10.06.2011

O FILHO PRÓDIGO - "ESTAÇÃO CARANDIRU"


ESTAÇÃO CARANDIRU

O livro "Estação Carandiru' de Dráuzio Varella foi lançado em 1999 pela 'Companhia das Letras'.O médico Dráuzio Varella, famoso pela sua participação em programas da Rede Globo de Televisão trabalhou durante 10 anos como voluntário na Casa de Detenção de São Paulo (popularmente conhecido como Carandiru) que chegou a ter quase oito mil detentos, sendo o maior presídio da América do Sul. Foi o palco do massacre de 111 presos em 2 de outubro de 1992 que tornou  motivo de polêmica (relatado pelo autor nos capítulos : 'O LEVANTE', 'O ATAQUE' E 'O RESCADO'). O presídio foi desativado e parcialmente demolido em 2002, sendo transformado em um parque estadual. O livro ganhou o Prêmio Jaboti 2000 como 'Livro do Ano' e virou filme em 2003, dirigido por Hector Babenco. Estaremos postando alguns dos capítulos mais interessantes do livro.

O FILHO PRÓDIGO

À noite Valente não saía sozinho pela vila: tinha medo de ladrão. Filho de lavradores crentes do norte do Paraná, veio para São Paulo morar com um primo na periferia de Guarulhos. Foi bem até conhecer as pessoas erradas, cheirar cocaína, perder o emprego e se desentender com o primo. Em seis meses começou a assaltar padaria, açougue, pagamento de firma e a matar gente:
- Tem pessoas que a gente conversa com ele, assim, ou vai fazer um trabalho junto, mas a gente não gosta dele. Um espírito com o outro não bate. Para quem está na vida do crime, matar ele é que nem beber um copo de água.
Um de seus amigos, Salviano, vivia com uma mulher que havia namorado um Pm. Uma noite, por ciúmes, Salviano convidou Valente para matar o policial. Ele diz que aceitou o convite porque estava mesmo sem fazer nada:
- Esperamos no ponto do ônibus. Era para ele chegar às dez, apareceu às onze e meia. Demos oito tiros nele e saímos fora.
Outra vez ele levava a namorada para casa, quando passou um rapaz e disse um palavrão. Valente deixou a moça e foi atrás do outro:
- Quando alcancei, falei pra ele: ô, boca-suja!
Foram cinco tiros. Valente era homem de poucas palavras:
 - Muitas pessoas do crime até debate com a vítima;comigo não tinha conversa.
Em seguida, perderam a vida dois comerciantes do Alto da Penha que tentaram reagir ao assalto, um ladrão que falou mal dele para uma vizinha e um outro no botequim por causa de uma cerveja derramada.A sétima ocorreu na divisão de 30 mil dólares roubados em companhia de dois parceiros. Estavam repartindo o dinheiro quando um deles teve a má idéia de ir ao banheiro:
- Fiquei esperto, porque olho de ladrão cresce mais do que devia.
Quando o comparsa saiu do banheiro, trazia a jaqueta de couro no braço, cobrindo parcialmente a mão direita. Valente não hesitou:
- Catei o revólver da mesa e dei três tiros nele. Desperdício, o primeiro acertou bem no meio das vistas.
O outro companheiro se assustou:
- Você está louco, matou o cara!
- Ele ia atirar em mim.
Foram até o corpo, levantaram a jaqueta e verificaram que o morto não tinha nada nas mãos, o revólver permanecia na cinta. Paciência, o amigo consolou:
- Morreu por culpa dele próprio: a mesa cheia de dinheiro e ele aparece assim, por detrás, ainda com a mão encoberta! Infelizmente, ele vacilou.
Três anos nessa vida e Valente resolveu organizar uma quadrilha para assaltar banco. Viajou para o Rio e comprou uma metralhadora na Rocinha. Não chegou a utilizá-la, porque dois de seus parceiros foram mortos num assalto e outro foi embora para o interior. Sobraram ele e Salviano, co-autor do assassinato do PM. Salviano, nessa época, apaixonou-se por uma menina de dezesseis anos e abandonou a ex-namorada do PM. Com o amorpróprio ferido, a moça foi ao DEIC e denunciou os dois comparsas. A polícia chegou enquanto ele dormia. Ainda quis alcançar a arma, mas não deu tempo. Nunca imaginou ser preso com tanta facilidade:
- Sofri dez dias no pau-de-arara, meia hora por dia. Teve dia que me penduraram duas vezes. Eles queriam bastante coisa, até o que eu não devia. Por causa da metralhadora, só de assalto a banco, que eu nem cheguei cometer, eles queriam que eu assinasse oito. Confessei só o que eu devia, menos quatro homicídios que ficaram de fora.
De início foi condenado a dezoito anos. Oito meses depois, no júri seguinte, pegou 112 de uma só vez. A pena total ficou em 130 anos e nove meses.
- Eu abati um pouco. Mas não mudei de vida, até piorei para pior. Fui para o pavilhão Nove. Lá eu queria apresentar que era bandido perigoso. Chegava no cara e dizia: você é de ver?
 Se é, nós vamos trocar agora! Aí, se ele não queria trocar, eu falava: então você deixa a televisão, as coisas suas e pode atravessar para o Cinco, que é o teu lugar. Eu pensava que a minha vida não tinha mais jeito, já que era para morrer na cadeia, não custava que fosse hoje. Se tinha que ser esse o meu destino, que sêsse.
Então, veio um dia de chuva. Para se abrigar, ele encostou na parede junto à igreja, no térreo do Nove e, sem querer, ouviu a pregação do pastor:
- A Bíblia diz em Isaías capítulo 9, verso 6, que Jesus Cristo é o Conselheiro, é o Deus forte, Pai da Eternidade e Príncipe da Paz. Você que vive na vida errada, Deus tem um plano para você. Venha hoje para Jesus, que amanhã pode ser tarde. Não importa se é bandido, quantos matou, Jesus Cristo faz questão de perdoar você com todos os teus pecados, te tirar das trevas e operar uma obra na sua vida.
Valente chegou um pouco para dentro. Sentiu que o Espírito Santo de Deus falava pela boca do pastor:
- Quem quer aceitar Jesus? Quem quer levanta a mão!
As veias do pescoço do pregador saltaram e os olhos cuspiram fogo. Valente achou que a fisionomia estava desfigurada pelo Espírito Santo de Nosso Senhor. Sentiu um punhal frio penetrar-lhe a carne. Levantou o braço:
- Dobra o joelho, irmão!
Valente obedeceu e caiu no choro:
-Arrependi dos crimes, da raparigagem e das maldades. Chorei feito nenê no colo da mãe.
Quando levantou, estava desanuviado. Sentiu o perdão do Senhor pousar em sua fronte. Continuou morando no Nove, mas os companheiros estranharam a mudança:
- Tinha uns, mais no espírito entrevado, que ameaçavam: está bom, agora é crente, então vai morrer e tal, que nós não suporta bandidão arrependido.
Andava pelas galerias do Nove com o Velho Testamento, sem maldade no coração, lutando para colocar os companheiros no caminho da Verdade:
- De repente, bateu um desassossego na minha mente que era para eu ir embora do Nove. Que tinha que ser logo. Que ali não era mais o meu lugar.
Pediu guarida para os irmãos da Assembléia de Deus, no Cinco, e juntou-se a eles, no quinto andar. Era outro homem:
- Já não usava mais gíria nem palavra torta e não tinha mais perversidade na alma. Estava num plano de Deus, era Jesus abreviando na minha vida, elegendo eu para continuar vivo no seu Reino, porque dois dias depois que eu saí, a PM invadiu o Nove, com cachorro e metralhadora.

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