10.07.2011

O RESCALDO -"ESTAÇÃO CARANDIRU"


ESTAÇÃO CARANDIRU

O livro "Estação Carandiru' de Dráuzio Varella foi lançado em 1999 pela 'Companhia das Letras'.O médico Dráuzio Varella, famoso pela sua participação em programas da Rede Globo de Televisão trabalhou durante 10 anos como voluntário na Casa de Detenção de São Paulo (popularmente conhecido como Carandiru) que chegou a ter quase oito mil detentos, sendo o maior presídio da América do Sul. Foi o palco do massacre de 111 presos em 2 de outubro de 1992 que tornou  motivo de polêmica . O presídio foi desativado e parcialmente demolido em 2002, sendo transformado em um parque estadual. O livro ganhou o Prêmio Jaboti 2000 como 'Livro do Ano' e virou filme em 2003, dirigido por Hector Babenco. Estaremos postando alguns dos capítulos mais interessantes do livro. Este é o último capítulo do livro.

O RESCALDO

Quando os tiros calaram, caiu um silêncio de morte na galeria. Atrás do murinho, Dadá só pensava no desgosto da mãe com a morte dele e no arrependimento por não ter lido o Salmo 91. Minutos depois, escutou passos de coturno:
- Quem está vivo, levanta, tira a roupa e sai pelado!
Ergueram-se o Itaquera e ele:
- Ainda tentei reavivar um companheiro que eu conhecia da rua, mas ele já estava de olho virado. Saí para a galeria. Maior esgano, ó, um corredor polonês de PM: corre, corre! Levei paulada nas costas e pontapé nas pernas.
Quando chegou na gaiola, antes da escada, um policial soltou um pastor preto que pulou no pescoço do ladrão ferido. Dadá deu uma finta no animal e escapou para a escada, mas levou um chute que veio não sabe de onde, desequilibrou-se nos degraus lambuzados de óleo, caiu e bateu a cabeça. O pastor veio em cima:
- O tombo causou um branco na mente. Foi até bom, porque na hora nem senti as mordidas do cachorro nas pernas e no testículo.
Acordou com o cassetete do PM:
- Levanta, vagabundo, mão na cabeça!
Como Dadá, os demais sobreviventes tiraram a roupa e correram no meio da pancadaria, escada abaixo, escorregando no óleo e no sangue derramado, com os cachorros no encalço. Jacó, o traficante por telefone, diz que não houve espaço para altruísmo:
- Saí do xadrez e o cachorro veio atrás. Quando ia me alcançar, desviei por trás de um companheiro mais gordo, de modo que ele ficou entre a fera e eu. Infelizmente para ele, coitado, que tomou uma mordida no braço, que nem rodando o animal no ar ele largava. Não tive condições de socorrer o rapaz, porque ali era cada um por si e Deus por quem Ele julgava merecedor.
Majestade controlou os nervos, a cabeça entre as mãos, até ouvir a ordem de descer:
- Saí desabalado, para escapar da pancadaria. A pressa foi tão nervosa que, ó, esqueci de tirar a roupa.
Desceu as escadas de bermuda e a inseparável camisa do Corinthians. Quando chegou no pátio interno, havia um PM com a metralhadora apontada para os que desciam. Entre as pernas do policial jazia um homem morto, com sangue escorrendo pela boca. Era o Santão, que nos ajudava no cinema. Apesar do tempo de cadeia, Majestade tomou um choque ao ver o corpo do amigo:
- Quando vi o Santão ali, feito troféu no meio das pernas do PM com a metranca, meu raciocínio paralisou.
Ao vê-lo de roupa, o policial soltou a trava da arma:
- ó, corintiano mosca-de-boi, está vestido por quê?
Ao ouvir o som do destrave, Majestade e todos os que estavam perto jogaram-se no chão, um por cima dos outros. Ele diz que nunca tirou a roupa mais depressa:
- Mergulhei de peito no chão e já levantei pelado.
Os policiais dispuseram a massa em fila no pátio interno do pavilhão e ordenaram que todos sentassem com os braços cruzados sob as coxas e a cabeça entre os joelhos. Quem levantasse o olhar para ver o que se passava, tomava cacetada e mordida dos pastores alemães. Ficaram horas sentados no pátio, pelados, em silêncio, com a Pm e os cachorros excitados em volta. Quietinho, preocupado apenas em preservar a vida, Chico Heliópolis, ladrão da favela de mesmo nome, perdeu a corrente de ouro e a santa protetora que ganhou da madrinha na primeira comunhão:
- O PM abaixou do meu lado: vê se é bom fazer isso com os outros, seu vagabundo, e arrancou a correntinha do meu pescoço. Justamente eu que só roubei firma, banco e mansão e nunca me sujei por coisa miúda.
Lá pelas dez da noite a PM tomou posição na escada e nas galerias e começou a recolher os presos. Subiram os cinqüenta ou sessenta da primeira fila. Minutos depois, mais tiros, gritos e latidos. No pátio, com medo das balas, os homens procuravam se arrastar, discretamente, para as filas de trás. Gaguinho, um apontador de jogo do bicho e vendedor de maconha que trabalhava na copa dos funcionários, descreveu assim o caminho de volta:
- Na subida da escada, tem uma coisa interessante: estava lavado de sangue, um monte de cadáver espalhado. Não podia parar a fila, os polícias mandavam correr e ameaçavam: se alguém me espirrar sangue, vai morrer! 
Tinha que correr descalço naquela sangueira, sem levantar os pés para não sujar os elementos, que eles queriam achar pretexto pra matar. A aversão dos policiais pelo sangue derramado custou a vida de vários desastrados, como explicou Isaías, um ladrão que perdeu o movimento do braço esquerdo por overdose de crack e anos depois morreu de tuberculose na enfermaria:
- Tudo alucinante, na velocidade, e ainda mandava nós
gritar: Viva o Choque! Viva o Choque! Um tiozinho que vinha,
em vez de pisar num finado estendido na passagem, desviou para o lado do polícia encostado na parede, só que pisou na poça de sangue e espirrou na calça do cidadão. O polícia não teve dúvida: parou a escada na hora e pou, pou, dois tiros, na frente de todo mundo.
Atirou, puxou o corpo de lado e gritou para um preso de óculos que vinha em seguida na fila:
- Você aí, carrega esse cadáver lá para baixo! 
Nesse momento, a mente do finado deve ter entrado em pane, porque ele caiu no choro e disse que não tinha coragem. Ah! Você não vai, é? Deu um tiro seco, que só não foi à queima-roupa porque o rapaz estava pelado, como todos nós. Numa fração de segundo, já virou para a fila: Não pára! não pára! Os homens foram distribuídos ao acaso nos xadrezes. Em cada um, colocavam o máximo possível, trancavam e lotavam o seguinte, até prenderem todos. Os corpos tiveram que ser carregados para o térreo pelos próprios presos. Jacó, o baixinho que traficava por telefone, foi um dos carregadores.
- Chegaram para mim e mais quatro: Vocês; aí, podem catar os cadáveres da galeria do segundo andar e levar pra Escola, lá embaixo! A gente pegava nas pernas e nos braços e descia. Tudo depressa, com os polícias apavorando.
A essa altura, embora os acontecimentos já lhe tivessem anestesiado o medo da morte, Jacó se preocupou por estar descalço, com os pés esfolados do futebol:
- Tanto HIV na cadeia, se escapar vivo vou acabar
pegando AIDS. Foi quando um PM mandou a gente empilhar direito
os corpos, na Escola, que estava a maior bagunça de braço e perna, as cabeças cada uma para um lado. Nisso que ele está falando, alguém se mexeu na pilha. Ele foi dar uma coronhada de metralhadora no cara e se distraiu, aonde que eu me aproveitei e deitei num cantinho, no meio dos falecidos.
Ficou imóvel na brecha entre os corpos, com a respiração quase presa, até que os quatro entraram com o último cadáver. O PM se dirigiu a eles:
- Terminou? Eles responderam que sim. Rã, rã, rã, rajou os quatro. Caíram duro por cima dos próprios companheiros que a gente tinha carregado. Enquanto o medo da AIDS salvava a vida de Jacó, um oficial da PM dava ordem para Dadá descer os corpos do terceiro andar:
Só na gaiola do terceiro tinha uns trinta cadáveres
amontoados. A pilha tinha quase dois metros de altura. Descemos eles para o carro do IML estacionado na entrada. já estavam até rijos, com uns arrombos no peito. Quando Dadá e os companheiros acabaram, o tenente mandou chamá-lo: não é?
- Vem cá, vagabundo, você está em latrocínio de polícia,
- Eu, não senhor, vim preso de laranja.
- Você matou polícia, sim, não me engana!
- Nunca matei ninguém, senhor, minha pena é pouquinha, três anos só. Caí de laranja.
- Então, antes que eu me arrependa, sobe com essa fila aí. Sai da minha presença, que você vai pegar o maior boi porque tem a cara do meu filho mais velho!
Mais tarde o ladrão de Carapicuíba deu graças a Deus pela semelhança física com o primogênito do militar:
- Eu tirei a noção de que o filho dele me salvou a vida, depois de ver que os demais carregadores sumiram para sempre.
Com os presos trancados, os carros da polícia e do IML transportaram os mortos até tarde da noite. Nas celas o ambiente era trágico, diz Dadá:
- Não conseguimos dormir dentro do barraco. Uma, porque nós ficamos perturbadíssimos, e, outra, que o cheiro de carniça era forte; o chão estava de sangue até o rodapé. Só no dia seguinte é que limpamos tudo, e eu arranjei uma Bíblia.
No livro sagrado, Dadá finalmente leu o Salmo 91 recomendado pela mãe na véspera, e diz que chorou feito criança com o trecho:
- Mil cairão a teu lado e dez mil à tua direita, mas tu não serás atingido; nada chegará a tua tenda.
No dia 2 de outubro de 1992, morreram 111 homens no pavilhão Nove, segundo a versão oficial. Os presos afirmam que foram mais de duzentos e cinqüenta, contados os que saíram feridos e nunca retornaram. Nos números oficiais não há referência a feridos. Não houve mortes entre os policiais militares.
F I M

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