4.29.2011

SUBSÍDIOS PARA A HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO

Na Terra há meio milhão de anos, posto no Paraíso Terreal semelhante ao Criador, ou criatura em aperfeiçoamento a partir dos primatas -não importa, a Cultura humana, entendida como síntese da ação do Homem através dos séculos, funda-se naturalmente no ato primeiro dessa ação- COMER. A História do HOMEM, como que se confunde com a História da Alimentação, que, com condicionalismos geo-climáticos e consequentemente étnico-sociológicos, a define. Na certeza de que o Processo Histórico se desenrola sem solução, não importa marcar datas ou limites nos tempos de sucessão da Vida do Homem na Terra, mas tão-só tomar como ponto de partida para a reflexão que proponho as dominantes culturais da ação do Homem na Terra, sem grande preocupação com a ordem da síntese final dessa ação, que procurarei, naturalmente,
respeitar, na linha nem sempre progressiva, numa perspectiva de bem estar, do caçador ao agricultor. Isto até, porque tenho presente as palavras do meu saudoso Mestre, Professor Doutor Mário Brandão, quando, perante o riso ignorante dos nossos vinte anos, dizia: -Na Cronologia Egípcia, um erro de 500 a 1000 anos não tem qualquer importância.- Transfira-se a conclusão para 500 mil anos de Alimentação do Homem, ou mesmo para os restritos 5000 anos de História Gastronômica, e conclui-se do somenos de tal preocupação.
Escreveu Camilo José Cela, na língua de Cervantes, não de Rosalia, «que el hombre sólo se mueve por tres determinantes: El estomago, el sexo, o el afan de mando.» Aceitando o pensar daquele que há meio século era considerado o «enfant terrible» das letras espanholas, penso ser justo para com o Homem, e necessário à distinção, já assinada, entre História da Alimentação e da Gastronomia, distinguir na motivação estomacal, a que decorre da necessidade, da que se baseia no prazer. Tenho para mim, temo-lo todos, que a ação  primeira do Homem se vira ou decorre da necessidade de se alimentar para viver-melhor seria ter dito sobreviver. Num tempo e espaço condicionados pela glaciação, o Homem não inicia a ação alimentar com a recoleção, permita-se o galicismo, como por certo teria feito, se necessidades aí houvera, se não caíra no desrespeito da Lei única que condicionava o seu modo de estar no Paraíso Terrestre. Em termos de luta pela sobrevivência, os seres primeiros são Hominianos TRAPOLADORES, donde evoluem para CAÇADORES,
ações comuns não só às necessidades de defesa e alimentação, mas também às necessidades técnicas. Nesta fase cultural, característica, mas não exclusiva, deste primeiro período da vida humana, o Homem, em termos alimentares, é CARNÍVORO. Primeira interrogação: como trataria o Homem culinariamente a Carne? Naturalmente que crua, de início; seca depois, como resultado da natural abundância que lhe proporcionariam os grandes animais. Conhecido o fogo -quiçá por encontrar algum animal morto por um raio- assada e posteriormente fumada; só depois cozida. O guisado virá no fim da Proto-História ou mesmo já na História. Daí, Albino Forjaz de Sampaio escrever na sua Volúpia - Gastronomia, a nona arte: Já em Portugal se guisava há muito e em Inglaterra se permanecia na Pré-História da Gastronomia -nos grelhados e fumados! (Note-se que estas técnicas ainda predominam na atual cozinha Inglesa.) De Caçador por necessidade, a Caçador também por prazer, o Homem evolui por força das transformações climáticas que não só levam as renas para o Ártico, como concorrem para a diversidade e progressiva abundância das árvores de fruto, já na fase de economia alimentar, e, mantendo-se caçador, menos nômade e com maiores dificuldades advindas da inicial florestação, inicia-se na RECOLECÇÃO. Este modo de estar, por certo, começa a influir na maneira de cozinhar, pois nas casas mais rudimentares, comunais primeiro, familiares depois, sempre se detectaram lares e fornos que pressupõem outro domínio da técnica culinária: os assados no sentido diferenciado de grelhados em quentes pedras vulcânicas, na brasa ou no espeto; em dado momento enfornados mesmo. Façamos outra pausa: Que carnes comeria o Homem? Não é difícil responder a esta questão, pois se conhece documentalmente a fauna primitiva. Assim comeriam, no correr dos séculos, caça grossa e média: bisontes, mamutes, rinocerontes lanosos, búfalos, cavalos, renas, veados, cabritos monteses, alces, javalis...; caça miúda: lebres, coelhos...; mais tarde, adequando da cultura lacustre, ribeirinha ou marítima,  o Pato-bravo, a Garça-real, o Grou, um que outro Tetraz, uma ou outra Gaivota ou Alcatraz, alguns mergulhadores... As técnicas culinárias seriam as anteriormente descritas? Não tenho resposta, mas pode-se pensar que sim, se bem que possamos recolher no Egito provas de uma cozinha progressivamente mais refinada -veremos a seu tempo. Com este Caçador, coincide o Homem RECOLETOR, situado, digamos entre a Caça e o Agros. Embrenhando-se na densa floresta, com mais dificuldades de caça, se bem que com menos perigos, o Homem terá sentido naturalmente fome, que mataria com bagos, ervas, raízes, cascas de árvores, folhas. Radica aqui o recurso posterior às landes, avelãs, castanhas, sequentes ou contemporâneas dos primeiros momentos de incremento dos alimentos vegetais da floresta. Nesta perspectiva de recoleção o Homem recorrerá ainda, na fase de fixação junto à água, às plantas aquáticas, de água doce, entre as quais a cana comum, o trevo dos pântanos, a castanha-de-água e o maná dos pântanos, cujo consumo chega aos tempos modernos (séc. XIX). Como as comeria o Homem? Cruas ou secas, provavelmente; quiçá cozidas ou em infusão. Recorde-se a propósito que os habitantes da Península de Chukchés (Ásia do Norte, junto à Foz do Obi) ainda no séc. XIX punham a fermentar folhas de salgueiro que depois comiam no inverno. As dificuldades da caça, com as transformações climáticas, o lento surgir das árvores fruteiras, selvagens e não pomarengas, e a amenidade do clima aproximam o Homem do leito dos rios, lagos e mesmo mares e assim, naturalmente, surge a fase cultural do PESCADOR, tão exemplificada na Arte pré e proto-Histórica, com consequente fixação do Homem nas zonas de água. Na Alimentação vão surgir os Mariscos -moluscos e crustáceos, comprovados nos Kjokkenmoddinger (dinamarqueses) e nos nossos Concheiros, como Muge, e posteriormente o Peixe, documentado, nesta sequência temporal, pelas espinhas encontradas nos extratos superiores dos concheiros, e ainda a caça grossa marinha: focas, leões marinhos, baleias...
Como comeria o Homem estas espécies, sobretudo o Peixe?  O Marisco, cru ou cozido. A Caça grossa como se carne fora, com o aproveitamento alimentar e energético do óleo. Do Peixe, penso não ser fantasia pensar que quase como hoje: cru, seco, fumado, grelhado/assado, cozido e, posteriormente, frito, ficando para a modernidade as caldeiradas, as «bouillabaisses» e outras novidades. Com «a Pesca (como) ponto intermédio entre a Caça magdalenense e os labores neolíticos», fixado pela amenidade climática, sobretudo na Europa Mediterrânica o Homem inicia, até por necessidade de suprir a falta de alimentos resultante do aumento populacional, a fase da Produção Alimentar que o levará a fazer-se AGRICULTOR. Neste momento, entrado pelo período proto-histórico, caça, pesca e agricultura complementam-se e trazem consigo a fase cultural do PASTOR, importantíssima para a análise da História da Alimentação e por arrasto, da História da Gastronomia. É o momento do Recoletor de frutos: ameixas, peras, uvas, figos...; da cultura dos cereais e outras plantas trigo, cevada, sorgo, aveia... Da pastorícia de porcos, carneiros e ovelhas, cabras, bois e vacas. Conhecedor dos cereais, o Homem faz farinha. Daí à Bola e ao Pão, um pulo. Anote-se a talho de foice, a bíblica notícia do Maná como que chuva enfarinhada caída no Deserto para alimento do Povo Eleito. Das Bolas diga-se que começaram por ser como que umas papas torradas sobre as quentes pedras do lar, fixo ou nômade, evoluindo para achatada massa, nem bolachas nem ainda pão - o Pão que vai ser a base da alimentação humana ao longo dos séculos a ponto de se identificar com todo o comer como no dito popular: «Casa onde não há pão...». O Pão que vai estar no Milagre da multiplicação, após o Sermão da Montanha, o tal dos Lírios do Campo e das Aves do Céu, sem semearem nem colherem, mas mais esplendorosos que Salomão e no solenes momentos da Comunhão da última Ceia. São também desta fase o Queijo, a Cerveja e o Vinho, cuja referência se torna imprescindível num estudo da História, quer da Alimentação, quer da Gastronomia. Comecemos pelo Queijo, cuja História nos surge ebulosa- mito e lenda. Nas Geórgicas de Virgílio, lá o temos ligado aos míticos amores de Cirene e Apolo de onde teria nascido Aristeo, a quem o centauro Cirón teria revelado o segredo do como fazer Queijo. Outra lenda, o faz  nascer das tetas de Amaltea que, amamentando Júpiter, via coagular o Leite sobrante, feito manjar dos Deuses -Queijo!. Da fantástica poética, a mais fria realidade: Pastor de cabras e ovelhas, búfalas e vacas, quiçá a partir do leite daquelas, deixado por que fazeres ao ar livre viu o Homem a ação dos germes fermentar o coagulado leite. Estava conseguido, fruto do acaso, apadrinhado pelo engenho, um dos mais importantes alimentos da humanidade, até pela capacidade de conservação. Com diversas origens histórico-lendárias, o Queijo integra a Literatura mais remota: Homero fala dele, pondo Circe a oferecê-lo a Ulisses e seus companheiros - Polifemo tinha-o como integrante da sua dantesca dieta; Aristóteles referencia-o; Xenofonte e Antífano também; Platão considera-o imprescindível para os habitantes da sua República... Paremos aqui, que já entramos muito dentro da História. Passemos à Cerveja, tida como a mais antiga bebida fermentada do Mundo -inserida no Código de Hamurabi como forma de pagamento de impostos e salários. Terá nascido na Mesopotâmia, mas rapidamente chegou ao Egito e daí à Europa, «provinha da maceração de pão de cevada esfacelado em água, fermentado no sumo de tâmaras aromatizado com cominhos, mirta, gengibre e mel», sendo, pois, muito diferente da bebida que a História veio a consagrar e mesmo daquela que os celtas vieram a conceber a partir da fermentação da cevada, ainda sem lúpulo. Sem dúvida que desempenhou um importante papel na alimentação humana, antes, durante e após o período proto-histórico. Mais recente que a cerveja, mas disputando-lhe a primazia histórica o Vinho. Já se bebia na Mesopotâmia e no Egito, por volta de 3000 A.C. de onde terá chegado à Europa através da Bacia do Mediterrâneo, embora mitologicamente se diga ter sido Dionísios quem a difundiu entre os Povos Europeus, através dos Gregos. Da importância do Vinho na História, sobra o fato de Cristo ter feito com ele o primeiro dos seus Milagres e de tê-lo usado no momento mais alto do cerimonial Cristão -a consubstanciação. Muito anterior, pois, à expansão Romana, o Vinho é, sem dúvida, elemento primeiro da Cultura e da História. Felice Cùnsolo chega ao ponto de considerá-lo como a «base do pensamento, através, do qual o Homem ganhava se sentido humanizava, era afirmação de vida. Whitaker Penteado, na obra o «Folclore do Vinho», transcreve, sem registro de autor, esta síntese genial sobre a importância do Vinho no ser e estar do Homem no Mundo, que não posso deixar de referir: «Aonde a vinha não cresce, não existe civilização. Por onde passa o barulhento cortejo de Baco, as pessoas são melhores, os homens mais generosos, mais amigos uns dos outros:». «Mais do que bebida, (o vinho) é filosofia, forma de conceber a vida e  de compreender o homem». Referido, com a cerveja e o azeite, num verso da Epopéia de Gilgamesh, n’O Dilúvio, que mais é preciso para lhe conferir papel de relevo na Cultura e na História, seja qual for o prisma em que a tomemos?
Voltemos ao pensamento galego de Cela, por onde praticamente comecei.
Dizia Camilo José que outra motivação do Homem, além do estômago, estava no sexo. Não se reunirão as duas, pergunto eu? Ou seja, não haverá relação entre comer e SEXO? Considerado aquele, já não só como forma de suprir a necessidade fundamental de alimentação, mas numa perspectiva gastronômica, isto é, de usufruir prazer do que se come, o que só se consegue quando há possibilidade de escolher; pelo que o prazer 
e a ESCOLHA são o fundamento da Gastronomia, para a qual, a descoberta do Sal tanto conta - creio que sim. A comprová-lo a existência de «5000 Anos de Cozinha Afrodisíaca», título da curiosa obra do siciliano Pino Correnti, que nos dá conta de desde o Neolítico (para não falar das bíblicas maçãs de Adão e Eva), de um receituário euforizante, quer de comidas, quer de bebidas. Nessa dieta, já gastronômica, entravam picantes urtigas, miolos de animais de caça, papas engrossadas com ovos leite azeite e mel, sementes. de papoula (que Helena já usava nas bebidas com que inebriava Menelau), e «caracóis pequenos, primos dos grandes caracóis da Borgonha», cujas conchas foram encontradas nas grutas de Messina e na Catânia, onde o prato ainda hoje se confecciona, tal como na Sicília, onde a receita do manjar primeiro das festas em honra de Santa Rosália -os babbatucelle-, obriga a que sejam os gastrópodes alimentados exclusivamente com folhas de laranjeira. Sabendo, corno se sabe, que as maçãs, o mel e os caracóis são ricos em cálcio e em fósforo, não se estranha que Correnti, considere esses comeres como «os três primeiros degraus na escala» de uma histórica Cozinha afrodisíaca. Isto se realmente tais comeres faziam parte da dieta neolítica, como ele afirma, mas eu não garanto. Deixemos a loira cerveja de Ur, sacralizada para as cerimônias religiosas ou bebida nos soberbos festins de Assurbanipal. Esqueçamos os perversos banquetes da impudica Semiramis. Viremo-nos, no âmbito deste capítulo, só para a Europa, incidindo na bacia do Mediterrâneo onde se comeria a celebrada «puls púnica», com bagas de alcaparreira; os filetes; de peixe secos ao sol -«pisci sciutti», ainda hoje comidos em Pantelária; a branca farinha dos Etruscos, citada por Ovídio, na «Arte de Amar», usada nos banquetes da «dolce vita», onde se devoravam excelentes iguarias de peixe, carne e legumes. Lembremos os cardos, as gordas cabras, as bolas recheadas, os «cordeiros da primeira ninhada», as «vitelas não paridas», o melhor vinho, que versejam nos cantos de Homero e Hesíodo. Recordemos os Banquetes de Safo, em Lesbos, que integravam, à sobremesa, os refinados «tragème de Lesbos» -«sortido de bolinhos de mel, pastéis de açúcar longamente cozidos no próprio sumo, e salpicados de pistácios, amêndoas, e pinhões pelados e triturados.» Citemos as trufas, referendadas por Aristófanes na licenciosa comédia, «Assembléia de Mulheres»... São tudo degraus da escadaria destas afrodisíacas receitas que terão como patamar cimeiro, no passar dos mitos e das lendas para a História, as fantasias de Plutarco e Justino sobre o nascimento de Alexandre o Grande, fruto dos amores de Zeus e Olímpia, mulher de Filipe da Macedônia, vertidas na Gastronomia numa «Sopa à Olímpia» ou «das adúlteras», especialidade local «que se prepara com enguias cozidas com vinho resinado, com açafrão, cebolas refogarias, orégãos, uma pitada de noz-moscada e um nadinha de piripiri.» Podíamos subir mais além -mas chega. Se pensarmos que o «afã do poder» decorre tantas vezes, hoje como ontem, de bem comidas e melhor bebidas conspirações à mesa, constatamos que as três razões que, no entendimento de Cela fazem correr o Homem, afinal se resumem a uma só -o Estômago: sentido pelo Coração, pensado pela Cabeça, como já escrevia o nosso Camilo. Vindos do longe da História, melhor, do antes dela, confirmamos, creio, mais uma vez, a razão de Brillat-Savarin, quando escrevia que «o prazer da mesa é para  todas as idades, para todas as condições, para todos os países, para todos os dias  (espaço e tempo); pode associar-se a todos os demais prazeres, e é o que resta para Consolação quando perdemos os demais.» BEM HAJAM pela atenção...

Bibliografia
* A. Varagnac - O Homem antes da Escrita - Edições Cosmos
* Albino Forjaz de Sampaio - Volúpia - Domingos Barreira
* Anselmo Brillat-Savarin - Physiologie du gout... e Histoire philosophique de la cuisine -
Edições do autor s/nome
* António Arribas - Os Iberos - Ed. Verbo
* António G. Matoso - História da Civilização – Livrª Sá da Costa
* Bruno Battistotti / Vittorio Botazzi / António Piccinardi / Giancarlo Volpato - Quesos del 
Mundo - Ed. Elfos
* Donald Harden - Os Fenícios - Ed. Verbo
* Ernest Barker / George Clark / Paul Vaucher (Direcção) - História da Civilização
Europeia - (Tradução e notas de Jorge de Macedo) Organizações Crisális, Ldª
* H.G. Wells - História Universal (I Vol.) - Livros do Brasil
* Jacques Pirenne - As grandes correntes da História Universal (Vol. I) - Ed. Cultural
* Macedo Mendes - História Universal - Edições Cosmos
* Pino Correnti - Cinco Mil Anos de Cozinha Afrodisíaca - Ed. ASA
* Robert J. Courtine (Direcção) Larousse gastronómico
* T.G. Powel - Os Celtas - Ed. Verbo
* Whitaker Penteado - O Folclore do Vinho - CLB

Autoria de Gonçalo José Soares dos Reis Torgal, publicado na Revista de Guimarães, Volume Especial, II, Guimarães, Portugal ,1999, pp. 661-667 adaptado e editado para ser postado por Leopoldo Costa.

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