5.19.2011

CHURRASCO DE BOI NO ROLETE

Surgido de uma bravata, ritual de assar bois inteiros virou símbolo e prato típico de um município do Paraná


Imagine um espeto de churrasco rodando sobre o fogo. Mas no lugar de uma simples peça de picanha ou cupim, o que o espeto sustenta é um boi inteiro. Para assá-lo, homens se revezam durante horas no comando da enorme e pesada manivela. O resultado final é de amargar: uma carne mal temperada, dura em vários pontos, crua em outros.

Da ideia esdrúxula ao produto final, tinha tudo para dar errado. Pois não é que deu certo? Surgida em 1978 no município de Marechal Cândido Rondon, oeste paranaense, a tradição de assar bois no rolete vingou, virou símbolo da cidade e prato típico local. Com duas novidades em relação à malfadada experiência original: o número de animais e a qualidade da refeição. A cada ano adiciona-se mais um boi à festa, acompanhando a idade do município. Em 2010, serão 50 anos de emancipação, 50 bois assados – cada um pesando cerca de 300 quilos. E se nos primórdios era preciso coragem para provar o bicho, hoje é uma honra poder degustar a iguaria.

A primeira curiosidade dessa história está no fato de terem escolhido o boi como símbolo da gastronomia da cidade. A criação de gado de corte não é a principal atividade econômica de Marechal Rondon. Antes vêm a vaca (pela bacia leiteira e pela produção de laticínios), os suínos, a soja, o trigo, o milho, a mandioca. O município se orgulha de produzir 12% da safra brasileira de grãos. Além disso, 87% dos 41 mil rondonenses são de origem alemã, e o boi assado também não é um alimento tradicionalmente preparado naquele país.

O que hoje se considera prato típico foi uma tradição inventada em conversa de amigos. Esta é a versão corrente no município, inclusive entre os especialistas no assunto: os assadores de boi no rolete. “Essa festa começou de uma bravata. O boi foi inventado numa mesa de amigos, e alguém falou: ‘Se Toledo consegue fazer porco no rolete, nós vamos fazer boi’”.

O clima de provocação ao município vizinho, Toledo, tem razões históricas. Ao longo da década de 1960, a região oeste do Paraná foi colonizada, em sua maior parte, por descendentes de alemães e de italianos, provenientes do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. A empresa responsável pela colonização era a Companhia Madeireira e Colonizadora Rio Paraná S.A. (Maripá), que tinha por política assentar os colonos de acordo com sua região de origem, etnia e religião. Os de origem italiana se fixaram em Toledo. Em Rondon, prevaleceram os de ascendência alemã. A rivalidade entre os descendentes é notória desde então. 


Em 1974, Toledo deu início à sua “Festa do Porco Assado no Rolete”. Como sede do Frigobrás Sadia – que ficaria conhecido como “o maior frigorífico da América Latina” –, o município resolveu incluir o prato em suas comemorações anuais. Quatro anos depois, diante do sucesso da festa dos vizinhos, Marechal Rondon decidiu reagir. Consta que foi o então vereador Ariovaldo Luís Bier quem lançou o desafio: se eles fazem o porco assado no rolete, nós faremos um boi. E para não deixar dúvidas de que se tratava mesmo de uma provocação ao outro município, mandou que o boi fosse ao fogo recheado com um porco inteiro.

O porco ficou praticamente cru. O boi, quase intragável. “Os primeiros não eram bons. Nem eu queria comer”, confessa um dos assadores. Chegou-se a pensar que, depois de duas ou três festas, a extravagância cairia em desuso. Mas, gradativamente, a festa do boi ganhou as graças do povo. Nos festejos pela emancipação da cidade, em 25 de julho, tornou-se a atração principal para os mais de 100 mil visitantes – entre brasileiros e estrangeiros dos países vizinhos – que circulam pelo Parque de Exposições da cidade. 


Boa parte do sucesso se deve ao aprimoramento da técnica de assar os bois. A começar pelo “no rolete”. No início, era preciso girar o animal por meio de uma manivela até que estivesse assado. Suspenso por um cano de duas polegadas por três metros de comprimento, além de armações colocadas por fora, o boi passava horas sendo girado, o que representava um enorme esforço físico.  Alguns anos depois, a preparação do prato passou a ser feita dentro de cúpulas fechadas, onde o calor circulava uniformemente. Não era mais preciso girar os bois, mas a referência ao rolete permaneceu por causa da forma como ainda hoje são transpassados pelo cano. 


A forma de temperar também evoluiu muito. Inicialmente, ninguém tinha ideia clara de como dar sabor e qualidade ao boi no rolete. Embora estivessem habituados a carnear animais desse porte, nunca haviam assado um inteiro. Procederam da forma que lhes pareceu mais lógica: temperaram-no com sal, usando as mãos. O resultado é que partes do animal ficaram sem tempero algum, enquanto outras ficaram salgadas demais. Buscou-se, então, a utilização de objetos que pudessem temperar o boi de maneira uniforme. A solução veio de equipamentos muito utilizados nas fazendas. Com as seringas usadas para a vacinação do gado, passou-se a injetar o tempero em diferentes partes do boi. Na sequência, adotaram a bomba manual, muito utilizada para passar agrotóxico nas plantações. Por fim, chegaram à máquina atual de injetar tempero, movida com o auxílio de um compressor.

Além do sal, ingredientes frequentes na preparação dos bois são: cebola, alho, pimenta, noz-moscada, vinagre, orégano, louro, páprica picante, shoyo, caldo de galinha, tempero verde, vinho (geralmente branco) e uísque. Estes dois últimos itens são para amaciar a carne, dilatando-a para que o tempero penetre melhor. Fora os conhecidos, há ingredientes secretos, ou, como diz um dos assadores, “um pulinho do gato no meio, que esse não se revela”.

A busca pelo tempero ideal motiva os mais de 200 assadores de boi de Marechal Rondon que anualmente competem no “Concurso do Melhor Boi Assado no Rolete”. No fogo desde as 20h30m do dia anterior, os bois são finalmente apresentados à comissão julgadora às 11h da manhã. O ritual de análise é meticuloso: amostras são retiradas “da parte profunda do traseiro do animal”, com faca especial, e colocadas em caixas de isopor sem a identificação do box de onde foram retiradas. Explica-se: cada boi é servido em um box patrocinado por empresas ou comerciantes locais. Os boxes distribuem suas entradas entre convidados e vendem outras tantas, recebendo, cada um, cerca de 300 pessoas para degustar seu boi, além de muitos acompanhamentos, como saladas, principalmente de batatas, alface, tomate e repolho, cuca (bolo alemão) e pão.     


Os degustadores provam uma média de dez pedaços de boi assado, bebendo água entre um e outro para evitar a permanência do sabor. Por eliminação, chega-se aos seis melhores, classificados de um a seis. O resultado é anunciado no fim da tarde, quando os prêmios são entregues.

Enquanto os pratos são avaliados, os flashes dos turistas tomam conta dos boxes, onde os bois despontam em toda a sua dimensão, inteiros e totalmente assados. O que parecia impossível para muitos visitantes aconteceu: o boi assado no rolete pode ser feito, e mais, pode ser consumido!

Os assadores de boi de Marechal Rondon costumam ter outra ocupação como meio de vida. São empresários, agricultores, economistas, autônomos, funcionários públicos, comerciantes, empregados do comércio, mecânicos... Participam da festa pelo gosto de mexer com carnes. “Mexer com panelas” é um dom que muitos adquiriram desde cedo. Abater e esquartejar animais eram atividades corriqueiras no interior dos municípios sulinos. A distância dos centros urbanos criava a necessidade de se aprender a matar, carnear e armazenar a carne dos animais abatidos. Algumas vezes, o trabalho exigia a participação de mais de uma família, propiciando a divisão da carne e gerando com isso o estreitamento dos vínculos entre a comunidade. Alguns assadores veteranos na arte de preparar bois veem agora seus filhos se dedicando à atividade, ocupando o lugar que tinha sido deles em uma determinada equipe da Festa do Boi Assado no Rolete.

Com o sucesso das receitas, a originalidade do prato e a popularidade da festa, veio a fama. Além do aniversário da cidade, os assadores vêm sendo cada vez mais requisitados para demonstrar sua técnica única nas mais diversas festividades do Brasil interiorano e até fora do país. O prato típico inventado em Marechal Rondon, quem diria, virou produto de exportação.

Autoria de Claídes Rejane Schneider, que é professora da Universidade Paranaense – campus Francisco Beltrão, como 'Tem boi no espeto', publicado na revista Nossa História, edição de dezembro de 2009. Digitalizado, editado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa

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