10.04.2011

MANGA - "ESTAÇÃO CARANDIRU"



ESTAÇÃO CARANDIRU

O livro "Estação Carandiru' de Dráuzio Varella foi lançado em 1999 pela 'Companhia das Letras'.O médico Dráuzio Varella, famoso pela sua participação em programas da Rede Globo de Televisão trabalhou durante 10 anos como voluntário na Casa de Detenção de São Paulo (popularmente conhecido como Carandiru) que chegou a ter quase oito mil detentos, sendo o maior presídio da América do Sul. Foi o palco do massacre de 111 presos em 2 de outubro de 1992 que tornou  motivo de polêmica (relatado pelo autor nos capítulos : 'O LEVANTE', 'O ATAQUE' E 'O RESCADO'). O presídio foi desativado e parcialmente demolido em 2002, sendo transformado em um parque estadual. O livro ganhou o Prêmio Jaboti 2000 como 'Livro do Ano' e virou filme em 2003, dirigido por Hector Babenco. Estaremos postando alguns dos capítulos mais interessantes do livro.


MANGA

Antes de chegar aos presos, as cartas são abertas. Três pessoas fazem o serviço. Na mesa, um detento corta com tesoura a lateral do envelope, um funcionário esvazia o conteúdo à procura de objetos estranhos e outro detento grampeia a parte aberta. Não há curiosidade em lê-las; nem haveria tempo, são milhares. Em seguida, a correspondência é separada de acordo com o pavilhão ao qual se destina, para ser distribuída pelo carteiro de cela em cela. Uma das lições que aprendi com o funcionário Waldemar Gonçalves foi ouvir os presos que entregam as cartas:
- Para conhecer o andamento da cadeia, é fundamental falar com eles, doutor.
Manga, um carteiro detido no pavilhão Sete, gostava de conversar comigo - e eu com ele. Era um sergipano alto, fluente, com um vozeirão, que havia fugido da cidade natal para escapar da vingança dos irmãos de uma moça que alegava ter perdido a virgindade com ele. Com o tempo, Manga confiou em mim a ponto de descrever com detalhes o movimento de droga na cadeia, o que me ajudava na estratégia das campanhas de prevenção à AIDS. Por exemplo, foi ele o primeiro a dizer:
Doutor, nem precisa insistir com os manos para não injetar na veia, que o baque já era. Pode correr a cadeia inteira que o senhor não acha uma seringa para contar a história. Agora é a vez do crack. Veio para arrebentar bunda de malandro. Manga jurava que tinha vindo parar na Detenção por um erro judiciário. Anos antes, ao sair da cadeia de Sorocaba, sem dinheiro, um amigo emprestou-lhe meio quilo de maconha. Vendia na rua do Estudante, onde morava, na Dr. Lundi e na Thomaz Gonzaga, no bairro da Liberdade, centro de São Paulo. Dava para as despesas e sobrava um pouco:
- Para comprar roupinha para o nenê que ia nascer, uma pizza no domingo e cuidar da esposa, dar aquele carinho que toda mulher necessita.
Então, entrou em cena a tal de Sonha, uma vizinha com quem Manga mantinha relacionamento comercial:
- A Sonha foi pega com doze parangas de fumo enfurnadas na panela de pressão e, para livrar a cara dela, deu eu. Foi onde que eu levei um bote do DEIC.
Os policiais invadiram sua casa e encontraram um quilo de maconha:
- Tive que entregar tudo e mais uma boa grana para escapar do flagrante. Tudo bem, só me mandaram deixar quieto uns dias.
Voltou para casa deprimido, outra vez sem dinheiro:
- Meu filho tinha acabado de nascer e eu na pior dureza, chamando mendigo de Excelência.
Nesse momento delicado, Genival, um de seus fregueses, tocou a campainha:
- õ, Manga, me vende uma paranga de fumo aí, amanhã te dou o dinheiro.
- Não vou te vender paranga nenhuma, que eu vou passar três dias parado. Então, é o seguinte, leva este caroço aqui para fumar com os malucos no beco da igreja e esquece do Manga, que eu estou deixando quieto a pedido dos homens.
Genival agradeceu e foi embora. Passaram-se algumas horas e Manga saiu para pensar na vida. Quando virou a rua da Glória na direção da praça João Mendes, em sua direção veio o Águas Turvas:
- Manga, ia na tua casa atrás de uma paranga.
- Já era, a última eu dei para o Genival.
Águas Turvas não gostou da resposta:
- É, chegou esses dias das Alagoas, nem bem entrou na área e já está levando uma de traficante e tal.
Manga desconhecia o passado de Genival:
- Tu nega fumo para mim e vende para aquele pilantra, que tem mancada, estupro assinado e tudo, vim querer fumar na nossa bancada, no meio dos ladrão!
Dito isto, Águas Turvas tirou um cano da cintura e desferiu um golpe contra a cabeça de Manga. A força foi tanta que o ferro cantou no ar. Agilmente, o sergipano esquivou-se, mas o cano resvalou-lhe o supercílio. Cego de ódio e sangue, puxou a faca e, antes que o adversário tivesse tempo para ataca-lo de novo, cravou-lhe o punhal no peito. Águas Turvas desequilibrou-se, para trás, mas não largou o cano. Manga, então, raciocinou:
- Se eu não der um fim neste maluco, agora, vou perder o sossego para andar na rua.
Foram mais três facadas, bem dadas, duas no abdômen uma nas costas enquanto o outro caía de bruços, na sarjeta. Largou o desafeto numa poça de sangue, no meio da curiosidade assustada dos transeuntes, e correu para casa. Pegou a mulher, o filho recém-nascido, trancou tudo e fugiram para a casa da sogra, na Vila Madalena.
A situação só ia para trás: o acerto com a polícia tinha me quebrado, depois essa fita de furar o Águas, o moleque pequenininho cheio de necessidade, ainda mais na casa da sogra que enchia a cabeça da filha por causa da vida que eu levava. Para não depender da sogra, resolveu roubar um toca-fita em Pinheiros com um rapaz que atendia pelo vulgo de Boca-Larga. O toca-fita estava na perua de uma floricultura, ao lado do cemitério da Cardeal Arcoverde. Foi só abrir a porta, especialidade do amigo, o alarme disparou. Boca-Larga saiu correndo, Manga tentou puxar o toca-fita, mas não tinha experiência com esse tipo de roubo:
- O alarme buzinava sem parar; eu nervoso com o toca-fita que não saía. Aí, pega ladrão daqui, pega dali, acabei cercado e tive que pular para dentro do cemitério. Sabe onde eu fui cair? Não foi feliz na queda, andava mesmo com azar:
- Bem no buraco de uma cova aberta. Aquele cemiterião enorme, e eu pulo o muro justo em cima da cova! Era um buracão, doutor, o polícia me catou de lá, com a perna sem condição de agüentar o peso do corpo. No distrito, com dor, Manga deu nome falso. Dois dias mais tarde, foi identificado e transferido para o presídio do Hipódromo, onde encontrou um desafeto vingativo. A fase de azar persistia:
- O irmão do Águas Turvas, cujo vulgo era conhecido como Zóio Vesgo. Ali, fiquei sabendo que o Águas não tinha morrido; embora que ficou com um defeitão no meio da barriga. Batemos boca, o Zóio Vesgo e eu e tal, mas lá tem segurança para prevenir desentendimento e ficamos só no: quando sair na rua, vai ser você ou eu! Vai ser mesmo!
Manga saiu primeiro, voltou ao comércio de maconha, retornou à rua dos Estudantes com a mulher e o filho e comprou um revólver. Uma noite, trombou com o inimigo na Baixada do Glicério:
- Zóio Vesgo e eu, cara a cara, como daqui naquela parede lá no fundo da galeria, uns dez metros. Pulei para detrás de um carro parado e dei seis tiros nele. E ele, seis tiros em mim.
Doze balas perdidas que quebraram os vidros dos automóveis estacionados. Quando se certificaram de que a munição havia acabado, partiram para o confronto físico. A briga começou no quarteirão de cima e rolou ladeira abaixo. Terminou no meio de uma aglomeração, com os dois exaustos, ensangüentados e presos por um PM que passava. Foram parar no distrito, assinaram porte ilegal de arma, crime afiançável, e voltaram para a rua.
- Passado um mês, um truta meu, o Batata, que roubava comigo, fez um assalto de parceria com o Zóio Vesgo. Na partilha, o Zóio deu um chapéu no Batata. Quando o Batata descobriu que tinha tomado um banho na fita, foi lá e deu três tiros nele; dois na cabeça, para ter certeza. O Águas Turvas nunca mais vi.
Por causa da passagem anterior pela delegacia, Manga foi acusado da morte de Zóio Vesgo. Sem advogado, nem álibi convincente, foi condenado a cumprir nove anos de cadeia. Não se conformava com a falta de sorte:
- Tanta maconha que eu vendi, assaltos, roubo de loja, venho preso justamente por um crime que não cometi. A Justiça é cega, doutor.
Manga foi um dos fugitivos do túnel do pavilhão Sete. Dois anos depois voltou para a Detenção. Num final de tarde procurou-me para um assunto particular. Conversamos na sala dos médicos; o sol entrava pela janela e projetava uma sombra gradeada em seu rosto. Estendeu-me um envelope sobrescrito com letra bordada. Na carta, a mulher dizia estar cansada de sofrer por causa dele e decidida a ouvir os conselhos da mãe. Tinha ido para Minas com as duas crianças, a menor nascida depois da fuga, para nunca mais voltar.
Enquanto eu lia a carta, ele chorou de soluçar. Quando terminei, fiquei quieto esperando que se acalmasse. Então, as lágrimas pararam de correr. Ele enxugou os olhos, levantou, agradeceu e saiu, antes que eu tivesse dito uma só palavra de conforto.

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