10.05.2011

PAIXÃO ARREBATADORA - "ESTAÇÃO CARANDIRU"


ESTAÇÃO CARANDIRU

O livro "Estação Carandiru' de Dráuzio Varella foi lançado em 1999 pela 'Companhia das Letras'.O médico Dráuzio Varella, famoso pela sua participação em programas da Rede Globo de Televisão trabalhou durante 10 anos como voluntário na Casa de Detenção de São Paulo (popularmente conhecido como Carandiru) que chegou a ter quase oito mil detentos, sendo o maior presídio da América do Sul. Foi o palco do massacre de 111 presos em 2 de outubro de 1992 que tornou  motivo de polêmica (relatado pelo autor nos capítulos : 'O LEVANTE', 'O ATAQUE' E 'O RESCADO'). O presídio foi desativado e parcialmente demolido em 2002, sendo transformado em um parque estadual. O livro ganhou o Prêmio Jaboti 2000 como 'Livro do Ano' e virou filme em 2003, dirigido por Hector Babenco. Estaremos postando alguns dos capítulos mais interessantes do livro.

PAIXÃO ARREBATADORA

Esse tal de Charuto tinha sorriso alvo e dentição perfeita, raridade no ambiente. Malandro completo no andar, falar e olhar, assaltante incorrigível, estava condenado a dezesseis anos, nesta segunda passagem pela cadeia. Dois anos depois do entrevero com o rato, ele convenceu o Zoinho, um ladrão estrábico internado com sarna disseminada, a vender o próprio colchão para comprar crack, depois tapeou o amigo, fumou as pedras sozinho e quando um funcionário da enfermaria descobriu a venda, Charuto armou uma confusão tal que Zoinho não só assumiu a culpa de tudo, como pegou trinta dias de castigo na Isolada. Duas semanas mais tarde, Charuto apareceu no ambulatório, com ar cerimonioso, acompanhado de um companheiro narigudo, felliniano:
- Doutor, daria para o senhor atender este considerado meu, que está com uma coceira cabulosa?
Tratava-se do incauto comprador do colchão infestado do Zoinho. Depois disso, passei tempos sem vê-lo. Um dia, Charuto retornou com muita tosse, febre, dispnéia e os olhos encovados: tuberculose pulmonar com derrame de líquido pleural à direita do tórax. Órfão de mãe, Charuto não recebia visitas desde que chegou à cadeia, desta segunda vez, há quatro anos. Nos primeiros meses, ainda lia jornal e pedia notícias da rua, mas logo concluiu que satisfazer a curiosidade trazia mais sofrimento e alienou-se dos acontecimentos do lado de lá da muralha, como fazem muitos homens sem família condenados a penas longas. Dos parentes, não sentia saudades, com exceção do filho mais velho:
- O pequenininho eu não quero ver, porque ele está bem com a avó, a mãe da Rosirene. Agora, o grande eu não sei, porque ele vive com a Rosane, minha outra mulher, e ela é fumadora de crack.
Após cumprir dez anos, em sua primeira passagem pela Detenção, Charuto foi posto em liberdade. Ao sair, soube que Rosane, mãe de seu primeiro filho, tinha acabado de ser presa. Um domingo foi visitá-la na penitenciária de Tremembé. Levou o menino para ver a mãe e cinco gramas de cocaína, de presente. No ônibus de volta, com o primogénito no colo, foi abordado por uma senhora de fino trato:
- Escuta aqui, simpatia, eu também sou malandra, sabe, eu sou malandra. Vim visitar minha irmã e vi você dando um barato lá para a sua mulher. É sua mulher, não é? É o seguinte, eu trafico. Não tem condição de você arrumar umas dez gramas para mim? Pode confiar que eu sou do ramo. Sou do ramo, entendeu? Sou malandra!
Charuto sentiu firmeza. Terça-feira, pegou um ônibus até o Jabaquara e, de lá, o Jardim Míriam:
- Levei uma cara de farinha. Eu não conhecia aquela quebrada; o maior jogo duro para achar a casa.
No quarto dessa senhora, dona Joana, Charuto entregou a droga e sentou para conversar com seu Machado, um senhor que morava com ela. Foi quando a tentação entrou pela porta dos fundos, sorrindo, de vestidinho com alça: Rosirene.
- Nega dos lábios finos, nariz empinado, bunda de escola de samba e eu no esgano, ó, saindo da cadeia, depois de tirar dez anos. Naquela hora, pensei com a minha cabeça, preciso comer essa nega de qualquer jeito! Não sei se isso já aconteceu com o senhor, doutor, amor à primeira vista! Paixão arrebentadora!
Encantado pela mulata, chamou seu Machado para um canto:
- E essa mina aí?
- Essa mina aí, está aí.
- Então, fala para essa nega que é o seguinte: vou levar ela para Santos amanhã.
Voltou na quarta-feira, mas não foi preciso viajar tão longe:
- já saímos direto para o Flor da Lapa, a maior festa e tal, gastei dinheiro que nem água. Depois, achei que tudo bem, experimentei a fruta, já era. Apenas que ela não foi embora.
Como as condições não lhe permitiam Flor da Lapa toda noite, alugaram uma maloca num cortiço da Dino Bueno, perto da Rodoviária velha, para viver no maior amor:
- Embora que de vez em quando tinha que dar uns murros nela, que a nega era folgada pra caramba.
Uma noite, Charuto foi dormir muito louco e acordou com a gritaria:
- Ô, vê se acorda que a casa está pegando fogo!
Eram os vizinhos do cortiço:
- Uma tremenda fumaceira, saí a milhão de dentro do quarto.
Rosirene tinha jogado tudo que era dele, roupas, chinelo, sapato, em cima da cama do casal e ateado fogo. A vizinhança ameaçava chamar a polícia; e ele sem saber se apagava o fogo ou acalmava os vizinhos. Se a PM chegasse, iria prendê-lo no ato; havia acabado de sair da cadeia. A incendiária, do lado de lá da rua, assistia de camarote, cínica, dando risada. - Pó, queimou tudo, até a minha calça de baile! O maior custo para convencer os vizinhos deixar quieto, a polícia não ia querer saber. Quando acabou o fogo, descalço, Charuto saiu para tomar ar. A mulata veio atrás. Na Dino Bueno com o Largo Coração de Jesus ele parou numa fogueira:
- Na maior neurose, querendo pegar ela de quebrada.
Sentou. Ela também, com prudência, do outro lado, em frente. Depois de um tempo, Charuto levantou devagar com um cigarro apagado no canto da boca, pegou um tição do fogo como se fosse acendê-lo e avançou na direção da Rosirene:
- Dei umas trinta tiçãozadas nela. Era fagulha para todo lado, parecia que nós estava no inferno de Satanás!
Vingado, refugiou-se num bar na famosa esquina da São João com a Ipiranga e tomou várias para rebater. Mais tarde, quando voltou para casa, encontrou a maloca em silêncio:
- A primeira coisa que eu olho na cama queimada é a nega dormindo, ó! Puta vida, vai embora daqui, já. Não vou. E, nessa de vai embora já, não vou, vai, não vou, ela acabou não fondo, e nós ficamos naquele amor aconchegado.
Viveram dois anos juntos. Esqueceu do filho e da mulher na cadeia de Tremembé, por causa dessa paixão. Amanheciam fumando pedra, escovavam os dentes com a mesma escova, pediam um comercial no bar e comiam no mesmo prato, de tão bem que se davam:
- Eu roubava, ela se virava.
Segundo ele, não adiantava: mesmo quando roubava uma quantia suficiente para passarem alguns dias curtindo, saía de manhã e, quando voltava à tarde, cadê a Rosirene?
- Estava na Estação da Luz se virando. 
Sabe, elas viciam e não querem sair dali. Eu não podia fazer nada. Quer dar? É com ela mesmo. A única coisa que eu falava era: só não dá para amigo meu, que eu te quebro o pescoço.
O destino os desuniu quando ele ficou caído de tanto crack e ela voltou para a casa da mãe, com o menino que tinha nascido. Uma noite, trombaram na Boca do Lixo e Rosirene confessou estar namorando um amigo dele, Mato Grosso, o dono das pedras, e que os dois tinham planos de mudar para Ponta Porã.
-Veja só, dando para amigo meu e ainda os dois fazendo plano!
Hoje, ele reconhece ter perdido a mulher porque não há harmonia que resista ao crack. Mesmo assim, continuava decidido a resolver o caso pela via passional.
- Quando sair da cadeia, vou matar o Mato Grosso. Ela não, porque o errado é ele, que me conhece e sabe que a mulher é minha; não tem nada que cantar ela e levar embora. É eu que ele está tirando, não ela.
A decisão de poupar Rosirene do castigo fatal, no entanto, é fruto recente da ponderação, pois quando chegou na cadeia seu desejo era atraí-la para um lugar ermo, cortar-lhe os pés fora com um machado e justificar:
- Não vou te matar porque nós temos um filho, e não quero que ele me venha falar que eu matei a mãe dele. Mais tarde, ele vai te ver sem pé, vai perguntar por que e você vai dizer: eu dei para outro cara. E, aí, ele vai saber que o pai dele agiu na razão.
Sua intenção era fazer uma malvadeza que Rosirene jamais esquecesse. Afinal, largou Rosane por causa dela. Na época, ele gostava da Rosane; a primeira vez em que esteve preso, pensou que se Rosane o abandonasse, iria enlouquecer. Até ameaçou:
- Se você não me visitar, te furo os olhos.
Ela, sorriu e tranqüilizou-o:
- Quem falou que eu sou mulher de abandonar homem meu na cadeia?
Prometeu e cumpriu. Visitou-o, quase dez anos, todo final de semana, com as sacolas e o menino. Até ir presa. Ele é que a traiu, por causa da Rosirene:
- Fui cachorro; abandonei a Rosane presa em Tremembé; ó, maior ingratidão!
O castigo veio a cavalo quando Rosane saiu da cadeia, antes da data prevista. Uma noite, ele dormia tranqüilo num hotelzinho, com a Rosirene, certo de que a outra continuava presa, quando Rosane, libertada, foi à Boca do Lixo cobrar a referida ingratidão. Perguntou sobre o paradeiro do ingrato num bar:
- Ele está dormindo com a mulher dele no Copa 70.
- Ali, mulher dele, é? Cachorro!
Entrou no quarto quebrando tudo; de cara jogou a TV no chão e avançou para cima da Rosirene, cujo tamanho era o dobro do seu. Ligeiro, ele vestiu a roupa e sumiu. Ficou num botequim, esperando a poeira baixar. Meia hora depois, apareceu o português do hotel:
- Vai ver o que aquela baixinha aprontou lá. Encheu a cara da tua mulher, espetou um alfinetão na bunda dela que tirou sangue, ainda rasgou e tacou fogo nas roupas da grandona!
Charuto tem febre e sudorese noturna; está magro e com os pulmões afetados. Ri, as recordações parecem deixá-lo feliz. Apesar da eterna gratidão à Rosane, só pensa na Rosirene:
- Doutor, se eu morrer na cadeia, não vou ficar sossegado. Tenho que ver aquela mulher de novo. Depois, vou matar o Mato Grosso, mas a primeira coisa é ver a Rosirene, só mais uma vez. Ela é linda, doutor! Tá louco, a nega me enfeitiçou.


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