4.23.2011

A CARNE E COURO NO SERTÃO COLONIAL


Os historiadores frequentemente chamam uma região que comanda o crescimento econômico ou o desenvolvimento de áreas economicamente mais dinâmicas de centro. No caso do período colonial, essa área está associada ao plantio de cana-de-açúcar,cuja importância estava ligada pela sua influência sobre a economia e a paisagem. 1

Vários fatores favoráveis fizeram que a expansão açucareira apresentasse bons resultados pelo litoral Norte do Estado do Brasil, mais especificamente em Pernambuco.
A ampliação do mercado consumidor Europeu, tornando insuficiente a produção de açúcar nas ilhas portuguesas do Atlântico, a existência em Pernambuco de um clima quente e úmido com duas estações bem definidas, uma chuvosa, favorável ao plantio e o desenvolvimento da cana e outro período seco, em que é feita a colheita, além da existência de bons solos favoráveis ao desenvolvimento dos canaviais. A obtenção de crédito na Europa para ser empregado no plantio de cana de açúcar e na instalação de engenhos foi outro fator que contribuiu para o desenvolvimento dessa cultura. 2

Com o tempo, essa cultura acabou modificando a paisagem litorânea e a economia. O desmatamento e o desgaste do solo, graças à coivara, trouxeram mudanças significativas para a paisagem da mata atlântica litorânea. A cultura canavieira também trouxe, no século XVIII, um contingente populacional, com um povoamento quase contínuo em toda a região Norte da Colônia, desde Natal até Penedo, no atual estado de Alagoas. 3 

Conforme Manuel Correia de Andrade, amplas áreas continuaram cobertas de matas e que os engenhos, vilas e povoações ficavam situados distantes uns dos outros, mas as regiões das capitanias do Norte ficaram praticamente desbravadas.

No que se refere à importância econômica no Norte da colônia, o plantio de cana de açúcar trouxe para o litoral toda uma mudança na dinâmica espacial e populacional, unindo, economicamente, três espaços distintos: o além mar, as vilas açucareiras e o sertão.

Mas, para tal união, agentes históricos foram de fundamental importância para a articulação desses espaços. As necessidades de abastecimento de alimentos nas vilas açucareiras, para os escravos dos canaviais, ou para a população urbana, como a farinha e a carne seca, ou o couro para usar como corda ou para enrolar os rolos de fumos para exportação, foram itens indispensáveis para a manutenção das áreas mais próximas do litoral. 

Esses itens também foram indispensáveis para viabilizar as entradas no sertão, com o extermínio dos nativos, pois as expedições necessitavam de gêneros alimentícios para a guerra de conquista de territórios indígenas. 

Assim, em 4 de fevereiro de 1673, o Capitão mor da Bahia pedi para que se de carne e farinha para à gente da conquista do Sertão, o que viabilizou conexões entre espaços distintos – o sertão e vilas açucareiras – e relações econômicas internas:
“Porquanto chegou toda a gente da conquista dos Bárbaros a esta praça e convem mandar-se-lhe dar carne assim à gente de guerra como aos prisioneiros: O provedor –mor da fazenda Real deste estado mande assistir por conta della com a que lhe parecer bastante até outra ordem minha e a ração de farinha na forma que é estylo dar-se aos soldados e esta despesa se fará por conta das mesmas despesas consignidaz a esta conquista pelo Senado da Câmara desta Cidade na conformidade da ordem passada sobre o frentamento do navio”.4
No entanto, para viabilizar as conexões econômicas, outros agentes históricos serviram para intermediar essas relações. Os homens de negócio tinham um papel primordial na economia interna da colônia, principalmente na segunda metade do século XVIII, quando o marquês de Pombal tenta recuperar a economia colonial. 

Eram membros do senado da Câmara do Recife, donos de fábricas de atanados, possuíam terras para a criação de gado e exportavam a produção de couro para Lisboa.
Com a união de três espaços distintos (litoral, sertão e além mar) adicionando as necessidades internas de alimentos, associando aos homens de negócio como intermediários entre os espaços coloniais no Norte da colônia e as necessidades de alimentos e couro pelos pólos econômicos, as áreas açucareiras, teremos na segunda metade do século XVIII um espaço econômico promissor, tanto na perspectiva interna, como no incremento dos itens de exportação para o além mar.

Inserido neste espaço econômico estavam as relações entre centro e periferia no interior da América portuguesa. 

Vale lembrar que a relação centro e periferia, neste trabalho, estará restrita a um recorte espacial específico, o sertão e as vilas açucareiras. No entanto, estamos falando de uma sociedade colonial, a América portuguesa, no qual era regida pela metrópole Lusa. 
Essa área influenciava as áreas periféricas através de conexões administrativas, comerciais e religiosas com o intuito de expandir valores culturais, econômicos e políticos, assim como difundir crenças e costumes, servindo como referência para a sociedade5. 

Além do mais, Lisboa era o entreposto do comércio de açúcar e couro exportados pela colônia, na Europa, de vez que de lá vinham, para Olinda e Recife, as decisões de ordem política e econômica.

Quando o governo português, para não perder o Brasil, decidiu povoá-lo, seria a cultura da cana e a produção de açúcar as atividades econômicas que comandariam a ocupação e a organização do espaço. Com isso, as vilas açucareiras e as áreas portuárias onde escoavam a produção para o mercado externo, eram os pólos centrais.

No caso da América portuguesa, o centro estava relacionado a um núcleo urbano. 
Em última instância isto era atribuído ao papel de suas instituições enquanto centro de governo, bispado, comércio, importância estratégica para defesa, crescimento populacional. Os principais núcleos urbanos que usufruíram do status de cidade estavam localizados naquelas capitanias que, no contexto colonial mais amplo, constituíam as regiões nucleares: norte (Pernambuco e Bahia) e sul (Rio de Janeiro)6.

Conforme Kalina Vanderlei, nem sempre os núcleos urbanos tinham espaços urbanizados bem definidos. No caso de Recife, na segunda metade do século XVIII, a diferença entre arrabaldes e áreas rurais nem sempre fora bem definidas, era o caso da Freguesia da Várzea, um arrabalde no centro das áreas de engenho. 

Logo, o que poderia definir um centro urbano seria sua capacidade de acolher o máximo de atividades profissionais que sustenta7, com isso, iremos ter um maior contingente populacional, o que garante uma maior complexidade nas relações de trabalho, sociais e econômicas, com um maior dinamismo na economia local.

E foi nesse espaço econômico das vilas açucareiras que no início da colonização trouxe para as terras da América portuguesa, brancos portugueses ávidos em tentar uma nova vida como senhores de engenho, trabalhar nos ofícios relacionados a produção do açúcar e servir ao rei. Conforme Antonil, ser senhor de engenho no Brasil seria o equivalente aos títulos de fidalguia no Reino, onde dele dependiam lavradores e vários outros ofícios.8

Junto com o empreendimento açucareiro vieram escravos, alguns trabalhadores livres e comerciantes formando um contingente populacional, que na metade do século XVIII chegava, na freguesia da Vila do Recife e na Freguesia do Santíssimo Sacramento, a uma população de cerca de 21.000 habitantes. Recife no ano de 1788 estava como a maior cidade das capitanias do Norte com exceção da cidade de Salvador. 9

Eram nas vilas açucareiras que estavam os grandes contingentes populacionais, variadas atividades econômicas, assim como as instituições administrativas, religiosas e militares que formaram o império português, instituindo valores para as elites colonial (senhores de engenho, membros das câmaras, comerciantes, militares etc.) e difundido regras de comportamento (ser fiel à Igreja Católica, frequentar missas, participar de festividades religiosas).

A estrutura judiciária encabeçada pelos Tribunais da Relação na América portuguesa foi ainda complementada pela introdução das Juntas de Justiça, na segunda metade do século XVIII. A coroa buscava, assim, poder contar com instituições mais numerosas para reprimir crimes diversos, agilizando e desafogando os canais de provimento da justiça real. 

No caso das capitanias do Norte, a única capitania a receber a Junta de Justiça fora Pernambuco, excetuando-se a Bahia, sede do governo geral, graças a sua influência econômica em torno das capitanias anexas. No que se referia à organização eclesiástica, Pernambuco era a zona central das capitanias anexas. 

A prelazia de Pernambuco foi criada em 15/07/1614 pela bula Fasti novi orbis do papa Paulo V. O papa Urbano VIII, com a bula Romanus Pontifex de 6 de julho de 1624, a constituiu sufragânea da então diocese de São Salvador da Bahia. 

O papa Inocêncio XI, no dia 16/11/1676, pela bula Ad sacram Beati Petri sedem a elevou à diocese, denominando-se diocese de Olinda, da qual Dom Estêvão Brioso de Figueiredo foi o primeiro bispo.10 Dom Frei Francisco de Lima, o quarto Bispo de Olinda entre 1696 à 1704 em relatório da Visita ad limina, de 1700 ou 1701, apresenta uma visão geral do Bispado de Olinda com sua grande extensão territorial:
É o bispado de Pernambuco grandiosamente dilatado: tem por termo da parte do Sul o grande Rio de São Francisco, que vem do interior do Sertão desaguar no Oceano, e vem dividindo o distrito de Pernambuco do Arcebispado da Bahia Metrópole do Estado do Brasil. Da parte Norte tem por termo o grande rio Parnaíba, que também deságua no Oceano, e vem correndo do Sertão, dividindo o dito Bispado do do Maranhão. Entre um, e outro termo se dilata o Bispado pela costa do mar mais de 250 léguas, porém subindo para o interior do Sertão, como o Rio de São Francisco se vai inclinando para a parte do Sul mais 400 léguas; e tudo o que medeia entre um, e outro rio, pertence ao Bispado de Pernambuco, como também pertence tudo o que vai do Nascente ao Poente desde a costa do mar para o interior do Sertão entre um, e outro rio, e vai confinar com as Índias da Espanha11.
Outra instituição, a Câmara do Recife, exerceu um papel importante na capitania de Pernambuco como centro econômico entre o litoral e o sertão, devido, de certa forma, ao grupo que formava essa câmara. Com a saída dos holandeses e judeus da praça do Recife, uma nova onda migratória portuguesa dirigia-se a essa praça comercial, formando um grupo odiado pela aristocracia olindense, os mascates ou os homens de negócio.

Os homens de negócio que compunham a câmara do Recife estavam envolvidos em diversos negócios, como na exportação do açúcar. No entanto, a relação entre centro e periferia está clara ao referirmos a capitania de Pernambuco e os vastos sertões espalhados pelas capitanias do Norte. Logo, o envolvimento de setores do poder público e comércio com os sertões estavam presentes na câmara do Recife. 

Desta forma, o comércio com o sertão estava protegido pelo poder público, e  conseqüentemente, pelos interesses dos homens de negócio do Recife, que também estavam ligados ao tratamento do couro para exportação.

Graças ao comprometimento comercial desses homens de negócio em Pernambuco e a conquista de direitos políticos, outras instituições foram formadas por negociantes integrando o Reino e a capitânia de Pernambuco. As companhias de comércio foram uma tentativa do estado português de modernizar seu sistema de monopólios comerciais e de controlar o comércio de Além mar.

Vários projetos de formação de companhias de comércio foram encaminhados para a coroa, entre elas a proposta da companhia da Costa ocidental da África e Companhia de carnes secas e couros do sertão12. 

Porém, essas companhias não beneficiavam, por completo, os mercadores reinóis. Mas o ministro Sebastião de Carvalho e Melo, mudaria os planos dos mercadores locais criando uma companhia de comércio, nas bases que a metrópole determinaria sob a influência dos mercadores reinóis. 

Assim foi criada a Companhia de Comércio de Pernambuco e Paraíba, cujo governo da empresa distribuía-se em uma junta de administração sediada em Lisboa e de duas administrações subalternas: uma na Praça do Porto e outra em Recife 13.

A companhia tinha por objetivo a constituição de fundos para os empreendimentos mercantis no Brasil colônia, no qual os privilégios das companhias iam desde o monopólio do comércio, da navegação e dos direitos fiscais, além de diversificar as listas de exportação para a Praça de Lisboa.

Porém, era o engenho o núcleo da sociedade colonial, mais especificamente no Norte da colônia, com Pernambuco e Bahia sendo os principais exportadores de açúcar na segunda metade do século XVIII, mas já com a concorrência da cidade do Rio de Janeiro. Junto com os engenhos, era o grupo de senhores donos de escravos e de terras que dominaram a economia, mas o domínio da classe de senhores de engenho foi além das estruturas econômicas. A nobreza da terra controlava as relações de poder e estavam representados pela câmara de Olinda, no qual indicavam membros para as diversas instituições que regiam a capitania. 14 

Apenas o filho primogênito herdava as terras e o poder aristocrático, os outros filhos eram mandados para estudos em direito em Coimbra, enviados para alguma ordem religiosa, ou entrar no Corpo das Ordenanças, com isso os doutores estavam habilitados a entrar nos cargos nobres, os religiosos exerciam a dignidade eclesiástica, e os militares a manutenção da ordem e proteção a colônia, garantindo assim, os principais elementos de nobilitação a que se podia aspirar na Colônia.

Junto com o engenho, outras atividades eram impulsionadas a partir da produção do açúcar: olarias produtoras de telhas, de fôrmas, lenha para as fornalhas, madeira para a construção, a pecuária para o provimento de tração animal e alimento. Junto com o engenho, outras atividades eram impulsionadas a partir da produção do açúcar: olarias produtoras de telhas, de fôrmas, lenha para as fornalhas, madeira para a construção, a pecuária para o provimento de tração animal e alimento. 

Além disso, vários profissionais, os trabalhadores livres, colaboravam em diversos setores que envolvia a produção do açúcar, ou seja, um técnico habilitado, conhecedor de procedimentos indispensáveis ao processo do açúcar ou de habilidades manuais desconhecidas dos negros.15 

Dentre os trabalhadores livres, pagos pelos engenhos, conforme Vera Lúcia Ferlini: O Feitor mor que era um espécie de gerente na produção do açúcar; o caixeiro da cidade, servia como agente comercial; escrivão, controlava os estoques e transcrevia o livro de controle; solicitador, procurador do engenho em demandas em relação à posse ou questões com os lavradores.16

Segundo Maria Yeda Linhares, apesar da preocupação do estado Português em proteger seus súditos e coibir abusos, a coroa portuguesa não conseguiu ficar a cima dos interesses locais. 

O reino determinava que se desse os sábados aos escravos para poderem procurar seu sustento e que reservassem terras para o cultivo de mandioca, no entanto, o grupo de donos terras repudiava essas leis graças à monocultura do açúcar no litoral pernambucano ter se desenvolvido com o fortalecimento da classe dominante local, mais como uma conquista de plantadores e comerciantes, do que como uma imposição do poder metropolitano17. 

Com isso, a vilas açucareiras necessitavam de áreas fornecedoras de alimentos para o seu sustento.

É a partir dessas análises sócio econômicas que iremos trabalhar nosso conceito de área central. Logo, o açúcar possibilitou a formação de uma região de exploração, poder e de pólos no Brasil, pois a plantation determinou a formação de um espaço de atividades agrícolas e comerciais, criando uma estrutura de exploração condizente com as condições técnicas e culturais.

Na segunda metade do século XVIII, essas áreas tornaram-se pontos concentrados de população, com núcleos em torno de pequenos aglomerados dedicados ao abastecimento das áreas rurais que giravam em torno do centro urbano que era Olinda, juntamente com o porto do Recife, no qual centralizavam as atividades comerciais de exportação de produtos da terra e as atividades administrativas. Esse núcleo realizou o povoamento e a formação de áreas satélites como aquelas dedicadas à pecuária que provocou o povoamento de todo o sertão nordestino.

Vastas terras circundavam as vilas açucareiras. Pelo Bispo de Olinda, Dom Frei Francisco de Melo, as terras entre o Rio São Francisco e o Parnaíba, pertenciam à diocese de Olinda. Essa área estava sobre a influência de Pernambuco e as vilas açucareiras graças a prelazia de Olinda, o Porto do Recife e as instituições administrativas que estavam na capitania Régia. 

Conforme a descrição das terras dos sertões nos discursos de André João Antonil, os sertões de Pernambuco e seus currais eram maiores do que os currais da Bahia. 18 
No entanto, essa contabilidade das terras inclui as áreas anexadas a Pernambuco, as capitanias da Paraíba e Rio Grande do Norte:
'(...) sertão se estende pela costa desde a Cidade de Olinda até o Rio São Francisco, oitenta legoas: e continuando da barra do Rio de S. Francisco até a barra do Rio Igarassú, contão-se duzentas legoas. De Olinda para Oeste até o Piagui, Freguezia de Nossa Senhora da Victoria, cento e sessenta legoas, e pela parte Norte estende-se de Olinda até o Ceará Merim, oitenta legoas, e dahi até o Açu, trinta e cinco legoas: e por todas vem a estender-se desde de Olinda até esta parte, quasi duzentas legoas'.
Para a aquisição de terras no sertão, o regime jurídico básico de que necessitava para a posse eram as cartas de sesmarias. No caso de Pernambuco, cartas de sesmarias eram dadas por autoridades coloniais e doadas para senhores de terra latifundiários das cidades litorâneas. 19 

Foi desta forma que Portugal procurou demarcar fronteiras e incentivar a colonização das vastas terras do interior do Norte do Estado do Brasil e que acabou por formar grupos poderosos de latifundiários e criadores de gado.

O elemento central da lei das sesmarias estava na condição de que seu proprietário teria que cultivar a terra e cuidar do aproveitamento de sua posse para assim consolidar a aquisição do lote20, no entanto alguns donos de terras não chegavam a conhecer suas possessões no sertão, outros mantinham o contato entre o litoral e suas terras no sertão e alguns proprietários chegavam a morar em suas propriedades. 21

Algumas alterações da Lei original portuguesa, ainda do período medieval, foram viabilizadas na colônia. Os sesmeiros, que em Portugal designava os funcionários que davam as terras, no Estado do Brasil, este adquiriu status de titular da doação. 
As terras improdutivas, em Portugal, consistiram em terras para doação, no Brasil, as terras para doação eram terras “virgens”, no qual não possuíam proprietários com carta sesmarial. De semelhante a Lei de Portugal com a mesma no Brasil era o fato que o colono ficaria como responsável pelo desenvolvimento da terra, o que nem sempre acontecia.
Segundo Francisco Carlos Teixeira da Silva, existiam outras formas de posse e uso da terra na área pecuarista sertaneja, além da sesmaria: sítios e situações eram terras arrendadas por um foro contratual, com gerência do foreiro e trabalho escravo; terras indivisas ou comuns, de propriedade comum – não são terras devolutas, nem da coroa, com exploração direta, com caráter de pequena produção escravista ou familiar, muitas vezes dedicada à criação de gado de pequeno porte; e áreas de uso coletivo, como malhadas e pastos comunais, utilizadas pelos grandes criadores e pelas comunas rurais.22

No entanto, um problema a ser notado era a alta concentração de terras nas mãos de grandes criadores de gado, que acarretou reclamações por parte da administração colonial e problemas econômicos, como foi registrado em um oficio do capitão mor do Ceará João Batista de Azevedo Coutinho de Montauri, sobre as necessidades de abastecimento pelas quais passava a Capitania do Ceará, pois os moradores se recusavam a plantar a mandioca, limitando-se à criação de gado. 23 

Certamente, o lucro com o comércio de gado vendido para Pernambuco poderia garantir mais lucros do que o abastecimento de gêneros alimentícios, no entanto, o abastecimento de víveres de primeira necessidade como a farinha, era essencial para o sustento das capitanias. Esses vastos espaços físicos situados a léguas de distância do litoral, o sertão, no caso da América portuguesa, eram vários sertões. 

Os sertões dos bandeirantes, mais ao sul do Estado do Brasil, que ávidos por riquezas, desbravavam o território no meio de florestas e seguindo caminhos de rios em busca de minas de ouro e aprisionamento de nativos. O que acarretou em um tipo de sociedade, na qual a troca de conhecimento entre portugueses e nativos, fez florescer um grupo instável e moldada pelo meio, influenciados pelos costumes indígenas, o que segundo Sergio Buarque De Holanda, garantiu o êxito do povo dos sertões paulistas24.

Mas o espaço a ser abordado neste trabalho são os sertões do norte, onde uma estrutura física rústica formada por uma vegetação composta de erva daninha, cerrado de cactos e arbustos espinhentos; região de pessoas rústicas, ao contrário da civilização na zona açucareira, ambiente inóspito, uma região de fronteira, longe da administração lusa25, uma área de vários perigos: os nativos, criminosos, ladrões de gado etc. 

Vários eram os casos de roubo de gado, no qual, em um dos exemplos, os oficiais da câmara de Natal exigiam do governo português medidas para a solução desses crimes26, o que nunca fora solucionado, além de alguns pedidos de permissão de porte de armas de fogo para viagens pelo sertão, como o comandante do distrito de Água Maré, José de Brito Macedo27 ou o caso de Manoel Zeferino, porta bandeira da Primeira Companhia do Regimento de Infantaria paga da cidade de Olinda, pedindo provisão para usar pistolas em coldres para visitar as fazendas de gado do pai e o caso de um requerimento feito por Veríssimo de Souza Botelho, pedindo comutação do seu degredo da África para outro lugar no sertão da Capitania de Pernambuco28, o que não deveria ser menos inoportuno graças ao ambiente inóspito e violento.

A ausência de instituições de justiça, colaborava para o cenário assustador dos vastos sertões de Pernambuco e capitanias anexas. Em finais do século XVIII, o secretário de Estado da Marinha e Ultramar, Rodrigo de Souza Coutinho, avisa ao Presidente do Conselho Ultramarino que se consulte o requerimento dos moradores do sertão do Rio São Francisco pedindo a criação de três lugares em que residam ministros com funções judiciais para evitar a ação de criminosos e rebeldes pela região. 

A administração colonial e a representação do poder metropolitano estavam nas vilas açucareiras, onde nesse pólo econômico, jurídico, institucional e militar estão concentrados a elite do açúcar, os grandes negociantes e os negócios de além mar.
Isso seria a representação da “civilização”, nos moldes de Portugal, na América portuguesa. Mas longe das vilas açucareiras, estava o inculto, um “vazio” de pessoas ligadas a civilização do açúcar. Conforme Kalina Vanderlei, a palavra sertão, deriva do termo desertão, ou deserto. Um vazio de súditos da coroa, diferentemente do conceito geofísico de deserto. 30 

Um espaço que na segunda metade do século XVIII, estava habitada por grandes latifundiários, como os Garcia D’Ávila, mas havia outros grupos que tinham funções específicas nessa área periférica como os roceiros de farinha e boiadeiros.

Dentro do contexto de uma economia colonial de exportação, os roceiros eram provedores de alimentos. O papel fundamental de alimentar as cidades e vila açucareiras pertencia à população rural livre, onde no Norte do Estado do Brasil, a predominância do cultivo era a farinha. A resistência excepcional da mandioca à seca e sua capacidade de crescer em solos pobres fez com que ela tornasse especialmente adaptável às áreas do nordeste onde não se cultivava cana de açúcar.

Essas características tornavam o cultivo de farinha bem competitivo. É fato que, em 1704, o Governador da Capitania de Pernambuco, Francisco de Castro de Morais, escreve em Carta para o Rei D. Pedro II que conceda aos lavradores de mandioca, os mesmo privilégios que tem os lavradores de cana de açúcar.

Outra função específica dentro da economia periférica eram os boiadeiros ou tangerinos. Os grandes latifundiários dedicados a criação de gado no sertão precisavam de pessoas especializadas para além de cuidar das fazendas de gado, cuidarem do gado para que este animal consiga se adaptar à nova localidade. 

Cabia aos vaqueiros a construção de cacimbas durante a seca, cortava as “ramas”, a cactáceas e as macambiras, alimentos que tiravam a fome dos animais nos meses secos, marcarem os bezerros, proteger o gado contra o ataque de animais selvagens e dos povos nativos do sertão, cuidar de doenças e epizootias (doença, contagiosa ou não, que ataca numerosos animais ao mesmo tempo e no mesmo lugar), além da alimentação e água para os rebanhos.

Os boiadeiros levavam uma vida melhor em comparação aos escravos dos canaviais. Até mesmo porque, o boiadeiro podia nutrir-se do sonho de um dia tornar-se um criador de gado, graças ao pagamento pelos seus serviços que eram concedidos em animais – um de cada quatro bezerros nascidos era entregue ao vaqueiro. 32

De acordo com as crônicas de Antonil, o papel do boiadeiro para a manutenção do comércio de carne verde nas vilas açucareiras era de fundamental importância devido ao fato que as boiadas eram transportadas a pé, e podiam levar de dias a meses para chegar ao seu destino, logo tanger essas boiadas não era tarefa das mais fáceis, pois os tangerinos deviam atravessar rios e cuidar para que o gado não fuja. 
Sobre esse trabalho, Antonil comenta:
Guião-se, indo huns adiante cantando, para serem desta sorte seguidos do gado; e outros vem atraz das rezes tangendoas, e tendo cuidado, que não sahião do caminho e se amontem. As jornadas são de quatro, cinco, e seis legoas, conforme a commodidade dos pastos, aonde hão de parar.  Porém, aonde há falta d’água, seguem o caminho de quize, e vinte legoas, marchando de dia e de noite, com pouco descanço, até que achem paragem, aonde possão parar. Nas passagens d’alguns rios, hum dos que guião a boiada, pondo huma armação de boi na cabeça, e nadando, mostra ás reses o vão, onde hão de pasar.”33
O pagamento por esses serviços variava conforme a entrega, a cada gado perdido havia um desconto no pagamento, e dependia da distância percorrida. Esses homens que guiavam as rezes pelos sertões indo a direção das vilas açucareiras constituíam, conforme Antonil, de brancos, mulatos, pretos e índios, que com o tanger do gado procuravam um modo de sobrevivência.

Essa periferia, o sertão, que circundava as vilas açucareiras, deve-se a sua colonização a esses grupos que tangiam o gado, aos lavradores que cultivavam culturas agrícolas alternativas e ao próprio gado, que criado sem cercas, adentravam no território. 
Com a entrada dos colonos no sertão, através da intensificação das guerras de extermínio, a necessidade de consolidação da ocupação que tornou possível o desenvolvimento de atividades ligadas ao mercado interno que servia para abastecer a zona canavieira e posteriormente a zona mineradora e/ou escravização das populações indígenas, começa também a devida expulsão do gado para o sertão, permitindo, assim, a formação de grandes fazendas de gado que na verdade era uma vastíssima rede de propriedades, formando nos séculos XVII e XVIII uma economia interiorizada no sertão, estabelecendo as bases da produção de carnes e exportação couros, em grande escala.

A expulsão do gado das zonas canavieiras para o sertão foi favorecida por aspectos naturais, o clima semiárido dificultava a proliferação de verminoses; além disso, havia uma pastagem natural boa para o gado, no período das chuvas, e ilhas úmidas nas margens dos rios e nas serras para onde ele poderia ser levado no período da seca. Aspectos econômicos também favoreceram para essa expulsão do gado para o sertão; contavam os pecuaristas com um mercado certo na área agrícola, que seria abastecido de carne, de couro e de animais de trabalho.

Conforme Tânya Brandão e anteriormente citado por Nelson Werneck Sodré, existe uma evolução nas atividades pastoris no Nordeste do Brasil, divididas em três partes: o primeiro contemporâneo à empresa açucareira onde o gado servia como força motriz para a fabricação do açúcar. O segundo momento é quando o gado, perdendo a concorrência da grande lavoura de cana, começa adentrar no Sertão. 34 

A principal característica dessa fase foi a separação entre o curral e o engenho. A administração dos Currais passou a cargo dos vaqueiros, geralmente, pessoas residentes junto ao curral dos vaqueiros, e o que vale ressalva, é que geralmente essas pessoas não eram ligadas ao cultivo de cana, sendo assim, o princípio de uma independência econômica em relação à lavoura de cana. 

A terceira etapa ocorreu quando os pecuaristas penetraram bastante no sertão, chegando a atingir o território que atualmente constitui o estado do Piauí.

As longas viagens e as condições precárias dos pastos existentes pelos caminhos levavam a uma forte depreciação do rebanho, o que acarretavam numa baixa nos preços do gado ao chegar às vilas açucareiras ou nos grandes centros urbanos da época (Salvador e Recife).
Todos esses problemas, mais o aumento da população no século XVIII na América Portuguesa35, levaram ao desenvolvimento de uma atividade manufatureira que ganhou grande importância, o qual consistia em desidratar a carne e salgar, aumentando a conservação da carne, facilitando assim a sua exportação para áreas mais distantes.
Os gados oriundos dos pastos do Ceará chegavam a Recife e Olinda bastante abatidos, o que acabava na depreciação do preço do rebanho, por isso, ainda em 1740, os cearenses aproveitando as Salinas do Aracati, da foz do Jaguararibe, para formar as primeiras oficinas para fabricação de charque, conhecido também como “carne-do-ceará.
Isso permitiu àquela região competir com os pastos da Paraíba e Rio Grande no abastecimento a Pernambuco. 36 As charqueadas chegaram a crescer de tal forma que, conforme Manuel Correia de Andrade, em certo momento, a produção de charque começou a prejudicar a oferta de animais de tração aos engenhos de açúcar, levando ao Governo da Capitania de Pernambuco a proibir o funcionamento de charqueadas no Rio Grande do Norte. 37

Para os primeiros ocupantes do sertão, o couro era um artigo fundamental para a vida cotidiana, onde, segundo Capistrano de Abreu, os sertanejos atravessavam a “época do couro”
“De couro era a porta das cabanas; rude leito aplicado ao chão, e mais tarde a cama para os partos; de couro todas as cordas, a borracha para carregar água, o mocó ou alforje para levar comida, a mala para guarda e a roupa, a mochila para milhar cavalo, a peia para prendê-lo em viagem, as bainhas de facas, as brocas e os surrões, a roupa de montar no mato, as banguês para curtumes ou para apanhar sal; para os açudes o material de aterro era levado em couros por juntas de bois, que calcavam a terra com o seu peso; em couro pisava-se tabaco para nariz.” 38
Esse artigo sertanejo, durante a segunda metade do século XVIII, mais especificamente com a implantação da Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba, o couro chegou a ser o segundo item mais exportado para a metrópole e acabou por formar fábricas que tinham como objetivo curtir o “couro em cabelo” e tratar da qualidade do produto para exportação.

Esse núcleo afastado das vilas açucareiras estava dependente do litoral, no qual centralizava a maior parte da captação do excedente produzido no sertão. Maria Sylvia Porto Alegre ao analisar a origem do trabalho livre no Sertão do Ceará, observou em Roteiro do Maranhão as considerações sobre o florescimento de Pernambuco onde estabelece que as áreas sertanejas contribuíram para o aumento da povoação, cultura e comércio das áreas litorâneas, mas que as exportações de carne e couro dos sertões do Ceará tinham como alvo a Capitania de Pernambuco.

Esse comércio entre o sertão e as vilas açucareiras, assim como a formação de vários pastos de criação de gado teve sua contribuição para a economia interna colonial, assim como externa, servindo matéria prima para a metrópole. Esse comércio modificou o espaço sertanejo, a população dessa área e fez surgir novas relações de trabalho.

Notas


1 ANDRADE, Manuel Correia de. Espaço, polarização e desenvolvimento: a teoria dos pólos de desenvolvimento e a realidade nordestina. Recife: Grijalbo, 1977. pág. 70
2 ANDRADE, Manual Correia de. A terra e o homem no Nordeste: contribuição ao estudo da questão agrária no Nordeste. São Paulo; Atlas, 1986. pág. 68
3 ANDRADE, Manual Correia de. Op. Cit. pág. 69.
4 Documento Documentos Históricos (Biblioteca Nacional). Vol. VIII. pág, 145. LAPEH UFPE
5 SHILS, Edward. Centro e periferia. Lisboa: Itfel, 1992. pág. 53.
6 RUSSELWOOD, A. J. R. Centros e Periferias no Mundo Luso Brasileiro, 1500-1808. Revista Brasileira de História. Vol. 18. N. 36; São Paulo, 1998.
7 SILVA, Kalina Vanderlei. Nas Solidões Vastas e Assustadoras – Os Pobres do Açúcar e a Conquista do Sertão de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. (Tese de Doutorado). Recife: UFPE, 2003. Pág. 40 e 41.
8 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Bahia: Progresso, 1950. Pág. 17 e 18.
9 SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: os pobres do açúcar e a conquista do sertão de Pernambuco nos século XVII e XVIII. Pág. 73.
10 CASCUDO, Luis da Câmara. Paróquias do Rio Grande do Norte. Natal: Departamento de Imprensa, 1955.
11 MARINHO, Francisco Fernandes. O Rio Grande do Norte sob o olhar dos Bispos de Olinda. Natal: Nordeste, 2006. pág. 36.
12 RIBEIRO Jr., José. Colonização e Monopólio no Nordeste Brasileiro: A Companhia Geral de Pernambuco e Paraíba (1759-1780). São Paulo: Hucitec. P. 7982.
13 Idem. P. 83.
14 ACIOLI, Vera Lúcia Costa. Jurisdição e Conflitos: aspectos da administração colonial, Pernambuco,
15 FERLINI, Vera Lúcia. A civilização do açúcar; São Paulo, Brasiliense. Pág. 51.
16 Idem: Pág. 5253.
17 LINHARES, Maria Yeda. História da agricultura brasileira: combates e controvérsias. São Paulo; Brasiliense, 1986. p. 120.século XVII. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1997
18 ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil. Bahia: Progresso, 1950. Pág. 292.
19 BOXER, Charles R.. A Idade de ouro do Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. pág. 247
20 FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Terra, Trabalho e poder. São Paulo: Brasiliense Pág. 164
21 BOXER, Charles R. Op. Cit. Pág. 248
22Dados encontrados em TEIXEIRA, Francisco Carlos da Silva “Pecuária, Agricultura de Alimentos e recursos Naturais no Brasil Colônia” In: SZMRECSÁNYI, Tamás. (Org.) História Econômica do Período Colonial. São Paulo: Hucitec, Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, Edusp, Imprensa Oficial do Estado, 2002. P. 135.
23 AHU_ACL_CU_015, Cx. 9, D. 590.
24 HOLANDA, Sergio Buarque. Caminhos e fronteiras. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
25 SILVA, Kalina Vanderlei. Nas Solidões Vastas e Assustadoras – Os Pobres do Açúcar e a Conquista do Sertão de Pernambuco nos séculos XVII e XVIII. (Tese de Doutorado). Recife: UFPE, 2003.
26 AHU_ACL_CU_018, Cx. 2, D. 161. De 17 de março de 1747.
27 AHU_ACL_CU_018, Cx. 8, D. 536. De 3 de julho de 1779.
28 AHU_ACL_CU_015, Cx. 55, D. 4793. De 9 de abril de 1740.
29 AHU_ACL_CU_015, Cx. 196, D. 13479. De 13 de fevereiro de 1797.
30 SILVA, Kalina Vanderlei. Op. cit. Pág. 189.
31 AHU_ACL_CU_015, Cx. 21, D. 1957.
32 ANDRADE, Manuel Correia de.Op. cit. Pág. 150.
33 ANTONIL. Op. cit. Pág. 297298.
34 BRANDÃO, Tanya Maria Pires. O Escravo na Formação Social do Piauí: Perspectivas Históricas do Século XVIII. Piau: Editora da Universidade Federal do Piauí, 1999.
35 SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assustadoras: os pobres do açúcar e a conquista do sertão de Pernambuco nos século XVII e XVIII. Pág. 65 a 68.
36 ANDRADE, Op. cit, pág. 153.
37 ANDRADE, Manuel Correia. A Pecuária e a produção de alimentos na colônia. In: In: SZMRECSÁNYI, Tamás. (Org.) História Econômica do Período Colonial. São Paulo: Hucitec, Associação Brasileira de Pesquisadores em História Econômica, Edusp, Imprensa Oficial do Estado, 2002. pág. 106.
38 ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial & Os Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil. Brasília: Ed. 5, Brasília. Editora Universidade de Brasília, 1963. pág. 147.

Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado  por Leopoldo Costa de  ‘O Sertão vai para o Além Mar: A Produção de Carne e Couro no Sertão Colonial e a Construção de um Espaço de Comércio com o Além Mar no Século XVIII’. Dissertação de  Tiago Silva Medeiros- Programa de Pós-graduação em História – UFRN

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