4.04.2011

AGASSIZ: VIAGEM AO BRASIL 1865-1866

Louis Agassiz (1807-1873)*


Chegada a Juiz de Fora e partida para a Fazenda Fortaleza de Santana.

Chegamos a Juiz de Fora na noite de 22 e partimos no dia  seguinte, ao despertar do dia, para a fazenda do Sr. Laje, que está situada a cerca de 30 milhas mais distante (48 quilômetros). Formávamos uma alegre companhia composta da família do Sr. Laje, da de seu cunhado, o Sr. Machado, a que se juntavam um ou dois amigos e nós. As crianças não cabiam em si de contentes; uma visita à fazenda é para elas um acontecimento raro e, por consequência, uma verdadeira festa. Para nos transportar todos e mais as nossas bagagens, duas grandes caleças e várias mulas de sela e de carga foram requisitadas. Um pequeno carro conduzindo os aparelhos do Sr. Machado, que é um excelente fotógrafo, formava a  retaguarda.69 Estava um dia admirável, a estrada serpenteava ao longo da serra, dominando as magníficas perspetivas do interior e os cafezais que cobrem as encostas das colinas, onde o machado fez desaparecer a primitiva floresta. Esta estrada é uma nova demonstração da energia e da inteligência do proprietário. Os antigos caminhos eram simples veredas, trepando umas nas outras, estragadas pelas chuvas torrenciais e quase sempre impraticáveis. O Sr. Laje mostrou a seus vizinhos quanto mais cômoda se pode tornar a vida do campo se se abandonam as velhas rotinas; abriu, nos flancos das montanhas, uma estrada em declive suave de percurso fácil em quaisquer circunstâncias. As nossas conduções gastavam apenas quatro horas para ir de Juiz de Fora à fazenda, quando, até o ano passado, era uma viagem a cavalo de um dia inteiro ou mesmo dois quando fazia mau tempo. Muito é de desejar que tal exemplo seja imitado, porquanto a falta de meios de comunicação torna as viagens no interior quase impossíveis, e é o obstáculo mais sério ao progresso e à prosperidade geral. É bastante extraordinário que os governos das províncias, pelo menos daquelas que, como Rio de Janeiro e Minas Gerais são as mais populosas, não tenham ainda organizado um sistema de boas estradas de montanha para a maior facilidade do comércio. O atual modo de transporte, no lombo dos burros, é lento e incômodo em alto grau; e parece que aí onde os produtos do interior têm tão subido valor, os caminhos ficariam logo pagos.

Chegada à fazenda.


Perto de onze horas, chegamos à fazenda. Uma construção comprida, baixa, pintada a cal, fecha incompletamente um espaço retangular onde, sobre vastas áreas quadradas, espalha-se o café
em grão. Uma parte somente desse edifício é ocupada pelos apartamentos da família o resto é destinado aos diferentes serviços que comporta a preparação do café, o aprovisionamento dos negros, etc.
Quando a nossa caravana parou para apear-se, todos os hóspedes esperados não haviam chegado ainda. O pretexto da nossa reunião era o dia de São João, que se celebra com grande barulho neste país. Toda a semana se empregaria numa caçada e o Sr. Laje convidara os melhores caçadores da vizinhança para se reunirem em sua casa. Dever-se-ia dar, no fim de contas, que todos esses nemrods viessem a constituir um precioso esquadrão de colecionadores para Agassiz. Um excelente almoço foi servido, findo o qual montamos a cavalo e partimos todos para a floresta.

Passeio na mata.

O passeio dentro da mata sombria, densa, calma, foi delicioso; as súbitas paradas de alguns segundos, quando acontecia que alguém pensasse ter ouvido a caça, os “psiu!” proferidos em voz baixa, a espera ansiosa, a respiração suspensa, no instante do tiro – triunfo ou decepção, juntavam à cena um encanto inexprimível.
Tem-se uma singular maneira de caçar neste país. Como a floresta é completamente impenetrável, espalham-se pela clareira os alimentos preferidos pelo animal que se caça; em seguida, os caçadores constroem pequenos esconderijos de folhagem com aberturas bastante largas para que se possa ver fora e aí se metem, espiando e esperando em silêncio, durante horas a fio, que a paca, o caititu ou a capivara de movimentos cautelosos e rápidos saiam do mato cerrado para virem comer o chamariz. As damas, tendo se apeado, vão se sentar em lugar seguro num desses refúgios e aí ficam imóveis, à escuta.
– Magra caça de hoje! Algumas aves, contudo, que servirão de espécimens.

Noite de São João.

Voltamos para casa à noitinha. Houve um grande jantar, depois uma enorme fogueira em honra de São João foi acesa em frente da casa. Era um espetáculo dos mais pitorescos. As grandes labaredas projetavam sobre as paredes brancas, sobre as choças dos negros, sobre a floresta distante, lampejos variáveis. Pelo clarão da  fogueira passava a ronda dos pretos, com gestos selvagens e cantos cadenciados com acompanhamentos de tambor; depois, de repente, com grandes estrondos, estouravam foguetes, deixando traços luminosos e brilhantes.

Ninhos de cupim.

No dia seguinte, 24, houve um grande passeio a cavalo antes do almoço. Acompanhei depois Agassiz numa espécie de exploração aos ninhos de cupim (térmitas), que são uns montículos que têm um metro ou mais de diâmetro por um ou dois de altura.
Tais construções são de extraordinária solidez e duras como pedra, por isso, o Sr. Laje havia posto à nossa disposição alguns negros armados de picaretas para abri-las ou quebrá-las. Apesar da força dos negros, não foi fácil. 
Em geral esses ninhos são construídos em volta dum tronco velho ou sobre um toco que lhe serve de fundação. O interior faz pensar nas circunvoluções de uma meandrina; só se vêem corredores em intermináveis serpentinas, cujas paredes parece terem sido feitas de terra por assim dizer mastigada e amassada, de modo a lhe dar a consistência do papel. Tudo isso é muito leve e frágil, tanto assim que, logo que se consegue demolir a proteção externa de cerca de 15 centímetros de espessura, todo o edifício cai em pedaços, Não há abertura para fora mas descobrimos, desenterrando um desses montículos, que a base toda estava criada de orifícios conduzindo a galerias subterrâneas. O interior fervilha de habitantes de diferentes aspectos: uns são pequenos e esbranquiçados; outros, mais grossos, são pretos, com cabeça castanho-escura armada de poderosas pinças; em todos os ninhos, achamos um ou dois indivíduos brancos, inchados, muito gordos, de dimensões e aspectos muitíssimo diferente dos demais, rainhas provavelmente. Auxiliado pelos negros, Agassiz fez, para ulterior exame, ampla provisão de todas as variedades de indivíduos que compõem, em proporções numéricas muito variadas, essas pequenas repúblicas. Teria mesmo, de bom grado, levado um ninho inteiro, mas era por demais volumoso e de transporte muito difícil.

Saúvas.

As habitações dos cupins diferem muito das formigas saúva. Estas últimas praticam largas aberturas exteriores e fazem a sua morada minando o solo. As suas longas galerias subterrâneas se estendem às vezes muito longe; quando se acende um fogo numa das saídas para exterminar os habitantes, a fumaça que sai pelos numerosos orifícios, distantes às vezes de um quarto de milha (400 metros) um de outro, indica quanto a colina foi perfurada por túneis divergentes, e fornece a prova de que todos esses microscópicos túneis estão em comunicação. Tantos viajantes descreveram tais formigueiros e falaram da atividade com que as saúvas, depois de haverem despojado as árvores de suas folhas, transportam o seu espólio para casa, que me parece inútil repetir a história. Todavia, é impossível deixar de falar do assombro que se sente ao ver essas legiões de formigas viajarem pela estrada que elas mesmas, tão corretamente, traçaram, aproveitando o solo. As que voltam quase que desaparecem inteiramente por baixo dos fragmentos e folhas que carregam, ao passo que as que já depositaram a sua colheita tornam precipitadamente ao trabalho.
Parece haver entre elas uma certa categoria de indivíduos que correm aqui e ali e cuja função não é fácil de adivinhar, a menos que não se trate de uma espécie de fiscais fazendo polícia da oficina. Essa hipótese é confirmada por uma anedota que me foi contada por um norte-americano aqui residente. Ele viu, certa vez, um desses singulares indivíduos prender um formiga que voltava sem carga para o formigueiro, castigá-la severamente e mandá-la de novo para a árvore. As formigas saúvas são a praga dos cafezais, e é muito difícil destruí-las.70

Vida de fazenda.

Os caçadores das vizinhanças principiam a chegar, e o nosso alegre bando aumentou consideravelmente. Esta vida de fazenda, pelo menos nas suas diversões aqui em moda, tem alguma coisa dos costumes tentadores da vida dos castelos da Idade Média. Reporto-me sempre a essas épocas distantes quando, à tarde, nos sentamos para jantar numa imensa sala imperfeitamente iluminada, em volta de uma grande mesa de caças miúdas e de enormes peças de vitualhas. A companhia, bastante misturada, aumenta cada dia. A família e os hóspedes tomam lugar na parte extrema da mesa, enquanto que na outra extremidade se vem sentar a família do “administrador”, personagem que corresponde, segundo penso, ao “overseer” das nossas plantações do Sul. O nosso administrador é um homem gordo, de fisionomia original, quase sempre metido numa blusa cinzenta apertada ao corpo por um largo cinturão de couro preto, a que estão presas a sua caixa de pólvora e a sua faca; uma pequena buzina de caça a tiracolo, um chapéu de abas caídas, umas botas altas reviradas completam sua vestimenta. Durante a refeição, chegam vários cavaleiros, convivas fortuitos que, sem a menor cerimônia, se sentam ao nosso lado; estão em costumes de caça e chegam da floresta. De tarde e de manhã cedo (o costume brasileiro é deitar e acordar cedo de modo a evitar o calor) irrompem mil ruídos singulares: canções alegres, toques de corneta bem antes da alvorada, lamentos monótonos do violão, e assobios bizarros dos chamarizes de caça. Tudo isso nos transporta a um mundo estranho. É para nós, aliás, o conjunto mais novo e interessante de elementos sociais de toda espécie, confundidos numa mistura e uma sem-cerimônia familiares. Reconhecemos cada vez mais o quanto devemos a quem nos admitiu no meio de uma reunião como esta, donde ressalta tão evidente tudo o que é puramente nacional e característico.

Visita à Fazenda de Cima.

No dia seguinte fomos almoçar numa fazenda menor, pertencente também ao Sr. Laje e situada mais em cima, na Serra da Babilônia. Parte-se antes do sol nascer e sobe-se lentamente a montanha  cujo vértice se acha a cerca de mil metros acima do nível do mar. Somos precedidos pela “liteira”, espécie de condução sem rodas, suspensa entre dois burros em fila, que leva a avó e o bebê. Quando os caminhos são inacessíveis aos carros, este modo de transporte se faz necessário para as pessoas a quem a idade não permite mais, ou ainda não permite, viajar a cavalo. A vista é deslumbrante, a manhã fresca e o tempo magnífico. Depois de duas horas de marcha, a nossa cavalgada chega à fazenda de cima.
Apeamo-nos dos cavalos e nos dirigimos para a floresta, onde as senhoras e as crianças passeiam enquanto os homens pescam ou caçam. Ao meio-dia, voltamos para almoçar em casa. O produto da caçada foi um macaco, dois caititus (porcos-selvagens) e grande variedade de aves, que todos se vão reunir às coleções científicas.71 Descemos a plantação de baixo para jantar, depois do que cada qual se retira para o quarto, porquanto o dia seguinte é o dia fixado para a grande caçada da semana; deve-se estar de pé muito cedo.

Refeição sobre a relva.

De madrugada os cavalos selados estão na porta à nossa espera e, antes que o sol se levante, já galgamos a serra. O ponto de reunião é uma habitação situada na serra da Babilônia, a duas léguas da fazenda principal, em terras altas demais para que se possa cultivar o café. Lá é que o Sr. Laje tem as suas cudelarias e suas crias. A subida, toda em ziguezague, é alguma coisa de delicioso nesta hora matinal; as nuvens se tingem dos rubores da aurora, as colinas distantes e as florestas se espalham ao infinito aos nossos pés e se abraçam, aos primeiros raios do sol. A última parte do caminho se mete quase sempre pela mata adentro. Depois de duas horas de marcha, no fim da estrada, damos de frente com o alto da colina, por cima de um pequeno lago, cavado, como no fundo de uma taça, numa depressão da montanha, em face justamente da fazenda. Foi de um efeito teatral admirável. Nas margens do lago erguia-se no lugar mais visível o pavilhão norte-americano, e sobre as águas flutuava um barco a vapor em miniatura tendo numa das extremidades o pavilhão brasileiro e na outra o dos Estados Unidos. Na entrada, o Sr. Laje nos convidou a passar à frente do resto da cavalgada. Acedemos ao seu convite sem compreender muito o motivo. Mas logo o descobrimos, porque logo que transpusemos a entrada, a linda embarcação se aproximou da terra, deu uma salva em nossa honra e nos deixou ver o seu nome escrito em letras grandes: AGASSIZ.
Foi uma encantadora surpresa preparada com enorme sucesso. Passada a pequena emoção causada por esse incidente, entramos na casa para deixar as nossas roupas de montaria e nos preparar para uma longa excursão na floresta.
Principiamos por tomar passagem na pequena embarcação recém-batizada; num instante atravessamos o lago e estamos na margem oposta. Aí, mesas e bancos rústicos foram impostos ao abrigo de uma coberta para um almoço campestre; já os criados estão em ação; acendem o fogo para fazer o café, cozinhar os frangos, o arroz e todo o menu do festim. Enquanto se espera, vamos flanar, à vontade, na floresta virgem. São as mais esplêndidas, as mais selvagens, as mais primitivas belezas da natureza tropical que jamais vimos. Não creio que qualquer descrição possa nos predispor para o contraste que há entre a floresta do Brasil e a do nosso país, se bem que esta tenha também direito a denominação de “virgem”. Não é unicamente uma vegetação inteiramente diversa, é a impenetrabilidade da massa, a densidade, a obscuridade, a solenidade dessas matas que tornam a impressão tão profunda.
Parece que o modo de crescimento das árvores, sua maioria elevando-se a uma altura extraordinária e deixando os galhos crescerem apenas nos seus cimos, é uma precaução da natureza para dar espaço à legião de parasitas, sipós [sic], lianas, trepadeiras de toda espécie que enchem os espaços intermediários. Demais, há um fato aqui que torna o estudo da flora tropical tão interessante para o botânico como para o geólogo: são as relações desse mundo vegetal com o das épocas anteriores sepultado no seio das rochas.
Os fetos arborescentes, os chamerops, os pandanus, as araucárias, são todos eles representantes atuais de tipos desaparecidos. Assim, essa excursão foi para Agassiz extremamente atraente: tinha diante de si a expressão de uma das leis do desenvolvimento que ligam a época presente às passadas.
A palmeira chamerops pertence a um mundo vegetal há muito desaparecido, mas que tem ainda representantes em nossos dias. A chamerops atual com suas folhas em leque abertas num mesmo nível e, por sua estrutura, é inferior às palmeiras quase que exclusivamente próprias do período atual, cujas folhas penadas têm numerosos folíolos colocados de cada lado dum eixo central. Os exemplares jovens dessa família apareciam em abundância;
a cada passo que dávamos no caminho, víamos um saindo do solo; alguns não tinham mais de duas polegadas de altura, ao passo que os mais velhos se elevavam a cinqüenta pés acima de nossas cabeças. Agassiz reuniu e examinou um bom número deles e notou que, assim, no começo do crescimento, qualquer que seja o gênero a que pertençam, se parecem invariavelmente com as chamerops e têm, como elas, folhas em leque que se abrem em um só e mesmo plano, em lugar de serem disseminadas ao longo dum eixo central como se vê na planta adulta. A palmeira recém-formada é, efetivamente, a miniatura de uma chamerops em plena maturidade. Assim, entre as plantas como entre os animais, encontra-se, nalguns casos pelo menos, uma correspondência entre as fases primordiais no desenvolvimento dos jovens, de uma espécie superior pertencente a um tipo dado, e os representantes primitivos desse tipo por ocasião de sua introdução na Terra.72
No fim da excursão, o nosso naturalista mais parecia uma pequena floresta tropical ambulante; desaparecia sob os galhos de  almeira, sob os troncos de feto e os ramos de plantas análogas. Foi nesse estado que ele chegou para almoçar. Fomos poucos à mesa: os caçadores já ocupavam seus postos à beira do lago.

Grande caçada.

O animal caçado foi uma anta (tapir) singular quadrúpede que abunda nas matas desta região e apresenta para o naturalista um interesse especial. Parece-se com efeito com certos mamíferos que não existem mais e que se conhecem tão-somente no estado fóssil, assim como os chamerops e os grandes fetos se assemelham aos tipos vegetais de outrora.
Agassiz que só a viu em cativeiro tinha o maior desejo de observá-la em toda a liberdade de seus movimentos, no meio dessa paisagem tropical tão característica quanto a própria anta das idades que precederam à nossa. Foi principalmente para lhe proporcionar tal prazer que o Sr. Laje havia organizado a caçada. Mas o homem põe e Deus dispõe! Como se verá dentro em pouco, estava escrito, que o tapir não se mostraria neste dia.
A floresta, já o disse, é impenetrável aos caçadores, exceto por onde foram abertas à faca estreitas passagens. É mister, pois, desentocar o animal lançando os cães sobre a mata, enquanto os atiradores ficam à espreita perto da saída. A anta escolhe as vizinhanças dos lagos e ribeirões. Quando se vê perseguida e acuada pelos cães, ela se decide a sair do mato e alcança a água. Logo que se lança nesta e se põe a nadar, atiram-lhe enquanto se
esforça para atingir a margem oposta. Conversamos alegres em  volta da mesa quando o grito: Anta! Anta! soou de repente. Num instante todos pegaram dos fuzis e correram para o lago, enquanto nós ficamos à espera, escutando os cães latirem com toda a força e esperando a cada instante ver o animal sair do mato e lançar-se n’água. Mas fora apenas um rebate falso, os latidos cessaram, afastando-se. O dia estando mais fresco que de costume, a anta virou as costas ao lago e, deixando que se cansassem os que a perseguiam, perdeu-se no mais fundo da mata. Os cães acabaram por voltar, fatigados e desanimados. Se o tapir se esquivara, nós, por nosso lado, havíamos visto o bastante para compreender o prazer que um caçador pode sentir em ficar assim à espreita, durante longas horas, com o risco de voltar para casa com as mãos vazias. Se não leva a caça, leva a emoção; a cada momento supõe que o animal vai passar, experimenta um momento de agitação aumentada ainda pelo barulho dos cães perseguindo a caça e os gritos de chamada dos companheiros, que se excitam e se animam com as suas próprias exclamações.
Se o animal se refugia na mais escondida das moitas, todo som vai morrendo aos poucos e, a um verdadeiro pandemônio de vozes de toda sorte, sucedem-se a calma e o silêncio. Tudo isso tem o seu atrativo e faz compreender aos não iniciados o que lhes parece à primeira vista inconcebível: como, pelo espaço de longas horas, pode alguém ficar imóvel e se achar bem pago de seu esforço, como me dizia um desses, com o escutar apenas a algazarra dos cães e perceber que desentocaram, a caça, mesmo sem qualquer outro resultado. Desta vez, aliás, o resultado não faltou de todo. Desaparecida a anta, os caçadores, que até então tinham evitado fazer fogo, não mais temeram fazer ressoar a mata com as suas detonações; entregaram-se a uma caça menor e voltamos à fazenda sem tapir, é verdade, mas ricos de despojos.


Uma plantação de café.

Partimos no dia seguinte, mas não deixamos os domínios do Sr. Laje sem dar uma volta pela sua plantação, o que nos deu a oportunidade de aprender como se cultiva o café no país. Não ouso afirmar que uma descrição desse cafezal modelo possa dar uma idéia exata do que são as fazendas em geral. O proprietário da que visitamos estende a tudo o que empreende a mesma largueza de vistas, a mesma energia e tenacidade. Introduziu, assim, importantíssimas reformas na sua exploração agrícola. A fazenda de Fortaleza de Santana está situada no sopé da serra da Babilônia. A casa de moradia faz parte, como já disse, da série de construções baixas, de fachadas brancas, que formam o perímetro do terreiro.
É nesse comprido retângulo que seca, sobre eiras, o café dividido em vários lotes.
Esses secadores, situados, como é de uso geral, perto da casa, apresentam grande inconveniente. Os grãos se estendem sobre um cimento de brancura ofuscante cuja claridade, sob este céu escaldante, é insuportável e obriga logo a gente a descansar a vista em algum trato de verdura.
Bem por detrás da casa, sobre a encosta da colina; acha-se o laranjal. Não me cansava de contemplar esse pequeno bosque de arbustos de frutos “doirados”, que era de admirável beleza. As pequenas tangerinas de cor carregada, reunidas às trinta e às quarenta; as grandes seletas que se acumulam às dúzias num galho só, que o seu peso faz vergar até o chão, o pálido limão-doce, quase insípido, mas tão apreciado por sua frescura, todos esses frutos e muitos outros ainda da mesma espécie (pois a variedade
de laranjas é bem maior do que supomos, nós os habitantes dos países frios) formam uma massa colorida onde o “doirado”, o alaranjado escuro, o amarelo pálido se casam maravilhosamente bem com os tons carregados da verdura. Em frente às grades da casa e do outro lado da estrada, está o jardim, com um aviário e viveiros no centro. A não ser isso, tudo o que não é floresta é consagrado à cultura do café, e as plantações cobrem os flancos das colinas muitas milhas em redor.
Planta-se primeiro um viveiro, onde a plantinha se desenvolve durante um ano. Passado este lapso de tempo, arrancam-na com precaução e transportam-na para o lugar que vai definitivamente ocupar. Com três anos, o novo cafeeiro, principia a dar frutos, mas a primeira colheita é mínima. Desde então, se é bem tratado e o solo é favorável, continua a produzir, dando às vezes duas colheitas por ano, e mesmo mais, pelo prazo de trinta anos. Ao cabo desse período, o arbusto e o solo estão igualmente esgotados. É hábito então do fazendeiro abandonar completamente o velho cafezal, sem cuidar no entanto de restituir ao terreno seu valor e fertilidade. Derruba-se uma nova porção da floresta e refaz-se uma nova plantação. Uma das previdentes reformas empreendidas pelo Sr. Laje é a estrumação das antigas plantações abandonadas que fazem parte das suas terras. Já conseguiu restituir o vigor e a mocidade a algumas delas, que lhe prometem colheitas tão abundantes como se tivesse sacrificado uma floresta virgem para produzi-las. Deseja não só conservar as matas de sua fazenda, e mostrar que a cultura não tem necessidade de sacrificar o bom gosto e a beleza, como também lembrar a seus compatriotas que, por mais imensa que sejam, as florestas têm no entanto um fim, e que, a continuar como eles fazem, será preciso emigrar um dia para encontrar novas terras para o café se se consideram as velhas como completamente improdutivas. Outra reforma é a construção de estradas sobre a qual já insisti. Os caminhos nos cafezais são, por via de regra, como as trilhas dos morros, traçados em linha reta no meio da encosta, entre as filas dos cafeeiros. Cada chuva os converte em regos d’água e o declive deles é tão abrupto que oito ou dez bois não conseguem fazer subir por ele o grosseiro e primitivo carro ainda em uso. Os negros são, pois, obrigados a carregar na cabeça a maior parte da pesada colheita. Um norte-americano, que viveu muito tempo nas fazendas desta zona, contou-me que vira negros, carregando em cima do crânio enormes fardos desse gênero, descer ladeiras quase verticais. Nas  plantações do Sr. Laje, todos esses caminhos velhos foram abandonados, com exceção de alguns deles plantados com uma dupla fila de laranjeiras e que formam o pomar dos negros. Para substituí-los mandou fazer estradas que serpenteiam em volta dos morros e sobem suavemente, tanto assim que carrinhos leves, puxados por um burro só,transportam toda a colheita do alto das colinas até às secadeiras.
Era a época da colheita e o espetáculo que tínhamos diante dos olhos era verdadeiramente pitoresco. Os pretos, homens e mulheres, estavam espalhados pela plantação, trazendo às costas, amarrados às suas roupas, uma espécie de cesto feito de caniços ou de bambus. Dentro dele é que amontoam os grãos de café, uns vermelhos e brilhantes como cerejas frescas, outros já escuros e meio ressequidos, e, de quando em vez, alguns ainda verdes, não de todo maduros, mas não devendo tardar em amadurecer sobre o solo abrasado do terreiro. Pretinhos pequenos, sentados na terra ao pé dos arbustos, ajuntam as cerejas caídas, cantando um estribilho monótono que tem sua harmonia e seu encanto; um deles faz o canto e os outros o acompanham. Uma vez cheios os cestos, vão mostrá-los ao administrador que lhes dá uma ficha de metal onde está marcado o valor da tarefa executada. Cada qual deve uma quantidade certa de trabalho: tanto por homem, tanto por mulher, tanto por criança, e cada qual é pago do excedente que produz; o que se exige deles é verdadeiramente moderado e aqueles que não são preguiçosos podem facilmente juntar um pequeno pecúlio. Todas as tardes eles entregam as fichas recebidas no decorrer do dia e recebem o valor do excedente de trabalho livremente executado. Do terreno em que se procedia à colheita, nós acompanhávamos os carrinhos até o lugar em que o seu conteúdo é esvaziado. Aí, os negros dividem em lotes a colheita do dia e a arrumam em pequenos montículos no terreiro. Quando o café está bem seco, e por igual, espalham-no em camadas de pouca altura sobre a extensão toda do terreiro, onde ainda recebe por algum tempo os raios do sol; os grãos são em seguida descascados com auxílio de máquinas muito simples que se usam em todas as fazendas, e a manipulação está  concluída.

Notas

69 Agassiz deve à gentileza do Sr. Machado uma série de fotografias e vistas estereoscópicas dessa localidade, que foram iniciadas por ocasião dessa excursão e completadas durante a nossa viagem ao Norte.
70 Encontra-se no livro de Bates, Um naturalista no Amazonas. (The naturalist on the river Amazonas), uma descrição muito completa desses animais.
71 Deixei-me absorver quase que exclusivamente pelo exame dos produtos vegetais de um pequeno lago, do tamanho de um reservatório de moinho, nas proximidades da fazenda. Estranhei ver Potamogeton e Miriophyllum, plantas que, na nossa compreensão, se associam à idéia de águas doces da zona temperada, em plena vegetação na orla das florestas tropicais habitadas por macacos. Tais combinações não são para deixar de embaraçar a quem procura as leis da distribuição geográfica. (L. A.)
72 Poder-se-ia igualmente dizer que o desenvolvimento inicial das  dicotiledôneas reproduz, pela estrutura das folhas germinativas, os traços característicos das plantas monocotiledôneas. (L. A.).



*In: Viagem ao Brasil (1865-1866), Louis Agassiz e Elizabeth Cary Agassiz, Tradução e notas de Edgar Süssekind de Mendonça Título do original desta tradução: Voyage au Brésil- , (Edição de 1869 – Paris.) p.119-131. Editado por Leopoldo Costa para ser postado.
 (Todas as fotos incluidas são do livro)

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