Entrei no cemitério de Vassouras com Turíbio Santos. Estávamos ambos vivos. Vivíssimos. Iamos até fazer um concerto de música e poesia no Mara Hotel naquela mesma noite. Mas de dia, fomos ao cemitério.
É que nos haviam dito que ali floresce uma "flor de carne". Cemitério, carne, flor. Muito estranho. Mas como Vassouras é uma cidade cheia de lendas e naquele cemitério tem a fina flor da nobreza imperial, lá fomos.
O cemitério é atrás daquela praça linda, daquele igreja no topo da colina, depois de uma alameda de gigantescas e sombreadas árvores. Haviam nos dito que a tal flor irrompe de uma sepultura sempre em novembro. Os mais fatalistas dizem que ela brota exatamente no 2 de novembro, dia dos mortos. O fato é que ela aflora na sepultura do Monsenhor Rios, só ali.
Então lá fomos nós cemitério a dentro. Passamos por um coveiro e lhe perguntei onde estava a flor de carne, se havia muita para visitá-la. Ele apontou o local, eu lhe perguntando se estava tudo calmo no cemitério, ele dizendo que tudo estava calmo demais.
Dizem que o Monsenhor Rios viveu na virada do século XVIII para XIX se notabilizou por dar sepultura digna aos escravos. Esses eram sempre postos em covas rasas. Ou largados por aí, como no Cemitério dos Pretos, que agora redescobriram aqui no Rio, perto da Praça Quinze, no Valongo.
Acabaram de fazer um livro sobre isto. Um horror! Escravo não merecia nem sepultura, apodrecia a olhos vistos depois de mortos, depois de viver miseravelmente também na vista de todos.
Pois o nosso Monsenhor saía a cavar fundas sepulturas para esses infelizes. E vai que um dia ele também morreu. E vai que, daí a algum tempo, nasceu na sua sepultura essa flor que fui ver. Flor de carne. Tem cheiro, quer dizer: não odor, fedor de carne podre. Se vocês entrarem no Google podem vê-la. Parece um repolho. E tem cheiro não se sabe se de carne de escravos ou do Monsenhor. Da vida morta, de morte viva?
Dizem que trouxeram botânicos de todo o mundo para estudá-la. Todos se perguntam: por que nasce só ali, naquela sepultura; por que nasce e renasce ali há mais de cem anos? Seria a alma de escravos brotando do solo, agradecidas ao Monsenhor? Vocês estão vendo que não é necessário ir aos cinemas ver vampiros que estão na moda, para conversar com o mistério.
Disseram-me que em Java, tem uma flor semelhante. Descubro que no Japão tem uma 'Amorphophallus titanum' (olha que nome vital, fatal!) conhecida como flor-cadáver, que é carnívora, devora insetos.
Como é que essa flor veio da ásia para cá? Veio no vento? Ou um pássaro ou alma penada a trouxe?
É uma planta pequena. Parece um coração. Ela lança uma haste de 30 ou 50 centímetros. Hoje uma cerca de ferro a protege. Fotografei-a. Olho em torno da sepultura do Monsenhor e vejo uma série de agradecimentos de crentes que receberam alguma graça creditada a ele. Turíbio e eu ali, naquele sol esplendoroso contemplando o escuro mistério. Conversamos com o coveiro. Ele convive com o mistério e é bem humorado.
Saímos do cemitério. Lá fora a música e a poesia nos esperava. Outros mistérios.
Crônica de Affonso Romano de Sant'Anna, publicada no 'ESTADO DE MINAS' e 'CORREIO BRAZILIENSE' em 27.11.2011. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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