Não apenas os indivíduos, mas também as coletividades e mesmo as Civilizações, sempre mantiveram um diálogo permanente com o Medo. Diálogo surdo, certo, e infinitamente mediatizado, mas cujas ressonâncias podemos auscultar nos fantasmas, projeções e pesadelos de nossa própria sociedade, por exemplo.
O que pretendemos com este artigo é simplesmente abordar um momento onde esse diálogo atingiu dimensões particularmente significativas, ao confrontar as formas adquiridas pelo Medo enquanto interface do contato entre duas Civilizações diferentes e desconhecidas uma da outra(1).
O choque intercultural, ao ser intermediado pelo Medo, revela-nos as continuidades e descontinuidades entre os diversos níveis em que este se manifesta (individual, coletivo e social): o Medo passa a ser um elemento constituinte do processo de percepção do Outro. A situação de confronto intercultural aparece assim como um lugar privilegiado para se analisar como tal Medo adquire formas e significações distintas, segundo as oscilações do teor da relação de poder em que ele se insere. Pois o Medo está inextricavelmente ligado a uma situação de poder face ao desconhecido.
É nesse sentido que o relato de Hans Staden(2) apresenta uma especificidade interessante. Em comparação com o conjunto das informações e cartas jesuíticas, por exemplo, onde o medo é quase invariavelmente unidirecional, ou seja, infligido ao Outro e soberbamente desprezado no interior do discurso e da estrutura catequética em que ele é veiculado. O relato de Staden guarda ainda sua especificidade com relação ao que nos revelam os escritos franceses da mesma época, onde o medo implica no isolamento destes na ilha Coligny – exígua e frustrada expressão do imponente designativo "França Antártica" – e na restrição da relação intercultural ao mínimo de contato necessário para a manutenção de suas atividades comerciais e militares essenciais.
Essa especificidade – decorrente de uma narrativa que apresenta uma situação se não excepcional, ao menos raras vezes retratada(3), onde um europeu se vê subitamente como vencido na sua relação com o ameríndio – é paradoxalmente o que deixa entrever o que o seu caso particular tem de generalizável: a manifestação e aceitação do medo pelo narrador-protagonista diante do contato com o Outro, inimigo ou aliado, e a admissão do medo como elemento constituinte da percepção, conhecimento e relação com o Outro.
"Eis-me aqui, vosso repasto que vos chega", anuncia ela ao entrar na tribo em que deveria ficar preso até sua execução num ritual antropofágico.
Objeto e sujeito de sua fantástica aventura, espectador de seu próprio suplício e narrador de sua salvação, vítima e algoz dos índios canibais, o personagem a um tempo trágico e picaresco de Staden revela e torna consciente o que os relatos épicos da conquista e os informes administrativos do século XVI jamais admitiram: o medo existe como um dado intrínseco da relação do europeu com o ameríndio. Staden não nos transmite o espanto e o maravilhamento do conquistador face as riquezas indescritíveis e abundâncias incomensuráveis. Seu relato é atípico. De sua América de mar e selva, ornada não de templos dourados, mas de ocas em cipó e folhas de palmeira e de estacas encimadas por crânios, ele só pensa em fugir.
Entretanto, algumas das características do singular relato de Staden que condicionam a referida generalização do medo como interface de um contato intercultural aos diferentes relatos sobre a América do século XVI, devem ser aqui observadas.
Efetivamente, na sua narrativa transparecem tanto o medo do europeu face a uma civilização desconhecida, que ele não compreende e acomoda mal nas marcas de sua própria Cultura enquanto procura dominá-la, quanto o medo, as hesitações e as diferentes reações do indígena face ao invasor estrangeiro.
Retratado sempre de maneira diferenciada – e não segundo um esquema meramente maniqueísta ou especular -, esse medo aparece manifesto tanto em sua expressão individual (o medo de Staden, e o de alguns personagens indígenas que se relacionam mais diretamente com ele), como coletiva (notadamente nas negociações que concernem às tentativas de liberação de Staden).
É certo, entretanto, que o texto de Staden também nos fornece uma visão restritiva do caráter dessa relação intercultural. A versão dos acontecimentos memorizada pelo seu autor é garantida por um enfoque ideológico e confessional unilateral. Enquanto consagração da nova religião protestante(4) - e como afirmação de sua supremacia face às sociedades que a negavam, "católicas" ou "selvagens" – o texto de Staden o qualifica como herói digno de ser salvo/lembrado a partir do momento em que ele é identificado e reconhecido pelos seus iguais, que nele se espelham, se identificam e se reconhecem, e que através dele vivem a experiência de sua "eleição". O seu isolamento, ao contrário, significaria sua morte, esquecido na selva pelos seus antigos parceiros católicos e devorado pelos índios canibais. A justificativa e o valor de sua narrativa são estipulados em função de sua identidade religiosa. Como tal a obra foi pensada, distribuída e recebida.
Assim, aquilo que é específico no relato de Staden – um medo diferenciado como mediador do contato intercultural – pode ser generalizado apenas quando ele se revela e se confirma como o lado oculto, negado ou "esquecido" dos demais escritos que retratam essa relação, dentro de uma determinada estratégia discursiva.
Para abordar a questão do Medo como um fator intermediário significativo na relação com o Outro, só aproveitaremos aqui a primeira parte do texto de Staden, narrativa de suas aventuras, e não a segunda, descritiva da cultura indígena(5). Seguiremos o desenvolvimento e a construção episódica desta narrativa, identificando pontualmente como Staden conta a história do seu processo de adaptação cultural, a sua compreensão dos esquemas simbólicos básicos de funcionamento da sociedade indígena (que lhe permitirão escrever a segunda parte de sua obra), e a manipulação que opera desses significados em seu próprio benefício, em busca de sua libertação.
O medo, veremos, aparece imediata e abertamente no seu relato como o motor desse processo de compreensão e adaptação a um outro código cultural. Mas ele é também uma arma pela sobrevivência. O "medo do outro"}(6) intermedia e caracteriza a relação.
Hans Staden passa nove meses prisioneiro dos índios Tupinambás, em algum ponto na região de Ubatuba. Durante todo esse período tem um único objetivo: fugir.
Entretanto, antes de analisarmos o comportamento de Staden prisioneiro (a partir com capítulo 18), devemos fazer referência à diferença de sua conduta com relação àquela do Staden arcabuzeiro (até o capítulo 17).
O Staden arcabuzeiro é-nos apresentado como um personagem destemido, que enfrenta as situações mais mirabolantes sem quaisquer hesitações, temeridades ou fraquezas que pudessem ser debitadas ao sentimento do medo. O personagem é construído num contraponto valorativo da excentricidade da situação que deverá enfrentar a seguir, uma vez entre os Tupinambás.
Assim, ele sobrevive a diversas batalhas, por terra e por mar, onde a morte roça seus ombros inúmeras vezes sob a forma de armadilhas e emboscadas traiçoeiras, de chuvas de flechas, de chumbo grosso ou até mesmo de troncos gigantescos que são atirados sobre ele(7). Staden realiza essa verdadeira odisséia com muita desenvoltura, sobrevivendo ainda à fome, adversidade das precárias condições de navegação, à fúria dos elementos naturais, ou mesmo a naufrágios(8). Tal como Ulisses, é enfrentando essas provas que ele se qualifica como herói, e adquire um valor.
Entretanto, do épico, Staden desliza sutilmente ao picaresco prenunciando já algo de Cervantes. Uma vez qualificado e reconhecido no seu valor, Staden consegue um emprego como arcabuzeiro do Rei de Portugal, recebendo um "bom pagamento"(9), a assistência de alguns escravos, e a promessa de recompensas e reconhecimento reais uma vez findo o seu contrato. Da imagem inicial de Ulisses, Staden passa a se aproximar sobretudo daquela de um Sancho Panza.
O forte em que se instala é um posto avançado e bastante isolado, na ilha de Santo Amaro, frente a Bertioga. A fortificação fora especialmente construída para fazer face aos freqüentes ataques dos índios Tupinambás, aliados dos franceses e inimigos mortais dos Tupiniquins e dos portugueses. De fato, os Tupinambás ameaçavam constantemente a presença portuguesa na região de São Vicente, assim como suas atividades comerciais e produtivas, estrategicamente significativas.
A experiência e observação de Staden nesse período leva-o mesmo a desenvolver uma teoria sobre as épocas do ano que se deveria temer os ataques inimigos mais do que em outras(10).
Entretanto, apesar da tensão e vigilância constantes a que era submetido em tal lugar, é caçando certa vez na floresta – ou "deserto", conforme designa todo território não ocupado e cultivado pelo homem – que ele é inocentemente surpreendido pelos Tupinambás, e levado prisioneiro. A facilidade de sua captura e a imagem do "deserto" (estamos em pleno registro de um ingênuo Sancho Panza que acredita nos "encantamentos" de gênios malignos) indicam ainda o seu desconhecimento de todo o território que não sejam aqueles (restritos oásis) já ocupados pelo europeu, a sua falta de referências e marcas de orientação nesse espaço que lhe aparece ainda virgem de signos, e o desconhecimento das táticas guerreiras elementares dos índios (apesar de seu convívio com as tribos aliadas), tudo isso funcionando ainda como contraponto com relação ao aprendizado que vai iniciar doravante.
Aqui encontramos a primeira grande ruptura no seu relato. Uma vez feito prisioneiro e ameaçado de terminar seus dias de uma maneira bem pouco ortodoxa para os costumes cristãos – grelhado e devorado pelos indígenas que "me mordiscavam os braços e me ameaçavam como se tivessem querido me devorar"(11) -, ele relembra: "Vendo-me exposto a tão grande perigo, fiz reflexões que jamais tinha feito antes"(12).
Observação fundamental, cujo eco faz-se ainda ouvir dois capítulos adiante: "Eu não conhecia os usos dos índios como os conheceria a partir de então"(13).
Ainda no caminho de volta à tribo de onde haviam partido, os índios ordenam a Staden que reze a seu Deus para que este afaste o vento e a tempestade que os ameaçavam. A oração então improvisada por Staden é elaborada em termos do seu acesso exclusivo ao Deus dos "fiéis", a quem pede misericórdia, e como um pedido de prova diante dos "infiéis" de que tal acesso existia efetivamente, realizando miraculosamente o que estes exigiam.
O efeito, segundo nos conta Staden, é imediato: a tempestade se dissipa. E são os próprios índios que lhe comunicam tal fato, já que, deitado e ferido no fundo da canoa, ele nada via. Os indígenas, entretanto, sendo "infiéis", não mudam de atitude frente a este seu "evidente" poder de interferência sobre os elementos naturais. Assim como não se inclinarão diante de diversas outras provas qualificativas desse gênero, que Staden empreenderá com certa regularidade.
A este poder espiritual, que Staden tenta afirmar contra toda a crença e contra os ritos e mitos indígenas, ele associa um outro procedimento, a fim de negociar sua liberação: a manipulação de sua identidade.
Finda a dança que o introduz na comunidade dos índios Tupinambás, é diante de seus ídolos e principais que Staden afirma: "Vossos ídolos não têm nenhum poder e não podem falar, eles mentiram; pois eu não sou português, eu sou amigo dos franceses, e venho de um país chamado Alemanha"(14).
Tal versão é imediatamente desmentida pelos indígenas através de uma explicação sumária do sistema de alianças militar e comercial que os europeus mantinham com os indígenas, o qual lhes impossibilitava aceitar a afirmação de Staden, encontrado e aprisionado entre portugueses(15). Além disso, um antigo escravo desses portugueses, que "me conhecia muito bem"(16), testemunha contra Staden. Pouco depois é um francês que visita a tribo e não o reconhece como amigo, compatriota ou aliado.
O que nos interessa nesse rocambolesco quiproquó de mentidos e desmentidos, é a perda progressiva da identidade e do status social de Staden após ele ter sido feito prisioneiro. Uma vez preso, ele é negado como "alemão, amigo dos franceses", desacreditado como "fiel" que se sobrepõe aos "infiéis", e então alternadamente designado (ou autodesignado) como "comida", português, francês, profeta, feiticeiro, mentiroso, curandeiro, charlatão, caraíba ou semideus.
Staden entre os índios não é um conquistador, mas um cativo. Para conquistar sua liberdade, ele deve inverter sua situação e afirmar um outro status social na comunidade indígena, que não seja o de objeto de um ritual antropofágico. Apelar para a misericórdia divina e reafirmar teimosamente sua identidade original não revelaram-se procedimentos minimamente suficientes.
Ele percebe então que deve manipular tais procedimentos de modo a torná-los significativos e influentes dentro do sistema cultural dos índios Tupinambá, de modo a poder interferir no interior da vida social da tribo até conquistar um outro valor e estatuto social para si próprio, seja como objeto de valor, seja como encarnação de um poder espiritual superior – já que jamais poderá ser um igual.
Para tanto, ele deve compreender a visão de mundo do Outro, identificar-se e reconhecer-se no Outro, ainda que resguardando a sua alteridade, para finalmente poder manipular os signos de sua cultura e tornar-se algo ou alguém para este Outro.
De fato, é no processo de perda, ou negação, de sua própria identidade que Staden sofistica sua percepção sobre estes mesmos indígenas, que assim adquirem a seus olhos uma outra imagem ou identidade, diferente da que ele pressupunha antes de ser feito prisioneiro. Em função do processo de comunicação que doravante se instaura entre Staden e os índios Tupinambás, o corte taxonômico com que ele pensa o indígena deixa de ser simplesmente "civilização/barbárie" para se transmutar em "um/outro".
Os vários papéis que Staden assume ou tenta assumir durante a sua estadia entre os índios Tupinambás refletem um processo de progressiva diferenciação da sua percepção da realidade. Processo esse que está calcado essencialmente na idéia da representação (de si e do outro).
O que move a perfazer todo este percurso de conquista de uma outra identidade, segundo suas próprias palavras, é não apenas o medo que sente da morte em si, mas sobretudo do tipo de morte que lhe é atribuído: a crédito, e como objeto de um ritual antropofágico.
Seu medo, antes de tudo, é da base ética, moral e confessional: "Matar sim, comer, não", concede a certa altura. Mas o que lhe angustia profundamente, e que consubstancia o seu medo, é não apenas a forma como será morto, mas também essa suspensão permanente da foice que deve ceifar sua vida sobre sua cabeça, prolongando indefinidamente a ameaça – e os índios, para desespero de Staden, assim percebem a dimensão do seu medo: "É um verdadeiro português! Vejam como ele tem medo da morte!"(17).
Inicialmente Staden se imobiliza, e desespera. Ele chora, clama o seu medo indistintamente aos céus e a todos que o circundam, treme, se horroriza, e deseja pateticamente uma morte natural. Em diversas situações ele implora a Deus que lhe mate imediatamente (estamos a essa altura longe do herói temerário da primeira parte de sua narrativa).
Mas, morto em sursis, Staden aprenderá em seguida a conviver com o medo. E, então, a manipulá-lo (aqui a sua coragem reaparece, retrabalhada e requalificada pela experiência do medo).
Movido pelo medo que sente, ele passa assim a tentar interferir sobre as leis e o funcionamento da comunidade que o tem cativo, e especificamente sobre seus indivíduos mais influentes. Para tanto, ele precisa observar atentamente, e compreender os seus códigos sociais, os seus valores culturais, suas hierarquias e ritos.
Staden, como todo prisioneiro dos índios Tupinambás, participa ativamente de toda a vida social da aldeia; mas ele vai então aproveitar-se disso para suas observações e experiências pessoais.
Assim, ao mesmo tempo em que acusa os indígenas de serem indivíduos volúveis em suas opiniões, afirmando que eles constituem "uma nação em que não se pode confiar"(18), Staden (a) utiliza informações recebida dos portugueses para fazê-las passar como predições (como no caso de um ataque dos índios Tupiniquins), (b) contradiz-se na afirmação de sua identidade (tenta passar por alemão e por francês, mesmo que os franceses o desmintam, e que os portugueses venham procurar resgatá-lo), (c) interpreta sinais divinos nas manifestações dos elementos naturais (sobre os quais admite-nos não ter o mínimo controle), ou (d) passa-se por curandeiro e feiticeiro, ameaçando os índios com um poder sobre a vida e sobre a morte que não consegue demonstrar convincentemente.
O processo inicialmente é de aprendizado e de reconhecimento no Outro, na Cultura do Outro, buscando uma função e uma identidade distinta, que não a de cativo, dentro das práticas quotidianas da tribo.
Aos poucos, e em função das respostas obtidas em suas "experiências", Staden começa a agir mais insistentemente sobre duas vias que se revelam mais promissoras: a sua identidade francesa, e o poder do seu "pacto" com o Deus cristão. Na realidade, dois "lugares" onde ele percebe que o medo que sente pode ser revertido sobre os seus algozes e localizado nas práticas quotidianas e nos costumes da tribo, induzindo simultaneamente um desequilíbrio político (dentro do sistema de alianças comerciais e militares) e religioso (dentro do sistema de crenças indígena), onde ele, Staden, teria um papel e uma importância diferentes dos que lhe foram inicialmente atribuídos, e que o autorizariam finalmente a renegociar sua morte e seu destino.
De fato, salvo exceção, os franceses eram os únicos europeus a comerciar livremente com essa tribo, o que significava para Staden o meio mais provável de ser resgatado, após algumas tentativas infrutíferas dos portugueses com quem trabalhara. Por outro lado, Staden percebe que o sacrifício antropofágico de um francês poderia ser tido como razão suficiente para abalar o precário sistema de alianças existente entre os Tupinambás e os franceses que freqüentavam regularmente a região.
Os conflitos intertribais, pré-existentes à chegada dos europeus às costas brasileiras, são acentuados a partir de então. E isso, justamente porque foi baseado nesse contínuo estado de guerra que se alimentaram as relações de franceses e portugueses com tais nações indígenas, assim como a relação entre si próprios(19). Ora, desde a chegada dos europeus, e da subseqüente montagem dessa política de alianças militares e comerciais, os índios não apenas demonstraram interesse em comerciar com os europeus, mas evidenciaram também que tinham plena consciência da necessidade e importância desse comércio. Tratava-se efetivamente de manterem-se em nível de igualdade ou superioridade face às tribos hostis, com relação aos materiais que conseguiam no escambo com madeira, pimenta e outros artigos. Facas, machados e demais artefatos, que lhes eram desconhecidos até então, adquiriram rapidamente uma importância fundamental no desenvolvimento de suas atividades de sobrevivência, e sobretudo guerreiras. Por outro lado, a ajuda militar dos europeus, estrategicamente ou em termos do seu desproporcional poderio de destruição, eram significativas na decisão de uma batalha e no estabelecimento da supremacia de uma tribo.
Dentro desse quadro, afirmar uma identidade francesa aparecia para Staden como uma possibilidade efetiva de reverter sua posição, passando de inimigo e vítima a aliado. Mesmo a despeito de todas as provas que contrariavam regularmente o seu discurso, e da insuficiente "evidência" que constituía sua barba ruiva.
Quanto ao poder alegado por Staden de interferência sobre os elementos naturais respaldado num "poder divino" – segundo termo constituinte de sua estratégia -, ou sobre o próprio corpo dos índios, decidindo a sua cura face a uma doença ou epidemia, ou decretando a sua morte, a "ameaça" aparece clara e evidente(20).
A observação e experiência de Staden, inicialmente motivadas pelo medo face à morte (e a rejeição de um certo tipo de morte), implicarão no distanciamento e suplantação desse medo, levando-o assim a aprender a manipulá-lo, e então a transferi-lo finalmente sobre o Outro. Tais operações são realizadas através de estratégias localizadas e precisas, resultantes de sua iniciação, aprendizado e experiência de certos aspectos essenciais da cultura indígena Tupinambá, os quais ele sistematiza na segunda parte de seu livro.
A construção da narrativa de Staden dá conta precisamente desse processo de aceitação, reversão e negociação do medo. Processo em três tempos onde ele consegue afinal passar de implorante a implorado, de vítima e repasto a algoz, de vencido a vencedor dos índios Tupinambás.
Milagre e terror são onipresentes e constantes em todo o seu relato. Mas aceitar e suportar o martírio é uma prova autoqualificadora herdada do pensamento cristão. Essas provas qualificativas são acompanhadas de outras complementares, como a dor, a humilhação e o sentimento de abandono em meio aos infiéis – quando se consola pensando em Jesus Cristo em meio aos judeus(21).
Tais provas são para Staden a afirmação de uma identidade (cristã) mesmo que seja apenas para si mesmo, para se diferenciar do Outro e impedir de ser aniquilado (devorado) pelo papel que lhe é designado pelo Outro.
Por outro lado, elas são também, e por conseqüência, o meio pelo qual ele se coloca afinal em contato, se relaciona e se aproxima do Outro. Aceitar o medo, assim como a dor e o sofrimento, leva-o também a aceitar o Outro.
Além disso, se a aceitação do medo relaciona-se a uma auto-referenciação e à reconquista de uma identidade diversa da que lhe fora atribuída através de uma experiência da alteridade, ela é também um meio de sobrevivência, onde Staden encontra forças na apelação à misericórdia de Deus, na compaixão pelo "infiel", no martírio, e na fé na salvação, donde extrai sua resistência física e moral. Daqui decorrerá mais tarde a sua "autodeificação" perante os índios, a sua pareceria com o poder divino, num jogo no limite do herético, superpondo magia e graça divina.
Staden procura incessantemente identificar e apresentar marcas da intervenção divina, tanto para os índios como para o leitor. E progressivamente estas marcas de discursos são identificadas como prova da sua eleição dentre os "infiéis", e como índice de sua predestinação a ser salvo.
Assim, após diversas demonstrações (algumas frustradas, outras verossímeis, mas todas ao "acaso"), a passagem decisiva é-nos apresentada no capítulo 36. Dialogando com um índio Margaia, igualmente prisioneiro dos Tupinambás, fica clara a diferença de atitude de um e outro face à morte ritual antropofágica. Enquanto Staden repugna tal fim, e tenta inutilmente convencer o prisioneiro do horror e pecado dessa morte não-cristã, tentando ainda "salvá-lo", este último apenas ri diante da insensatez do discurso de Staden, menospreza suas razões, e reafirma a atitude orgulhosa que teria qualquer indígena na sua situação. Vinda a noite, levanta-se uma violenta tempestade, à qual se segue uma plácida calmaria, ao amanhecer. Staden diz então aos seu companheiro de infortúnio: "Foi Deus quem levantou esta grande tempestade e que quer ter-te". "No dia seguinte ele foi devorado", conclui.
Após novas provas qualificadoras, onde Staden começa a estabelecer um controle e domínio sobre os dois personagens mais influentes da tribo que advogavam constantemente a sua morte imediata, segue-se a confirmação de sua eleição. O título do capítulo que relata o episódio é em si mesmo revelador e eloqüente: "Como um escravo desses índios me caluniava sempre e teria desejado me ver devorado, e como ele foi morto e comido em minha presença"(22). Pela segunda vez, um índio é devorado como prova de que Staden está predestinado a ser salvo – e aqui atinge-se o ápice do processo de "identificação" de Staden com os canibais: "(...) porque ele me caluniou, meu Deus irritou-se contra ele, tornou-o doente e vos inspirou a matá-lo e a comê-lo; é assim que Ele tratará todos os que quiserem me fazer mal. Tais palavras os assustaram, e eu agradecia a Deus pela graça que Ele me fazia"(23). Staden (ou Staden através de seu "pacto" com Deus) constituem doravante a ameaça, encarnam o papel de algoz e o poder sobre o destino. É a esta altura da narrativa que Staden admite: "matar, sim; comer, não".
Uma sutil marca de discurso denota igualmente o início do processo de reversão do medo pela conquista de um outro estatuto social. Se no capítulo 36, antes da morte do índio Margaia acima referida, Staden trata os indígenas pelo pronome pessoal "eles", marcando assim ainda uma distância com relação ao Outro, após o relato que procura evidenciar a eleição e predestinação à salvação de Staden, ele passa a se identificar com os indígenas – ainda que a contrário – em função de um poder e de um controle adquiridos sobre o medo, sobre a circulação do medo. Quando a "festa" antropofágica termina, ele se confunde com os indígenas, e passa a utilizar os pronomes "nós" ou "nosso" (capítulo 37).
Marcada a "eleição e predestinação à salvação" de Staden(24), a narrativa muda completamente de rumo. Começa então a fase de reversão do medo, quando Staden passa a ameaçar, a vitimar ou mesmo, eventualmente, a auxiliar os "infiéis" indígenas (Staden passa de vítima a algoz e juiz). Simultaneamente, Staden afirma-se como objeto de valor, passando de morto a crédito a refém.
Citemos três passagens significativas onde Staden explicita os traços de sua nova identidade, conquistada às custas de um identificação (certo, ambígua e mediatizada) com o Outro, com relação ao qual ele começa então a marcar sua diferença.
Staden conclui o capítulo 42 afirmando que "eles [os índios] diziam que eu era melhor profeta que seus tammaraka", devido ao seu poder de previsão (casual, admite Staden, referindo-se a um ataque dos índios Tupiniquins). Em seguida, uma vez finda a batalha, Staden neglicencia uma oportunidade "fácil" de fuga apenas para "consolar" os mamelucos feitos prisioneiros durante tal ataque – ainda que estes dissessem que ele não fazia mais atenção ao sofrimento, por estar "acostumado", o que denotaria o reconhecimento de uma distância efetivamente percorrida na trajetória de Staden. A identificação de Staden com os canibais não sendo mais admitida pelo autor após sua "eleição" e "predestinação à salvação", é então expressa nas palavras de outro personagem. Para o leitor, entretanto, resta a tranqüila segurança de um Staden que não se concebe mais como prisioneiro e que negligencia a fuga (salvação, afinal) pelo dever moral e espiritual de consolar o próximo.
No capítulo seguinte, após entrar na cabana de Cunhambebe a fim de advogar pela causa dos mamelucos, e encontrando-o ocupado a roer um osso diante de um cesto cheio de carne humana, Staden recusa a honrosa oferta de partilhar o repasto feita por este principal (prova efetiva de reconhecimento), dizendo: "Apenas um animal selvagem devora um outro; como comeria eu a carne humana?". Cunhambebe morde ainda um pedaço avidamente e replica: "Eu sou um tigre, e gosto disso". E Staden acrescenta, enfatizando agora a sua diferença com relação ao seu interlocutor: "Então eu o deixei".
Finalmente, como último exemplo ilustrativo, o episódio em que Staden é oferecido como presente ao chefe de uma outra aldeia, chamado Abbati Possanga. Os indígenas que o tinham cativo ofertam-no "dizendo-lhe de não me fazer mal, e de impedir que mo fizessem, pois que meu Deus punia cruelmente aqueles que me maltratavam; o que eles tinham tido oportunidade de experimentar durante o tempo que eu tinha passado entre eles". Staden aproveita a "deixa" para reforçar o outro aspecto do seu valor conquistado: "Eu lhe disse, de minha parte, que meu irmão e meus amigos [franceses] deviam chegar com uma nau carregada de mercadorias que eu distribuiria àqueles que me tratassem bem, e que meu Deus havia-me prometido que eles logo chegariam. Isto agradou-o muito. O rei chamou-me seu filho e enviou-me à caça com os seus"(25).
Quinze dias depois, tiros de canhão anunciam a chegada de um navio francês. Segue-se uma complicada representação teatral, como o seguinte enredo: o capitão do navio negocia a estadia de Staden por mais um ano na aldeia, a fim de organizar a coleta de pau-brasil e pimenta, prometendo embarcá-lo na próxima viagem. Enquanto isso, dois marinheiros se desfazem em lágrimas, implorando a seu comandante que permitisse que seu "irmão" Staden os acompanhasse imediatamente, cumprindo assim um desejo de seu pai moribundo, que queria vê-lo ainda antes de morrer. "Toda esta cena se representava porque eles queriam separar-se amigavelmente dos selvagens"(26). Staden reforça a dramaticidade da cena dizendo a seu mestre que ele bem gostaria de ficar, mas que todos viam que seus irmãos não queriam abandoná-lo. Abbati Possanga começa então a chorar, e fá-lo prometer que retornará com o primeiro navio, pois que tinha-o adotado como um filho. Após muitas lágrimas, o capitão do navio dá como resgate ao chefe da tribo o equivalente não a uma nau carregada, mas a cinco ducados em mercadorias (facas, machados, espelhos e pentes), e Staden obtém assim a sua liberdade.
A complexidade do enredo demonstra antes de tudo os limites e a fragilidade da reversão e negociação do medo empreendida por Staden, que deveria inseri-las e coaduná-las não apenas dentro das práticas indígenas, mas também dentro do frágil sistema de alianças criado entre tais índios e os europeus. Limites e fragilidade estes que são diretamente proporcionais ao exíguo terreno de comunicação comum existente entre as duas culturas.
O relato da experiência de Staden e as informações que ele publica, assim como outros relatos de viagem, para além da função de propaganda ideológica que vão cumprir no contexto de guerras religiosas na Europa, vão contribuir a partir de então para a elaboração de estratégias mais sofisticadas de ocupação e exploração do território americano. A partir dos dados que eles retransmitem sobre a cultura indígena, o europeu procura sistematizar e ampliar o conhecimento e o domínio sobre uma civilização que deverá constituir não somente a base da mão-de-obra de uma futura política de colonização, e a principal fonte de informações sobre as riquezas do país, mas também uma fonte de resistência física e cultural a ser considerada e suprimida.
Os limites aqui apontados no que concerne ao processo de "aceitação, reversão e negociação" do medo empreendido por Staden, assim como os limites da generalização do medo como categoria de análise de um contato intercultural para o conjunto dos documentos da época relativos à América, cremos, devem imperativamente ser levados em consideração em qualquer estudo que pretenda analisar a relação entre a imagem construída do ameríndio pela "literatura de viagem" do século XVI e a elaboração das diferentes estratégias de colonização do Brasil.
Assim, se as possibilidades heurísticas da noção de Medo revelam-se extremamente profícuas para a crítica e análise histórica, elas não são, entretanto, ilimitadamente elásticas na sua aplicação.
Ainda que nisso contrariemos a Staden, para quem o sucesso de seu procedimento teria sido total e ilimitado. Pois na "oração ao Deus todo-poderoso enquanto estava em poder dos selvagens, que queriam me devorar"(27), Staden identifica-se tão simplesmente com o povo eleito de Israel, que atravessa incólume o Mar Vermelho (leia-se, "mar Oceano") a fim de ser salvo, e com David, preservado em meio aos leões (leia-se, "selvagens infiéis").
Notas
1) Simultaneamente no interior da análise, a noção de Medo será questionada enquanto uma categoria suscetível (ou não) de ser definida e circunstanciada historicamente, e enquanto um conceito que permita a interpretação posterior, pelo historiador, do momento em que ele se manifesta, como confronto entre relações de forças desiguais. A despeito da larga difusão e do amadurecimento da corrente interpretativa denominada "história das mentalidades", poucos historiadores, até o presente, estudaram o passado sob este ângulo. Ver sobretudo o estudo de Jean DELUMEAU, La Peur en Occident.
2) STADEN, Hans, Hans Staden, suas viagens e cativeiro entre os selvagens do Brasil, tradução de Alberto Löfgreen, edição comemorativa do IV Centenário do Brasil, São Paulo, 1900. Para a elaboração deste artigo, consultamos também a edição francesa da Véritable histoire et description d’un pays habité par des hommes sauvages, nus, féroces et antropophages situé dans le nouveau monde, nommé Amerique, inconnu dans le pays de Hesse, avant et depuis la naissance de Jésus-Christ, jusqu’a à l’année dernière. Hans Staden de Homberg, en Hesse, l’a connu par sa propre expérience et le fait connaître actuellement par le moyen de l’impression, Marbourg, chez André Kolben, 1557, assim como a versão publicada por Henri TERNAUX-COMPANS em Voyages, relations et mémoires originaux pour servir à l’histoire de la découverte de l’Amerique, Paris, Arthus Bertrand, 1837, vol. 3.
3) Ver Alvar Nuñez Cabeza de Vaca, Naufragios y comentarios, Madrid, Calpe, 1922.
4) Ainda que ela esteja longe do tom euforicamente propagandista de Jean de Léry, ou de um Pierre Richier, por exemplo.
5) Segundo a separação retórica estabelecida pelo próprio Staden, retomando o modelo da argumentação jurídica romana (cuja origem histórica, por sua vez, articula práticas administrativas às artes da memória). Uma parte, deve-se notar entretanto, estrutura-se como co-discurso da outra.
6) Segundo expressão sugerida por Rolena ADORNO no seu interessante artigo "The negotiation of fear in Cabeza de Vaca’s ‘Naufragios’", in Representations, 33, winter 1991, pp. 163-199. Entretanto, Rolena Adorno vê o medo não só como meio de conhecimento, intermediador de um contato intercultural, mas também como instrumento posterior de intermediação desse contato dentro de uma estrutura mais institucional, já dentro da sociedade colonial estabelecida. O medo aparece em sua interpretação como algo que foi controlado, administrado, e o fruto desse aprendizado como algo que teria sido finalmente revertido na negociação institucional do contato branco/índio. No caso por ela analisado, Cabeza de Vaca primeiramente sobrevive ao medo. Em seguida, aprende a usar o medo em favor de sua própria sobrevivência. Num terceiro momento, após o reencontro com os espanhóis, protege o índio do medo, intermediando pessoalmente o contato entre uns e outros. Rolena Adorno acaba achando assim assim o "bom branco" ao lado do "bom selvagem", e apresenta-nos a lição moral do relato de Cabeza de Vaca na substituição do termo "conversão" pelo termo "pacificação", dentro de uma prática política.
7) Capítulo 4.
8) Capítulos 5, 7, 12, 15, 16.
9) Capítulo 16.
10) Ver o capítulo 17. Sua explicação é baseada na presença de víveres que possibilitariam as excursões guerreiras (peixes, no período da piracema), ou da época de amadurecimento do fruto que compunha o cauim, beberagem essencial do ritual antropofágico.
11) Capítulo 18.
12) Capítulo 20.
13) Capítulo 22.
14) Capítulo 24.
15) Ver o capítulo 24.
16) Capítulo 25.
17) Capítulo 26.
18) Ver o Capítulo 51, mas também o capítulo 40.
19) Os franceses, que tinham alianças com os Tupinambás, os Tamoyos, os Caetés, os Teremembes e os Potiguaras (mesmo se algumas dessas tribos já guerreavam entre si), utilizam-nos para fazer a guerra contra os Tupiniquins e os Tabajaras, tribos submetidas à influência portuguesa.
20) Staden procura demonstrar a efetividade dessa estratégia em diversas passagens, notadamente nos capítulos 33, 34, 37 e 39 (doenças) e 20, 36, 37, 46 e 47 (ação sobre os elementos naturais).
21) Ver o capítulo 22. As analogias que pontuam regularmente a sua narrativa fazem parte dessa estratégia de aproximação e separação de Si com relação ao Outro, de identificação, enfim.
22) Ver o capítulo 39.
23) Idem. E acrescenta: "Eu peço ao leitor de fazer bem atenção que eu conto tudo isso não para me divertir narrando coisas extraordinárias, mas para tornar evidentes as maravilhas que Deus fez em meu favor".
24) O devoramento de dois mamelucos católicos (e a ameaça do mesmo fim para outros três) vai ainda reforçar e precisar a qualidade desta eleição (ver capítulo 42), denotando inclusive que os próprios índios percebem (ou, ao menos desconfiam) a diferença entre o Deus católico e o Deus reformado, já continuam a preservar a vida de Staden. É o que o leitor deve supostamente perceber, por exemplo, na fala atribuída anônima e genericamente às velhas índias da aldeia: "Scheraeire (meu filho), conserve-me a vida. Quando nós de maltratamos, era porque nós te tomávamos por um desses portugueses que nós detestamos. Nós os pegamos e comemos em grande quantidade; mas então seu Deus não ficou tão irritado contra nós como o teu por causa de ti, o que nos prova que tu não és um deles" (capítulo 34).
25) Capítulo 49.
26) Capítulo 51.
27) Transcrita ao final da primeira parte de sua narrativa.
Autoria de Carlos Alberto de Moura Ribeiro Zeron, publicado como 'O Medo e a Relação com o outro: Hans Staden entre os Canibais Tupinambás in Revista TB (Tempo Brasileiro), Rio de Janeiro, 110: p. 55-70, jul.-set., 1992- Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa
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