O presente artigo focalizará sobre padrões geográficos de inovação por cerca de meio-século até o próspero desenvolvimento de uma indústria de refrigerar carne na América do Sul. O período de meio século de paz promoveu um ímpeto para o melhoramento por toda a região, mas na década de 1850 percebe-se uma clara evidência de que a abertura tecnológica e organizacional entre o Rio Grande do Sul e o Rio da Prata alargou-se significativamente. Apesar da carne congelada ter eclipsado todos os outros experimentos na conservação da carne e contribuído maciçamente na provisão de alimentos da Europa norte-ociedental, perdurando por mais de meio-século nas décadas seguintes, no Rio da Prata um trabalho considerável foi empreendido com outros métodos de preservar carne. A mais célebre destas experiências foi o extrato de carne Liebig em Fray Bentos que tirou aquele topônimo uruguaio da relativa obscuridade à fama mundial. O artigo remete para o significado destas iniciativas sul-americanas, oferecendo uma explicação para o seu padrão de localização.
A geografia histórica do comércio internacional de carne é um tema importante que conecta a América do Sul com a Europa, mais especialmente com a Inglaterra. As importações proveram uma solução ao problema de alimentar de uma população que crescia rapidamente melhorando a quantidade de comida disponível per capita(1). O crescimento dos ingressos e a receita do livre comércio em 1842 trouxeram uma elevação no consumo de carne na primeira nação industrial do mundo, de cerca de 36 kg per capita na década de 1840 para um pico de 60 Kg per capita a principios do século vinte(2). Isto é um importante indicador da melhoria geral da dieta nacional, a utilização de uma comida mais rica em proteínas. Junto com os grãos e o açúcar, a carne jogou um papel importante no movimento da revolução industrial.
Com a liberação do comércio, houve um estímulo considerável para as importações de alimentos. Mais que 40 por cento do suprimento de carne da Inglaterra foram importados antes das 1914(3). A maior parte desta carne veio do hemisfério sul, de países com populações pequenas em relação à sua capacidade de produção de alimentos. Somente a Argentina transportou anualmente mais de 350.000 toneladas de carne congelada e resfriada para a Inglaterra durante a Primeira Guerra Mundial, perfazendo sempre no mínimo 83 por cento das importações do país no setor de alimentos(4). A história do comércio de carne congelada é bem conhecida, de um modo geral, como um significativo exemplo de como novas demandas de alimentos transmitem sinalizações econômicas às periferias, com o poder de transformá-las. A carne congelada atraiu o interesse de geógrafos, especialmente no estudo do aparecimento de grandes corporações, integradas tanto horizontalmente como verticalmente, as quais controlaram todas as fases do comércio de carne, da produção ao consumo.(5)
Se a carne congelada contribuiu maciçamente à provisão de comida na Europa norte-ocidental desde a metade do século XIX até a Primeira Guerra Mundial, isto ainda permaneceu por mais algumas décadas. O foco principal do presente artigo é a experimentação, hoje pouco lembrada, que precedeu a refrigeração na América do Sul. Esta teve uma expressão espacial diferente, que permite uma explicação. No momento em que a globalização é um tema muito em voga, é conveniente refletir sobre as várias fases de seu desenvolvimento, particularmente no contexto das conexões entre Europa e América do Sul. Entre metrópole e periferia estavam as redes de empresários mercantis que estimularam experimentos. Embora estas redes tenham apresentado um pequeno impacto no sul do Brasil, seu significado para determinadas áreas do Rio da Prata foi maior.
Na Inglaterra, o debate da suficiência da base doméstica de produção de carne foi intenso durante os primeiros anos da década de 1850. A carne importada respondeu por quatro por cento da provisão total naquela década; já na década de 1861-70, constituiu dez por cento da provisão.(6) Estas importações estavam suprindo somente uma pequena parte da demanda total, mas a importação de carne já era importante em certos mercados especializados, como os Navy Commissioners. Já nos anos 1840, estes compravam carne enlatada de uma fábrica estabelecida no Danúbio (1227 toneladas).(7)Além disso, experiências de enlatamento já estavam acontecendo em Nova Gales do Sul. Os mercados especializados já poderiam ter efeitos locais muito importantes em determinados lugares da periferia mundial, especialmente onde haviam rebanhos de gado bovino significativos e fraca atividade comercial.
Se a década de 1850 trouxe um novo tipo de preocupações na Inglaterra crescentemente urbana e industrial, o mesmo pode ser dito para o grande sistema de pastagens do Pampa. Em 1852, o final de uma série prolongada de guerras na América do Sul sulista, foi seguido pela recuperação dos rebanhos de gado. A recuperação destes rebanhos e a expansão das instalações de abate (charqueadas e saladeros) conduziu inexoravelmente à saturação temporária dos mercados tradicionais nos complexos de plantation (Brasil e Cuba). Na vasta região do Pampa, o número de cabeças de gado abatido dobrou anualmente no período 1857-62 (de 736.400 a 1.350.000). O problema de excesso de oferta de matéria-prima estava concentrado no Rio Grande do Sul e especialmente no Uruguai onde a cota de matanças triplicou. A "quebra" veio nos primeiros anos da década de 1860, quando a depressão comercial, relacionada em grande parte com a Guerra Civil norte-americana, fez os comerciantes pensarem seriamente em como conquistar novos mercados para o charque. Como os preços do charque caiam, a liberdade para realizar experimentos com mercados mais distantes aumentou.(8)
Os interesses sul-americanos estiveram voltados primeiro para encontrar novos mercados para suas melhores carnes salgadas. No Uruguai, os diretores do Clube Nacional, uma entidade dedicada ao progresso material, fizeram um relatório em agosto de 1862 sobre a necessidade de abrir novos mercados para o charque. Esta era em parte uma reação aos monopólios encontrados na compra da mercadoria em Havana. Na sua extensa análise, foram detectados vários problemas-chave com o charque de boi. Primeiro, esta mercadoria era estritamente comercializada no livre-mercado, dado que era consumido principalmente por escravos, pessoas que tinham pequeno controle sobre suas dietas. Tão pouco estavam os escravos aptos para perceberem melhorias na qualidade da comida "siendo siempre igualmente pobres". Era difícil o charque competir com o bacalhau quanto aos padrões de consumo mais amplos. Produtos em geral, são utilizados onde é mais fácil promovê-los. Nos seus esforços por ir mais além do complexo de plantation, os diretores do Clube Nacional mostraram objetivos geográficos específicos; eles quiseram focalizar a Europa do norte, uma região com padrões históricos de consumo de carne fortes. Mais especificamente, eles miraram a Inglaterra para a experiência, particularmente as deprimidas cidades de algodão (cotton tows) onde planejaram se associar com figuras políticas eminentes como Richard Cobden e John Bright, enquanto colocavam "en sus manos los medios de salvar de la miseria a las clases pobres".(9)
Nestes esforços uruguaios para comercializar charque na Europa, as redes sociais dos comerciantes britânicos que trabalham fora de Montevideo foram vistas como vitais. O relatório do Clube de Nacional fez referência explícita ao seu valor. Na realidade, um dos signatários do relatório era o comerciante britânico Richard Bannister Hughes (1810-75). Ele teve um papel significativo no desenvolvimento uruguaio nutrindo experiências importantes com preservação de carne no seu novo saladero na parte ocidental do país. Outro rancheiro anglo-uruguaio importante, John D. Jackson, teve planos para prover a Inglaterra, Europa continental e China com charque, enquanto utilizava suas conexões familiares com Rathbones de Liverpool (uma empresa mercantil com conexões mundiais) para comercializar o produto.(10). Copiado em vez de melhorado, o projeto uruguaio foi adotado muito depressa no Rio Grande do Sul onde idéias semelhantes foram publicadas. Aqui os estrangeiros também parecem ter feito um papel importante; há evidências que o estímulo para mudança difundiu-se pela rede mercantil britânica. John Gardner, comerciante britânico no porto de Rio Grande, perguntou para um deputado na assembleia provincial do Rio Grande do Sul se ele poderia levar aos charqueadores de Pelotas a ideia de enviar charque para a Inglaterra. Isto seria como uma amostra, para ver se os processadores poderiam estabelecer um novo nicho de mercado de seu produto entre os pobres de Londres.
Até mesmo com os baixos preços do charque nos primeiros anos da década de 1860, a estrutura fiscal do Brasil limitou a viabilidade de exportar charque para novos mercados de longa distância. O assunto foi muito debatido, com os políticos locais bastante divididos quanto à possibilidade do Rio Grande do Sul lucrar com os habitantes pobres das grandes cidades da Europa. Havia muita especulação sobre como estavam ruins as condições de vida na Europa. Um dos deputados mais otimistas descreveu uma grande fábrica de velas e sabão em Pelotas que fervia patas de gado para seus óleos. Esta fábrica enlatou o resíduo "cujo odor nem o olfato do nobre deputado, nem o meu poderiam tolerar". Duas colheres desta geleia, com uma bolacha em uma tigela fizeram o almoço de um trabalhador inglês. Tal era a fome na primeira nação industrial que até mesmo este produto era usado como comida. O resultado do debate prolongado foi que a província decidiu pagar um prêmio de oito contos (cerca de 880 libras esterlinas) a quem administrasse a introdução "em qualquer parte de Europa, de uma carga de carne salgada de qualquer tipo, em estado perfeito, nunca menos de 8.000 arrobas [120 toneladas] e fabricado nesta província”. (11)
Todos estes esquemas, seja na Prata ou no Brasil sulista, trouxeram resultados muito limitados. A maioria da carne importada de Inglaterra nesta época veio dos Estados Unidos, geograficamente mais próximo, na forma de carne de porco gordurosa e fortemente salgada que foi vendida a preços baixos aos consumidores mais pobres. Seja vindo dos Estados Unidos, Austrália ou América do Sul, o charque provou um considerável arraste no mercado. (12) O presidente provinciano de Rio Grande do Sul reclamou em 1864 do habitual processo local de produção para obter "um artigo repugnante para os hábitos das pessoas". (13)Escrevendo da representação britânica em Buenos Aires em 1866, Francis Clare Ford também estava decepcionado com a aparência do charque, mas reconheceu seu valor nutritivo, embora em uma observação carregada de racismo do tempo e do lugar: "Deve ser admitido que a carcaça humana prosperará neste alimento, como podem testemunhar as figuras robustas dos machos e as formas arredondadas da porção feminina da população coloured do Brasil”. (14)Este contemporâneo comentário demonstra que o problema de abrir mercados europeus para o charque não estava amarrado apenas na sua aparência, mas também pela sua associação com a escravidão. Richard Seymour, um inglês em que tentou conduzir uma estância em Entre Rios, Argentina, chegou à conclusão, na década de 1860, que as pessoas pretas que trabalham nas plantações eram o único grupo capaz comer o charque. (15)
A escassez crescente de alimentos em face ao inchaço da população na Europa promoveu um ímpeto para o desenvolvimento e o uso de novas tecnologias. No Atlântico Norte, a refrigeração era o foco principal para experiências. Em Inglaterra, o número de patentes registradas para refrigeração de carne através de meios mecânicos demonstrou um aumento acentuado: de 11 (anos 1850), para 30 (anos 1860) e 56 (1870-74). (16). A ciência do século XIX também se voltou à química de carne, com a ênfase em preservação para nutrição. Uma variedade larga de esquemas foi tentada, inclusive a injeção de agentes conservantes e a embalagem a vácuo da carne. (17) O mais distinto trabalho a este respeito foi conduzido por Justus von Liebig (1803-73), cuja pesquisa conteve explicitamente elementos humanitários. Liebig foi convencido da importância nutricional dos sucos de músculo, chegando à conclusão que era importante comer carne junto com seu molho ou sopa. Trabalhando sobre os achados de químicos franceses do princípio do século XIX, ele desenvolveu, em 1847, o "extractum carnis" (extrato de carne). (18) Já na década de 1850, o extrato de Liebig era muito demandado em Munich, mas era usado principalmente como um remédio, algo que só os ricos poderiam dispor. O obstáculo principal para ampla produção de extrato na Europa era o alto custo da matéria-prima, a carne de boi. Embora Liebig tivesse encorajado empresários para produzir extrato de carne em Buenos Aires e na Austrália, o lapso entre os seus achados teóricos e a produção em larga escala foi relativamente longo.
O escopo para a ciência na periferia mudou bastante abruptamente na primeira metade da década de 1860. Na Europa, doenças do gado aumentaram o preço de carne "quase além do alcance de qualquer rico", de acordo com o autor de um relatório de governo britânico. (19) Com os mercados tradicionais saturados, o baixo preço do charque de boi promoveu também um ímpeto para o desenvolvimento e o uso de novas tecnologias. Dadas estas circunstâncias, uma onda de experimentação foi empreendida na América do Sul. Algumas dessas experimentações aconteceram em torno dos principais lugares estabelecidos de matança, especialmente em Buenos Aires e Montevidéu, mas muito mais ocorreu nos novos saladeros abertos por empresários norte ocidentais europeus ao longo da margem uruguaia do Rio Uruguai. 20 Estas novas plantas foram um dos resultados práticos do bloqueio anglo-francês que abriu os rios platinos ao comércio internacional. As razões pelas quais os novos saladeros apareceram nesta região específica eram várias. Os assuntos de navegabilidade eram importantes, como era o desejo dos empresários que faziam o possível para evitar conflitos como os na Argentina, que continuava na luta metrópole-periferia, entre Buenos Aires e o interior. Estas novas plantas eram claramente operações do tipo enclave, timidamente relacionadas à geografia econômica mais próxima da matança. Na periferia ocidental do Uruguai, elas percebiam uma limitada competição com os saladeros de Montevidéu estabelecidos há mais tempo, e assim estavam habilitadas a pagar um preço mais baixo pela sua matéria-prima. Os empresários europeus norte ocidentais demonstraram pouco interesse nas charqueadas do sul do Brasil, ainda inseridas em um sistema de trabalho de escravo.
Nós vislumbramos um sentido de importância contemporânea destes estabelecimentos uruguaios, principalmente os presentes na literatura de relatórios de viagem. Thomas J. Hutchinson, o cônsul britânico em Rosário, Argentina, deixou avaliações detalhadas de alguns destes esforços principais baseado em observações pessoais. (21) Em Paysandú, o "Novo Processo para a Preservação de Carne para Comida" do Dr. John Morgan era experimentado no saladero pertencente à Daniel e Richard Williams (britânico) começando em maio de 1865, com o produto transportado a Liverpool. Morgan era o Professor de Anatomia no Real College of Surgeons de Dublin. Necessitando intervir cirurgicamente no animal, a essência de sua técnica, "infiltração forçada", refletiu sua capacidade. Depois que o gado tinha sido sangrado, seus sistemas circulatórios eram bombeados e recheados de salmoura. Embora os observadores contemporâneos tenham discutido que muito pouco equipamento era necessário e que um boi pudesse ser preservado em dez minutos, o processo soa realmente muito complicado. Eram usadas tábuas para indicar o tempo da operação. (22) A atração principal deste sistema em relação aos métodos de salgadura tradicionais era que a carne retinha seus sucos naturais. Além de "elementos de legumes, como antiescorbúticos, [que poderiam] ser acrescentados artificialmente à carne na forma de ácido fosfórico misturado no fluido a ser injetado”. (23) Embora a planta em Paysandú tenha exportado 227 toneladas de carne de boi preservada em seu primeiro ano de operação, parece que encontrou maiores dificuldades quanto aos custos de transporte. Evidências mais claras nos níveis subsequentes de produção foram difíceis de encontrar. Quando o Cônsul Hutchinson visitou a planta em Paysandú em março de 1867, ele "não pode averiguar nenhum detalhe do sucesso comercial do empreendimento”. (24)
Cerca de 160 quilômetros ao sul de Paysandú, a estância e o saladero Prange (alemão) ficavam situados à beira do rio. (25) Durante uma visita a esta propriedade, Hutchinson notou que se estava a ponto de tentar a preservação de carne de boi utilizando bissulfato de visgo, a fórmula de Henry Medlock e William Bailey. Ele havia tentado anteriormente obter a carne de boi preparada por este método ao passar por Montevidéu, avaliando-lhe favoravelmente por "guardar um delicado e leve gosto calvário em seu sabor”. (26) Prange transformou seu negócio em uma empresa de utilidade pública, a Estância Prange Companhia Limitada, formada em Londres em 1867/68.(27)
Apesar de todos os esforços para reproduzir a ciência europeia ao longo do Rio Uruguai, foi a Companhia de Liebig em Fray Bentos que a pôs em relevo. Enquanto ao redor 1850, a economia aqui ainda era extremamente incipiente, baseado em pouco mais que a exploração de seus recursos de madeira para suprir barcos a vapor de combustível, este lugar pronto se tornou um nome familiar, muito bem reconhecido ao redor do globo antes do final do século. (28)De todos os locais potenciais no mundo para a experiência, as contingências históricas e geográficas na seleção de Fray Bentos são consideráveis. Elas envolvem uma rede social distintiva de ideias, enquanto unindo a Europa, América do Sul e Austrália. O que veio a transformar-se em um amplo empreendimento industrial, descrito pelos historiadores uruguaios José Pedro Barrán e Benjamín Nahum como "la primera experiencia del gran capitalismo mundial" no seu país, teve suas raízes em um saladero estabelecido pelo mercador britânico Richard Hughes.(29)
Hughes provavelmente estaria relembrando muito de seus esforços em 1841 para abrir o Paraguai ao comércio britânico. (30) Seu envolvimento no desenvolvimento sul-americano foi profundo e se apresenta como um bom exemplo de um padrão identificável no Rio da Prata nas décadas seguintes à independência, um dos comerciantes britânicos residentes na América do Sul preparado por sua experiência para explorar uma vasta área geográfica à procura de riqueza, o que poderia ser denominado "análise locacional para aventura mercantil".(31) Quando jovem, Hughes trabalhou em casas mercantis em Santo Domingo (República Dominicana) e no Rio de Janeiro. Antes da década de 1830 ele já possuía seu negócio, comerciando peles de Montevidéu. 32Em 1855 Hughes abriu um saladero em Corrientes, no alto Rio da Prata, mas que foi colocado à venda em abril de 1858. A interpretação existente na literatura é de que faliu. (33)Parece mais provável que Hughes fez uma escolha consciente para investir capital em outro local. Sutil para seguir um padrão familiar de comerciantes que investem em terra, ele parece ter pesado suas opções cuidadosamente antes dos primeiros anos da década de 1850. Ele ainda rejeitou uma oferta de terra na província de Buenos Aires ainda exposta à resistência indígena, comprando em vez disso uma grande fazenda no Uruguai ocidental próximo a Fray Bentos, o melhor porto fluvial em todo o Rio Uruguai. (34) O saladero em Fray Bentos foi construído entre 1859 e 1861 sob a direção de Hughes.(35)
Os empreendimentos anteriores seguiam um padrão, no qual os europeus norte ocidentais com capital procuraram periferias de recursos para desenvolver. Talvez os aspectos mais distintivos sobre Hughes eram sua energia e o seu grau de envolvimento com os negócios de Uruguai. Por exemplo, ele fez parte da sociedade, fundando o Clube Nacional de Uruguai em 1860, sendo o único líder daquela organização que não leva um nome hispânico. (36)
A outra figura de importância fundamental para o desenvolvimento de Fray Bentos foi também um europeu norte ocidental. Georg Christian Geibert, um engenheiro ferroviário alemão residente no Uruguai e familiarizado com os escritos de Liebig na química de carne, pensou que Fray Bentos poderia funcionar como um local para testar a fórmula de Liebig. Considerando que utilizou aproximadamente trinta quilogramas de carne magra para produzir um quilo de extrato, sua fórmula era muito difícil de agradar nesta geografia econômica. Exigia matéria-prima barata. Giebert escreveu a Liebig, posteriormente o visitou em Munich, em 1862. Uma pequena fábrica, a Société de Fray Bentos Giebert & Cie., fixou-se ao lado do saladero para fabricar extrato através de um sofisticado processo de retalhar cozinhando em vapor. É notável que alguma da tecnologia utilizada, "evaporação na panela a vácuo", foi emprestada dos avanços no refino de açúcar, outro artigo de grande importância nas Américas. (37)
O empreendimento de Giebert foi um sucesso comercial. O projeto foi ampliado rapidamente em 1865 pela circulação em Londres do Extrato de Carne da Companhia Liebig, um marco na procura de mercados novos para o gado. Esta companhia foi logo vendendo grandes quantidades de extrato de carne aos exércitos e aos cidadãos pobres da Europa. O produto também teve um importante papel de apoio na guerra colonial e era extensivamente usado pelos exploradores, inclusive por Henry Morton Stanley nas suas viagens pela África. Construindo sua rede com base no conhecimento dos comerciantes de pele de Antuérpia a companhia de Liebig levou muito seriamente a questão da comercialização. Depois de alguns anos, agências para a venda de extrato tinham sido estabelecidas nos Estados Unidos, México, Venezuela, Brasil, Chile e nas colônias asiáticas holandesas (Java), além de quase todos países europeus. (38) Uma estimativa da escala de atividade em Fray Bentos pode ser obtida das estatísticas de seu resíduos e do consumo de carvão. Ao final da década de 1860, a planta estava usando cerca de seis mil toneladas de carvão por ano e jogando anualmente ao redor de vinte toneladas de resíduos de animais no Rio Uruguai.
Da base de extrato de carne, a companhia de Liebig obteve posteriormente desenvolvimentos técnicos ao longo do século XIX, expandindo sua base de produção para incluir a famosa carne de boi salgada. Como a indústria sul-americana de refrigeração de carne expandiu-se para além das principais cidades nos primeiros anos do século XX, a planta de Fray Bentos tornou-se cada vez mais marginal dentro das operações de Liebig. A companhia vendeu a planta de Fray Bentos em 1924, mas o reconhecimento de mercado do nome "Fray Bentos" era tão forte que a companhia sabiamente reservou os direitos legais para comercializar sua carne de boi salgada sob aquele rótulo. O número de pessoas no mundo de língua inglesa que ainda hoje associam as palavras Fray Bentos com a ideia de que significa carne de boi salgada em espanhol em lugar de ser um topônimo provavelmente não é baixo. Pelo menos um autor registrou a experiência de como por volta de 1950, em Londres, o rótulo de "Fray Bentos" carregava imagens de uma parte do mundo aparentemente "não atingida pelos rigores de austeridade do pós-guerra”. (39) Qualquer incursão ao redor das estantes de cozinha revelará outros produtos alimentares com associações locais fortemente baseadas no lugar, desde o "A" do bitter aromático Angostura do Dr. Siegert, patenteado em 1824, até o resto das letras do alfabeto.
As sementes de modernização na indústria de carne sul-americana ocorreram em uma conjuntura histórica muito específica. Quando a recuperação de uma base ampla de recursos acompanhou a depressão no sistema de comércio da costa atlântica, houve as condições para experimentação. Mesmo assim, a maioria das experiências descritas neste curto artigo foi apartada em face ao próspero desenvolvimento da refrigeração. Uma primeira remessa de carne de boi resfriada de Buenos Aires para Rouen em 1876 anunciou a era nova. A refrigeração prontamente eclipsou todos os outros esforços para a preservação da carne e contribuiria maciçamente à provisão de comida da Europa norte ocidental. Embora os preços estivessem muito deprimidos no início da década de 1860 o comércio de charque não desapareceu. Ele permaneceu como instrumento condutor do desenvolvimento para a economia pastoril de regiões periféricas, como o Rio Grande do Sul, ao longo do século XIX.
A indústria de carne era apenas um fragmento, embora importante, em uma relação econômica maior entre a Inglaterra e a Prata. Isto é de interesse historiográfico, principalmente sobre a questão de se a Inglaterra manteve um "império informal" na região. Enquanto Andrew Thompson discute que isto era "em essência um mito", sua conclusão parece prematura quando muito da conduta dos atores centrais para a expansão econômica britânica nesta região permanece por ser estudado. (40) Os pioneiros comerciantes europeus norte ocidentais, especialmente britânicos, por cerca de meio-século pavimentaram o caminho para a expansão da influência comercial britânica na segunda metade do século XIX. Em um estudo altamente polêmico, Emilio Manuel Fernández-Gómez discute que o significado completo de muitas das figuras da pioneira comunidade britânica rio-platense foi esquecido, um fenômeno relacionado talvez ao surgimento do nacionalismo na Argentina. Ele está coberto de razão ao reivindicar que estas pessoas tiveram uma influência muito maior que o seu número. (41) O assunto é retomado, e com maior força, no estudo detalhado de Peter Winn sobre as relações britânicas com o Uruguai. Os empresários britânicos mais proeminentes naquele país durante a segunda metade do século XIX chegaram antes da década de 1850. 42 É necessário impulsionar a pesquisa sobre as contribuições europeias para a tecnologia sul-americana de processamento de carne em tempos mais distantes. Um detalhado estudo setorial do processamento de carne no período de 1780-1880, examinando as relações entre redes mercantis na América do Sul meridional e a ciência e a tecnologia europeia poderia ter implicações historiográficas bem significantes.
Notas
1. Sobre a longa luta por alimentar a população mundial, ver CLIVE PONTING, A. : Green History of the World: The Environment and the Collapse of Great Civilizations. London: 1993. Especialmente pág. 115 no presente contexto.
2. PERREN, Richard. The Meat Trade in Britain, 1840-1914. London, 1978. pág. 216.
3. Ibid.
4. PLATT, D.C.M. Latin America and the British Trade, 1806-1914. London, 1973. pág. 260, 263-64.
5. Para uma gama de aproximações de pesquisa, veja entre outros estudos, COLIN CROSSLEY, J. The Location of Beef Processing. Annals of the Association of American Geographers. nº 66, 1976, pág. 60-75; ROCHE, Michael M. International Food Regimes: New Zealand's Place in the International Frozen Meat Trade, 1870-1935. Historical Geography nº 27, 1999, pág. 129-51.
6. PERREN, R. Meat Trade in Britain, pág. 69.
7.Ibid., pág. 70.
8.Ver BELL, Stephen. Campanha Gaúcha: A Brazilian Ranching System, 1850-1920. Stanford, Calif:, 1998, pág. 79-81.
9. Exposición de la Comisión Directiva del Club Nacional sobre la necesidad de abrir nuevos mercados a las carnes saladas. Montevideo, 20 de Agosto de 1862, reimprimido em BARRAN, José Pedro e NAHUM. Benjamín. Historia rural del Uruguay moderno. Montevideo, 1967-78, 7 vols. vol. 1, pág. 31-38.
10. MARRINER, SHEILA. Rathbones of Liverpool, 1845-73. Liverpool, 1961, pág. 44-46.
11. Veja meu Campanha Gaúcha, especialmente pág. 138-40.
12. PERREN, R. Meat Trade in Britain, pág. 71-72.
13. PROVÍNCIA DO RIO GRANDE DO SUL. Relatório apresentado à Assembléia Legislativa, em 10-03-1864 pelo presidente Esperidião Barros Pimentel, na 1a. sessão da 11a. legislatura, pág. 63.
14. CLARE FORD, Francis. Report on the Methods Employed in the RiverPlate for Curing Meat for European Markets. Casa da Câmara dos Comuns (Londres) sessional papers (Documentos Parlamentários) 1866, LXXI, pág. 622.
15. SEYMOUR, Richard Arthur. Pioneering in the Pampas: or, the First Four Years of a Settler's Experience in the La Plata Camps. Londres, 1869, pág. 119.
16. PERREN, R. Meat Trade in Britain, pág. 82.
17. Há uma revisão interessante de métodos em HUTCHINSON, Thomas J. The Paraná; with Incidents of the Paraguayan War, and South American Recollections, from 1861 to 1868. Londres, 1868, pág. 222-32.
18. BROCK, William H. von de Justus Liebig: the Chemical Gate keeper. Cambridge, 1997, especialmente pág. 224-33.
19. VADEIE, Methods Employed in the River Plate, pág. 621.
20. Veja BELL, Stephen. Early Industrialization in the South Atlantic: Political Influences on the Charqueadas of Rio Grande do Sul Before 1860, Journal of Historical Geography nº 19, 1993, especialmente pág. 406-7.
21. Hutchinson escreveu extensivamente sobre América do Sul e Oeste a África. Um sócio da Royal Geographical Society, ele fornece um bom exemplo das ligações íntimas entre empreendimentos governamentais e a geografia do século XIX.
22. Existem detalhes da planta de Paysandú e do processo de Morgan em HUTCHINSON, The Paraná, pág. 223-27, 394-95.
23. FORD, Methods Employed in the River Plate, pág. 622.
24. HUTCHINSON, The Paraná, pág. 395.
25. O estancia de Prange ficava situada perto do atual porto de Nueva Palmira. Aquele porto é o termo para a Hidrovia projetada para melhorar o acesso fluvial ao coração da América do Sul. Se a carne era um instrumento principal de desenvolvimento há 150 anos atrás nesta região, hoje é o transporte de feijão-soja de Mato Grosso e Bolívia.
26. HUTCHINSON, The Paraná, pág. 232.
27. BARRAN e NAHUM, Historia rural del Uruguay moderno, 1(1), pág. 329.
28. Veja o verbete que descreve o crescimento rápido da " cidade nova " de Fray Bentos em Orestes Araújo, Diccionario Geográfico del Uruguay 2d ed. (Montevideo, 1912) pág. 202-4.
29. BARRÁN e NAHUM, Historia rural del Uruguay moderno, 1(1), pág. 626.
30. Veja WHIGHAM, Thomas Whigham. Some Reflections on Early Anglo-Paraguayan Commerce, The Americas, vol. 44 (1987-88), pág. 282-83.
31. BELL, Stephen. Early Industrialization in the South Atlantic, especialmente pp. 405, 408. Eu fiz esta observação anteriormente pensando em Samuel Fisher Lafone, o curto período geográfico de sua carreira na América do Sul marcou o desenvolvimento econômico da região das Ilhas Falkland até as minas de Catamarca, Argentina.
32. Há detalhes biográficos para esta importante figura na Revista de la Asociación Rural del Uruguay (31 de dezembro de 1893), pág. 565. No Rio de Janeiro, Hughes trabalhou para Carruthers e Companhia, a mesma empresa de Mauá, o grande empresário brasileiro. Esta pode ser a raiz das suas subseqüentes ligações empresariais no Uruguai. Também veja SCHULKIN, Augusto I. Historia de Paysandú: diccionario biográfico. 3 vols. Buenos Aires, 1958, vol. 2, pág. 201-11.
33. WHIGHAM, Thomas. The Politics of the River Trade: Tradition and Development in the Upper Plata, 1780-1870. ALBUQUERQUE, N. Mex., 1991, pág. 169-70.
34. Para detalhes da oferta de terra em Buenos Aires, veja Schulkin, 2, pág. 203.
35. Veja o verbete que descreve o crescimento rápido da " cidade nova " de Fray Bentos em ARAÚJO, Orestes. Diccionario del de Geográfico o Uruguai 2d ed. Montevideo, 1912, pág. 202-4.
36. BARRÁN e NAHUM, Historia rural del Uruguay moderno, 1(1), p.130.
37. Veja BROCK. Von de Justus Liebig, especialmente pág. 226.
38. CROSSLEY, J. Colin e GREENHILL, Robert.The River Plate Beef Trade. Em PLATT, D.C.M. (ed.). Business Imperialism, 1840-1930,: An Inquiry Based on British Experience in Latin America. Oxford, 1977, pág. 325-26.
39. WANGFORD, HANK. Lost Cowboys. Londres, 1995, pág. 184. Wangford dedica um capítulo inteiro do livro dele para Fray Bentos, um lugar descrito hoje como uma "cidade industrial fantasma".
40. THOMPSON, Andrew. Informal Empire? An Exploration in the History of Anglo-Argentine Relations, 1810-1914. Journal of Llatin American Studies nº 24, 1992, especialmente pág. 436.
41. FERNÁNDEZ-GÓMEZ, EMILIO MANUEL.Argentina: gesta británica: revaloración de dos siglos de convivencia. 2 vols. Buenos Aires, 1993, 1995, vol. 1, pág. 11, 13-14.
42. WINN, Peter. Inglaterra y la tierra purpúrea: a la búsqueda del imperio económico (1806-1880). Montevideo, 1997, especialmente pág. 49 e 66.
Autoria de Stephen Bell, Departament of Geography, University of California, Los Angeles (UCLA). Tradução para o português de Paulo R. Rodrigues Soares, como ‘Redes Sociais e Inovação na Industria Sul-Americana na Época da Pré-Refrigeração:uma Perspectiva Comparativa entre o Brasil Meridional e o Uruguai. Publicado em http://www.ub.es/geocrit/ , editado por Leopoldo Costa.
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