticas, sempre intimamente ligadas às subestruturas cconômico-sociais. [pg. 25]
Ainda agora, o sociólogo Gláucio Soares publica um estudo do maior interesse científico e social, e, elaborado à luz de uma sociologia analítica, enquanto a obra clássica de Josué de Castro foi elaborada à luz de uma sociologia globalista e sintética, sobre um problema análogo. Esse magnífico trabalho sobre Sociedade e Política no Brasil (Dif. Europeia do Livro, S. Paulo, 1973, pp. 237 e ss.) estuda apenas “o desenvolvimento, classe e política durante a Segunda República”, de 1945 a 1964, mas interessa toda a nossa formação social contemporânea. Embora
“partindo de uma orientação sociológica geral marxista, que diz serem os fenômenos supra-estruturais determinados, em última instância. pela infra-estrutura sócio-econômica”
, na realidade mostra a interdependência das infra e supra-estruturas sociais, comprovando, ao longo de nossa história mais recente, o domínio da “oligarquia”, isto é, das elites instaladas, ricas, poderosas, sobre a poli-arquia, isto é, as maiorias entaladas, isto é, de situação profissional precária, pobres e impotentes.
Estudo magnificamente documentado e coincidindo, embora a partir de orientação sociológica diversa, com o de Josué de Castro — na verificação da influência decisiva e recíproca de fatores sócio-econômicos e políticos na constituição da sociedade brasileira. Josué de Castro, estudando a situação sanitária
e biológica da população, substancialmente viciada pela Fome Física: Gláucio Soares, estudando a situação política também viciada pela marginalização das maiorias, esmagadas pela Fome Política, isto é, pela passividade e pela imparticipação nos negócios públicos. O prof. Gláucio Soares, examinando as conseqüências da Revolução de 30 e da queda do getulismo em 1945, mostra como a “política oligárquica não foi sucedida por uma política democratizada, com ampla participação de setores e classes menos privilegiadas. Seria ingênuo crer que o colapso da oligarquia foi total (com a queda da Primeira República, lembro eu), e que as estruturas sócio-econômicas que possibilitaram sua existência ruíram e que se abriu o caminho para a participação das classes populares na política, tanto no nível eleitoral quanto no nível de representação. Persistindo a distribuição desigual da propriedade e um sistema de valores claramente classista (isto é, burguês, lembro eu), as pessoas que ocupam posições altas e médias continuam [pg. 26] a gozar de maior prestígio que as demais, sendo de salientar que essa diferenciação é aceita por amplos setores das classes populares” (p. 136). E a propósito do golpe de 64 lembra que:
“Não obstante, essa situação não provocaria um golpe de estado (64 não foi propriamente um golpe de estado, isto é, de cima para baixo, mas um golpe contra-estado, isto é, de fora para dentro, — lembro eu) se as classes médias e a sua maior representante, a UDN, paladina da democracia liberal no Brasil, efetivamente acreditassem no princípio democrático... No fundo, seu modelo não era a democracia liberal, mas sim o da democracia com participação restrita, que havia sido proposto pela primeira vez quarenta anos antes pelos tenentes e reiterado nos manifestos do Clube 3 de Outubro. Muitos dos antigos tenentes agora eram generais que, acionados politicamente pelos conservadores e socialmente pelas classes médias, interromperam pela força o Governo Goulart”.
Durante o decênio corrente o predomínio absoluto do sistema oligárquico só fez aumentar. E as duas misérias, a da Fome Orgânica, denunciada por Josué de Castro, e a da Fome Política, denunciada por Gláucio Soares, explicam os pés-de-barro da estátua de Nabucodonosor, isto é, do famoso “milagre brasileiro” de nossos dias. [pg. 27]

Por Alceu de Amoroso Lima. Artigos publicados no Jornal do Brasil, em 1973, sob o pseudônimo de Tristão de Athayde e incluidos no prefácio do livro 'Geografia da Fome', Antares, Rio de Janeiro, 1984, 10º Edição. Adaptado para ser postado por Leopoldo Costa

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