10.02.2011

LULA - "ESTAÇÃO CARANDIRU"



ESTAÇÃO CARANDIRU

O livro "Estação Carandiru' de Dráuzio Varella foi lançado em 1999 pela 'Companhia das Letras'.O médico Dráuzio Varella, famoso pela sua participação em programas da Rede Globo de Televisão trabalhou durante 10 anos como voluntário na Casa de Detenção de São Paulo (popularmente conhecido como Carandiru) que chegou a ter quase oito mil detentos, sendo o maior presídio da América do Sul. Foi o palco do massacre de 111 presos em 2 de outubro de 1992 que tornou  motivo de polêmica (relatado pelo autor nos capítulos : 'O LEVANTE', 'O ATAQUE' E 'O RESCADO'). O presídio foi desativado e parcialmente demolido em 2002, sendo transformado em um parque estadual. O livro ganhou o Prêmio Jaboti 2000 como 'Livro do Ano' e virou filme em 2003, dirigido por Hector Babenco. Estaremos postando alguns dos capítulos mais interessantes do livro.


LULA

Fui apresentado ao Lula no ambulatório por causa de um alemãozinho sardento com uma facada na região glútea. O rapaz, pálido, com uma águía de asas abertas tatuada nas costas, vinha deitado de bruços na maca, com as calças abaixadas e a cueca rasgada pela lâmina. O golpe tinha atingido a musculatura profunda mas poupado os nervos e vasos sangüíneos mais importantes; bastava lavar e suturar. Com uma fila de doentes por atender, achei que devia encaminhar o doente para um pronto-socorro, pretensão imediatamente contra-indicada pelo Edelso:
 - A essa hora, já era, doutor. Vai ficar para amanhã. Por que o senhor não autoriza o Lula?
Lula era ladrão de longa carreira. Chegou na cadeia com foto escrachada no Fantástico, depois de cair baleado no saguão da agencia Itaú de Santa Cecília, num assalto em que morreram dois ladrões. Baleados, ele e o chefe da quadrilha, um rapaz miúdo chamado Ferrinho, chegaram no Carandiru. cercados de respeito. Bandeco, figura popular do Cinco, que fala feito metralhadora, diz que nada é tão gratificante:
 - Chegar numa cadeia e os companheiros te tratarem com todo o respeito é a coisa mais bonita na vida de um ladrão.
Menos de um mês depois, Ferrinho, torturado pela depressão, enforcou-se com um lençol na janela do xadrez. No bolso da calça, tinha o retrato de um menino pequeno e de uma loira de boca pintada.
Mal Edelso saiu, Lula entrou, sapato branco, correntinha de prata com crucifixo no peito desabotoado, e tinha pressa. Sem me dar muita atenção, observou o ferimento e aproximou varias vezes os bordos do corte.
- Dá para fazer, doutor, não ofendeu nenhum nervo. Facada na bunda é só para esculachar a vítima. Foi nosso primeiro contato. Insisti que o segredo era anestesiar o ferimento e lavá-lo demoradamente com água e sabão. Quando terminou, veio me chamar para dar alta ao ferido. A sutura estava ótima, as distâncias entre os pontos perfeita, o sangue escorrido cuidadosamente retirado.
Não sei quem o treinou - a verdade é que era operador talentoso. Com instrumentos precários e fio grosso de algodão, fazia delicadas suturas de cicatrizes imperceptíveis, drenava abscessos, extraía projéteis do corpo e, habilidosamente, retirava ciscos dos olhos com a ponta de uma agulha de injeção. Uma vez, trouxe-me um paciente com um lipoma gigante nas costas. Era uma tumoração mole, gordurosa, de quinze centímetros de diâmetro. Queria que eu autorizasse a exerese. Achei difícil uma cirurgia daquelas sem anestesia geral. Disse-lhe que eram loucos, ele e o outro. Respondeu-me que Já havia feito operações maiores, em locais menos acessiveis.
Meses depois, encontrei o rapaz do lipoma no pátio do Sete e ele, sorridente, levantou a camisa para me mostrar a cicatriz do tumor operado. Estava perfeita, em forma de Z para aliviar a tensão da pele repuxada sobre o corte. Perguntei-lhe quem o havia operado:
- Foi o Lula. Não ficou bom?
- Como, se eu não autorizei?
- Ele pediu para outro médico. Trabalhamos muitos meses em contato. Ensinei-lhe princípios de assepsia, noções sobre as linhas de força da pele para orientá-lo nas incisões e emprestei-lhe um atlas de anatomia, que ele folheou com os olhos brilhando de curiosidade e nunca mais devolveu. Aprendi a admirar-lhe a habilidade cirúrgica e o prazer que tinha no aprendizado- Com o tempo, ficamos amigos. Num final de ano, notei que seu comportamento se alterou. O riso espontâneo desapareceu; andava agitado e tenso. Na galeria, olhava desconfiado para trás e para os lados. No horário de trabalho, às vezes desaparecia. Ficou magro e com o rosto marcado.
Uma manhã, cruzei com ele no corredor:
- Lula, quero falar com você, em particular.
Entramos na sala do centro cirúrgico. Ele trancou a porta e guardou a chave no bolso.
-Você está fumando crack.
- Que é isso, doutor? Nem posso, ainda mais operando o pessoal aí.
- Lula, você entendeu mal, não é pergunta: estou afirmando que você fuma crack, todo dia, e muito.
Negou de novo, mas eu insisti que não ficava bem para nós, homens barbados, pais de família, brincarmos de enganar um ao outro.
- É, doutor, comecei fazem seís meses. No começo era de vez em quando; passava uma semana sem fumar. De uns tempos para cá, é todo dia.
- Toda hora.
- A bem dizer verdade, é toda hora. Acordo já na fissura de ir para o fundão, no Oito, atrás de pedra. Tem vez que eu falo, está me prejudicando, vou dar um tempo. Que nada, passa um dia ou dois, estou indo para o fundo na maior neurose. Gasto uma média de 20, 30 contos por dia nessa desgraça.
- E o dinheiro?
- Vem da cirurgia. Aqui nada é de graça, doutor.
- Mas você opera as pessoas e depois fuma essa praga: vai perder a habilidade manual.
- Desculpa, aí o senhor se engana. Eu não fumo crack depois de operar, eu fumo antes.
- Você é louco, irresponsável. O crack tira o controle dos movimentos.
- Doutor, aí o senhor está novamente enganado. Às vezes eu tenho que fazer uma sutura grande, difícil. Desço para o barraco e cachimbo. Subo, injeto o anestésico e lavo a ferida com água e sabão, conforme o senhor ensinou.Lavo sem pressa, chego a passar quinze minutos embaixo da torneira escovando, espuma alta, não me importo com o sangue. Seco bem, tudo limpinho, e quando vou operar, ó, maior barato, vejo os vasos brilhando fluorescente. Amarro um por um, mão firme no porta-agulha, não deixo escapar nada. Só quando a ferida fica seca, sem escorrer uma gota, as bordas bem aproximadas pelos pontos do subcutâneo, é que eu suturo a pele. Se o senhor medir a distância entre o buraco da passada da minha agulha e a borda do corte, de um lado e do outro da cicatriz, vai ver que não tem diferença nem de um milímetro, tanto é a precisão.
O crack acabou com ele. Dias depois o diretor do pavilhão o demitiu da enfermaria e o transferiu para o Oito. A permanência foi curta; privado da clínica particular, não teve como manter o vício, contraiu dívidas e perdeu a moral entre os companheiros. Um dia, foi encontrado sem vida no xadrez. Ao lado do corpo, uma seringa suja de sangue. Overdose, foi a notícia que correu na cadeia. Achei muito estranho; o pessoal da enfermaria, que tinha trabalhado anos com ele, nunca soube que o Lula injetasse na veia.

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