Responsabilizando o sistema escravista do país pelo desregramento dos costumes públicos e privados e pela desorganização moral da família, Charles Expilly ressalta a dominação absoluta do homem, "sultão e déspota", sobre a mulher.
Charles Expilly veio de França com sua esposa na intenção de fundar no Rio de Janeiro uma escola normal e, dissuadido por uma promessa irrealizada, acabou fabricante de fósforos. Escreveu dois livros 'Brasil, Tal Qual É' e 'Mulheres e Costumes do Brasil', ambos na década de 1850.
CAPÍTULO III
(...)
Chegou a hora de examinar com cuidado o papel confiado à mulher de cor nas latitudes intertropicais.
Já disse em outro lugar (e creio peremptoriamente tê-lo estabelecido) que as brancas, nas colônias, são fisicamente inferiores às crioulas, principalmente às negras minas.
Ainda hoje, não tenho em vista senão a beleza das formas. Mas bem entendido, cada vez que eu falar da negra, é sempre a negra mina. Por pouco que se possua o sentimento da verdade, o homem que habita a zona equatorial não pode recusar a sua admiração por essas soberbas criaturas, cujo porte está cheio dessa majestade radiosa que o elogio atribui às rainhas, e a poesia às deusas.
No meio do quadro esplêndido que um sol ardente e uma vegetação luxuriante compõem nos campos tropicais, a branca perde todas as vantagens que desfruta na Europa. Sua beleza delicada esvai-se em ondas de luz. Seu talhe diminui diante da criação; ela parece, enfim, mesquinha, miúda, miserável, angustiada.
Os raios brilhantes que caem do céu e se espalham sobre a sua face bronzeada fazem melhor realçar, ao contrário, a rica organização da negra.
Suas formas, projetadas no fundo que lhes convém, realçam orgulhosamente em suas linhas opulentas e corretas. O sol, que queima a branca, dá às suas carnes reflexos que rebrilham e comunicam às suas pupilas uma chama que penetra até ás profundezas mais íntimas do seu ser.
Não falo aqui da mulata, que deve todos os seus sucessos a uma afetação atrevida, mas cujo rosto terroso absorve, sem se iluminar, a luz celeste. Por mais esmerada que ela seja na sua toilette, por mais engenhosos que sejam os cuidados em que envolve a sua delicada pessoa, a mulata ferirá sempre a vista pela aparência de um asseio duvidoso. Por maiores que sejam as seduções do seu sorriso, pensa-se, mesmo sem querer, na lama diluída. Mesmo quando se lhe paga o tributo das homenagens.
Não se dá isto com a filha da África.
A cor pura da sua pele, quando ela é de um preto absoluto, como as pessoas da raça mina, lembra a cor profunda do mármore de Portor, esse mármore preto, com veias de fogo; além disso, a solidez dos atrativos, a amplitude opulenta do torso, o farto desenvolvimento do peito, atestam, num modelo perfeito, uma força vital harmoniosa com a exuberante vegetação do equador, que faz sonhar com o amor insaciável dos imortais.
Se as regiões intertropicais fossem ocupadas por um povo de artistas, a beleza lhes conferiria naturalmente uma autoridade soberana e, então, os papéis seriam invertidos: a escrava seria a branca, a negra ficaria nominativamente sendo rainha, como ela o é de fato, enquanto espera que se lhe restituam os seus antigos templos de Sidon e de Tyro.
Astarté era bronzeada, senão tão negra como a rainha de Sabá.
Neste particular o paganismo participava da opinião dos hebreus, cujos livros sagrados proclamam a triunfante beleza de Sulamita, isto é, a negra. O imperador Heliogabalo, casando a estátua de Vênus síria com a pedra negra cônica, representando o deus Elagabal, que ele fizera trazer, a primeira de Cartago, e o segundo de Emeso, imitava o grande rei Salomão, sacrificando ao amor africano.
Por sua vez, o cristianismo seguiu a dupla tradição judia e pagã. Consagrou o esplendor e a correção incomparável das formas, erguendo altares à Virgem negra.
Logo, desde a mais remota antiguidade, o símbolo da beleza plástica e da paixão sensual encarnou-se na mulher de cor.
É neste ponto de vista que, apesar do mais estúpido dos preconceitos, essa é ainda hoje apreciada nas colônias, e mesmo nos lugares onde reina a escravidão.
Nessa sociedade, essencialmente dominada pela pompa e pela forma, a negra, e com ela a mulata, preenchem o papel que reivindicam, no nosso meio, a comediante e a lorette.
A ação daquelas é menos prejudicial, aliás, porque elas só absorvem o corpo, sem exercer influência no moral.
No estado de costumes coloniais, a alma escapa à mulher de cor; ao passo que a cortesã branca se apodera da alma por processos engenhosos.
Não obstante, em certos casos, existe reconhecimento no íntimo do afeto que prodigaliza a primeira. O seu orgulho está lisonjeado, ao mesmo tempo que o seu coração foi tocado da preferência de que ela é o objeto.
Os transportes da segunda não são senão uma mentira estudada Ela explora sem pudor os maus instintos, assim como as tendências generosas da natureza humana, pelo engodo de uma felicidade que não saberia proporcionar.
Nada é natural, por conseguinte, nada é verdadeiro na existência da hetaira europeia.
Longe de desabrochar ao ar livre e de adquirir, como a mulher de cor, novo frescor aos beijos do sol, ela receia, para os seus fracos atrativos, a luz do dia, e vive constantemente numa atmosfera fictícia, saturada de todos os perfumes capitosos que o ouro pode comprar. Sempre representando, envolve-se de uma graça conquistadora e conhece todas as vantagens que uma vaidade pouco escrupulosa pode tirar da moda, exagerando-a. Fria, desdenhosa, ávida de triunfos, ela vinga-se do desprezo das mulheres virtuosas, esmagando-as com o luxo turbulento dos seus trajes. O seu orgulho consiste em fazer despertar desejos, provocar a admiração da multidão, já que não pode incutir respeito. O seu constante e único objetivo é agradar sem se deixar prender.
Assim, infeliz da natureza ardente, curiosa, indolente, que se aventura ao antro dourado onde a comediante estabelece o seu império! Desgraçada dela, sobretudo, se uma hábil sedução a retiver!
Todas as noites são de festa no seu camarim, porque o prazer é o único deus que aí se adora, e este deus frívolo receia a claridade pura do céu.
O esplendor dos diamantes e dos candelabros, os perfumes penetrantes que trescalam dos ramalhetes e das caçoilas, os reflexos estonteantes dos gorgorões e veludos, e depois, a alegria louca dos convivas, as propostas radiantes que acompanham o retinir das taças, os vapores de vinhos finíssimos que sobem à cabeça, e, mais ainda, o tilintar do ouro no tapete verde, os acordes dos violinos, as cabeleiras perfumadas, caindo em ondas sobre os colos nus das lindas pecadoras, os olhares lânguidos ou audazes, os sorrisos provocantes, as atrevidas confidências — todo este cenário da vida material causa por fim um fatal estonteamento nos caracteres, mesmo nos mais retos e bem intencionados.
O hábito da desordem sufoca os instintos nobres, paralisa as atitudes generosas.
Enquanto o corpo se enerva, a alma enfraquece na convivência das cortesãs, e, pouco a pouco, à força de assistir às bacanais do gozo, ela deixa-se invadir pela dúvida e pelo desencantamento.
A comunidade em amor — alguém o contestará? — produz fatalmente frutos venenosos.
Essa partilha vergonhosa, seja imposta ou aceita com resignação, perturba o corpo e o espírito, enquanto aguarda a corrupção do sentimento.
Nas horas inquietas, a sereia pode bem murmurar, entre dois suspiros, à vítima que ela acaba de coroar de rosas, que somente ela é amada. A sereia proferiu muitas vezes estas palavras. Repeti-lo-á muitas vezes ainda. E esta profanação, erigida em sistema, que a começo irrita o cúmplice, e em seguida alimenta ciúmes furiosos no seio de paradoxos incríveis acaba por lhe fazer perder em absoluto o respeito a si mesmo.
A obra abominável está então completa.
Adeus, doces e vaidosas crenças da infância!
Adeus, inefáveis, radiosas ilusões da mocidade!
Adeus, piedosa e vivificante lembrança da mãe devotada e do avô severo!
É que o homem que frequentou os salões impuros chega a zombar de tudo quanto é santo e sagrado. Não crê mais senão no delírio dos sentidos, nos prazeres do luxo e da vaidade, nas harmonias inferiores da arte materialista. O seu coração torna-se incapaz de uma aspiração valorosa e elevada, depois que ele pratica as áridas teorias proclamadas em plena orgia.
Os prazeres austeros da família são-lhe igualmente interditos, e como a sua alma não saberia regozijar-se ao calor benfazejo de um amor profundo e sincero, nunca mais experimentará senão uma necessidade imoderada de emoções violentas, amargas, impetuosas que somente poderá satisfazer o comércio das cortesãs. Ai está a sua punição, e bem merecida.
Ai se asfixiarão os sentimentos, como flores nascidas num fumeiro.
Aquele que vive em uma atmosfera corrompida deve acabar por se corromper. Tal é a lei. Salvo raras exceções, qualquer retorno à sã moral torna-se impossível para ele. Arrastará até ao fim dos seus dias o pesado fardo do ceticismo. Desprezando, desprezado, não conhecendo da mulher senão os seus disfarces e as mentiras, ignorando a dedicação, o sacrifício, o dever, isto é, a felicidade.
Pode, porém, chegar o dia em que esse homem, que afogou no delírio o sentimento da sua degradação, desperte bruscamente do pesado sono que mantinha todas as suas faculdades entorpecidas. Esse dia será aquele em que a sua juventude se tenha esvaecido, não deixando após si mais que rugas e misérias.
Passa-se então, no camarim da cortesã, uma cena horrível.
Depois de lhe ter usurpado o coração, as ilusões e a fortuna, Belcolor pretende ainda roubar-lhe o nome.
A infâmia ou o abandono, tal é o dilema que ela impõe à sua vitima.
Esta entregara, com o seu patrimônio, toda a sua alma à pérfida criatura.
A pobreza no trabalho a apavora, falta-lhe a energia necessária para dissolver laços vergonhosos. Um rompimento, concebido nessas condições, será a sua morte.
Ao suicídio prefere a ignomínia.
É que o vício (é triste constatá-lo) possui uma força de atração a que certas naturezas não se podem esquivar.
E um nome recebido sem mácula, que pertence a uma família honesta, distinta, ilustre, muitas vezes, e a consideração pessoal, a glória, a honra, tudo é sacrificado pela paixão insensata que inspira a cortesã.
É falso que a Dama das Camélias tenha morrido do peito. Sua moléstia foi uma farsa pela qual um Artur se deixou prender. Então, entrincheirada pelo casamento, ela imagina que a consagração legal produziu a reabilitação, suprimindo radicalmente o passado.
A Dama das Camélias calunia a sociedade.
Vivendo sem remorsos no meio do luxo mal adquirido, ela não repara, nem nos murmúrios misteriosos, nem nos sorrisos zombeteiros que acolhem a sua presença, nem no rubor que tinge as faces do esposo.
Diante desse desdém vingador da moral pública, o infeliz compreende que a sua queda é irremediável.
Ele não elevou a cortesã até a sua pessoa, fazendo-a condessa ou baronesa. Ela sim, rebaixou até a ele a sua vergonha, e esta é indelével.
O remorso, então, completa a sua obra, que muitas vezes os espirituosos acham fácil.
A mulher de cor está longe de ser tão perigosa. O seu comércio não atinge absolutamente a independência do espírito e não compromete em nada a honra (já não digo a felicidade) das famílias.
Não é o seu coração que se deseja conquistar, porém as suas formas incomparáveis. Não existe para ela uma troca de ideias ou de sentimentos. Se, às vezes, a sua pessoa inspira ciúmes, nunca será por causa dos seus desejos nem dos seus pensamentos. O homem a quem a sua beleza seduziu não tem senão um intuito: a posse; e assim como ele não procura nela mais do que uma satisfação física, não se empenha nessa ligação nenhuma parte do seu moral.
O orgulho, aliás, é a sua melhor defesa: nunca um branco se casaria com uma mestiça.
Eis por que a paixão ardente que arrasta o colono para a mulher de cor jamais produz os desastrosos efeitos que ocasiona forçosamente o interesse pela cortesã branca.
Citem-me alguma obra considerável que tenha sido inspirada pela beleza venal!
Pelo contrário, não me seria difícil nomear aqui personagens ilustres, desde Salomão até o último sultão, que nada perderam do seu valor próprio por frequentar mulheres bronzeadas.
Homens de estado, guerreiros heroicos, poetas, todos provaram igualmente o acepipe do amor africano.
As mais harmoniosas estâncias de Camões (sem mesmo excetuar os versos de Os Lusíadas) são ainda as que ele compôs aos pés de Barbara, e que já recordamos atrás.
Somos forçados a reconhecê-lo: essas criaturas (que é preciso não confundir com as moças das flores e dos perfumes) são encantos poderosos para triunfar do odioso preconceito da cor, e poder curvar, com os braços cheios de cadeias — no país de escravos — a fronte altiva de senhores implacáveis.
Essa fato incontestável bastaria por si só para afirmar a soberania do prestígio que a beleza encerra.
Com efeito, o senhor, que se gaba de não ter senão sangue azul nas veias, paga a sua dívida à sociedade, desposando uma branca; mas, logo que um herdeiro lhe nasce, ele abandona a mulher da sua raça por uma rapariga de cor.
Assinalaremos daqui a pouco as consequências deploráveis que esse comércio, autorizado pelos costumes coloniais, produz no seio da família. Por hoje, limitar-nos-emos a constatar o arrebatamento que inspiram as mulatas e sobretudo as negras minas. Quantas senhoras orgulhosas e ternas, a princípio indiferentes à atenção do marido pelas suas escravas, depois feridas no seu orgulho e no seu amor pela prorrogação desta preferência, tentaram atrair para si aquele que humildes raparigas ousaram disputar! Meneios vaidosos, prantos, orações, explosões de raiva, todos os meios foram empregados em vão.
A odiosa rival foi chicoteada, esfarrapada, mutilada, envenenada mesmo, em certos casos. O senhor escolhera então outro ídolo, mas, como o precedente, este fora também talhado em mármore preto. Então, a esposa legítima, esmagada pela vergonha, resigna-se a sustar uma competição onde todas as vantagens estão do lado da escrava.
Veremos em breve quão funesto foi para a segurança do lar o exemplo do chefe da família.
Essa predileção, que parecerá certamente extravagante às pessoas que nunca viveram nas colônias, não se explica unicamente pela superioridade física das mulheres de cor.
Isso resulta de uma outra causa, ainda mais essencialmente física, e que se refere a emanações particulares que exalam os poros dessas belas criaturas.
Antes de tudo, o esplendor das suas linhas atrai-nos, e a gente se sente ferida pelas flamas ardentes que lançam as suas pupilas.
O orgulho inutilmente tenta opor-se. Apesar dos vivos protestos do sangue azul, fica-se definitivamente seduzido, quando elas marcham com um movimento intermitente das ancas, cheios de misteriosas confidências, que nos conduzem à perturbação dos sentidos.
A atração nos domina; é necessário ceder.
É então que a influência desse odor sui generis age profundamente no adorador da forma.
Um contato passageiro produz, de ordinário, o aborrecimento. Se o delírio se prolonga, a sorte do branco estará para sempre fixada: não lhe será mais permitido renunciar à frequência das mulheres bronzeadas; ainda mais, desdenhará de queimar incenso aos pés das pálidas nativas.
Como acabamos de declarar, ele poderá mudar de favorita, mas se conservará sempre fiel ao culto da cor.
Sem dar a esta enunciação todo o desenvolvimento que ela comporta, cremos dever lembrar aqui um axioma português que encerra (para o leitor que quiser seriamente interrogar) a explicação natural do fenômeno de que se trata.
Eis o texto da sentença: "Aquele que sentiu duas vezes o cheiro acre, mas embriagador da catinga da negra, achará, desde então, muito desenxabido o cheiro que exala a pele da mulher branca".
O que quer dizer que um paladar habituado às especiarias não mais se poderá privar delas, e que os pratos desprovidos de condimentos enérgicos não terão sabor algum.
Sem querer rebaixar as mulheres de cor ao nível das sacerdotisas do antigo continente, não será lícito notar que essas produzem, fisicamente, efeitos análogos sobre o seu meio?
As pomadas e essências de que as comediantes fazem uso diário impregnam suas carnes e suas vestimentas de um cheiro particular, que inunda a atmosfera em que elas vivem. Esse cheiro, repugnante a princípio, e que a paixão unicamente poderá impor às naturezas nervosas e débeis, acaba, depois de uma frequência habitual, por ser necessário e indispensável. Completa a harmonia terrível, que contém o amor atormentado, despótico, corrosivo da cortesã. As capitosas emanações do almíscar correspondem às emoções violentas que se sentem perto dela. Umas atordoam o cérebro, ao passo que as outras torturam o coração, subjugando-o.
Pois bem. Há homens que são atraídos pelos perfumes suspeitos que exalam tudo o que se refere à cortesã. Somente os enfeites, as essências, os pós agem em seus órgãos já saciados, e quanto mais uma mulher está coberta de perfumes e pinturas, mais eles a procuram.
Isto (que ninguém se iluda) é a prova de uma dupla depravação.
A mentira no amor corresponde à falsidade na pele. Da mesma forma que a corrupção dos sentimentos traz, como consequência forçada, a decomposição do ar vital.
Aí está por que a catinga é menos perniciosa que o cheiro produzido pela maquillage (perdoar-me-ão o emprego desta palavra consagrada para caracterizar o sistema de caiadura usado por essas mulheres).
O primeiro cheiro é franco e leal, porque é natural; o segundo é fictício, habitua à hipocrisia, e logicamente, depois de ter pervertido o gosto, conduz à decadência do ser moral.
Não se poderia comparar melhor o amor africano do que à túnica do Centauro.
A embriaguez, que invade o corpo, consome-o lentamente; porém, repetimo-lo de propósito, ele não tem ação sobre a alma imortal.
Isto é verdadeiro, sobretudo para o colono, que despreza a mulher de cor, pela qual, no entanto, sacrificara sua esposa legítima, e que se consola da perda do seu ídolo pela adaptação de um novo ídolo igualmente de bronze.
Os europeus que habitam os trópicos vivem em outras condições, em relação a essas magníficas criaturas. Professam também uma admiração sincera pelas suas formas esculturais.
Às vezes, é verdade que se deixam seduzir pela indolência graciosa e pela provocante vaidade da mulata; mas, ordinariamente manifestam seu entusiasmo pela negra, na qual as proporções vantajosas do corpo, os tons quentes da pele, a paixão grave, concentrada no olhar, dão a toda a sua pessoa um caráter de
grandeza, de força e de beleza soberana, que falta absolutamente à mulata e à branca.
Como eles não são acessíveis ao preconceito da cor, não receiam afirmar publicamente a preferência que dão às mulheres bronzeadas sobre as naturais do país.
Na Bahia, onde os súditos dessa nação maometana são em grande maioria entre os irmãos de servidão, as negras minas monopolizam quase exclusivamente os traficantes estrangeiros.
As soberbas e irascíveis senhoras inutilmente estigmatizam os europeus por causa dos seus gostos depravados. É o despeito que assim fala. Os colonos fazem tacitamente causa comum com os europeus e, em suma, essas ligações, altamente confessadas, não desconsideram mais os que as praticam do que, em Paris, a proteção audaciosa que se dá a uma comediante ou à filha de um porteiro transformada em concubina.
Pode-se mesmo declarar que esse comércio com mulheres de cor é um hábito vulgar entre os residentes estrangeiros.
Estes, estabelecendo-se em terra americana, conservarão, com algumas exceções, a ideia de regresso ao país onde nasceram.
É por isso, sistematicamente, depois de maduras reflexões, que eles só contraem nas colônias laços fáceis de desatar.
Em todo o caso, no meio das homenagens que eles rendem ao esplendor corporal, não imitam a forma ultrajante e o desdém grosseiro que os nativos proclamam em relação aos objetos de entretenimento passional.
Verifiquemos ainda uma vez.
O homem das zonas equatoriais, sensível à beleza física, porém dominado pelo preconceito da pele, não vê nas mulheres de cor senão um magnífico instrumento de prazer, que excita ao mesmo tempo os seus desejos e o seu desprezo.
O europeu, ao contrário, cuja apreciação é sadia, eleva por generosos meios a pobre pária que se associa momentaneamente ao seu destino. Ele não se julga quites com ela, enchendo-a de joias: paga-lhe ainda em proporção à felicidade que lhe deve.
Ela, por seu lado, habituada até então às humilhações e aos insultos, comove-se com tal conduta. Testemunha ao seu protetor um apego profundo, onde o reconhecimento figura em maior parte. O seu moral ressente-se assim das suas novas condições de existência. O abatimento em que mergulhava desaparece sob a influência de um sentimento simpático. A mulher é então revelada na negra. O amor deu uma alma à escrava.
Feita a sua fortuna, em atenção a si mesmo, o negociante recompensa generosamente a criatura que viveu a seu lado durante tantos anos. Não lhe faculta rendimentos, sem dúvida, porém entrega-lhe uma soma
suficiente para empreender um pequeno negócio, se ela quiser trabalhar.
Vã previdência de uma criatura que interrogou com terror o futuro!
Habitualmente, a mulata, quando ainda não passou a idade de agradar, gasta loucamente o dinheiro das despedidas, e volta à vida indolente que lhe proporciona um novo protetor.
Se se trata de uma negra escrava que o novo dono escolhera, ele a emancipa antes de partir, e deixa-lhe, com alguns fundos, a liberdade de dispor do seu coração.
A filha da África conserva por mais tempo a lembrança das horas afortunadas em que o amor a fizera semelhante ao branco. Não obstante, acaba sempre por desposar um homem da sua cor, um mulato, algumas vezes, que o seu modesto pecúlio seduziu.
Mais de um europeu, entretanto, reconheçamo-lo, esquece de comprar o filho nascido desse comércio que segue naturalmente a mesma sorte da mãe, se esta continua escrava.
Outros, embaídos por estúpidos preconceitos, envergonhar-se-iam de conduzir para a Europa o seu descendente de cor. Preparam silenciosamente a sua partida, esforçando-se por amortecer inquietudes legítimas. E uma noite, abandonam sem remorsos a companheira dedicada do exílio e o pequeno mestiço que tantas vezes acalentaram nos braços.
Mas esses ingratos nem sempre conseguem enganar a ternura sombria dessas amantes, dessas mães.
Às vezes, a ligação, em lugar de se desfazer banalmente pelo abandono ou pelo desgosto, é violentamente cortada pelo ciúme e o desespero. É que o amor, já o dissemos, levantou a escrava da sua abjeção, deu-lhe uma alma, uma alma que não mais separa os direitos dos deveres, e que se revolta furiosamente contra a deslealdade e a mentira. A vingança vela, enquanto é urdida à traição.
Já o traficante fez o seu pecúlio. Já o seu caderno de notas está bem marcado de transações entabuladas com a Europa . Ao chegar o próximo paquete, ele deixará furtivamente a terra estrangeira e voltará para a sua pátria a fim de desfrutar a fortuna laboriosamente conquistada.
É então que a morte o surpreende em meio dos preparativos que ele julgava ignorados. Expia logo a odiosa baixeza que concebera longamente, e estava em vésperas de executar.
Por seu turno, o que consegue por os pés a bordo de um navio felicita-se por estar ao abrigo da desforra da sua Ariadne de ébano.
O fogo que devora as suas entranhas não tardará a provar-lhe que a filha da África tomou a sério as suas juras de eterno amor e os seus deveres de paternidade. A criança continuará escrava, seja... mas o branco será, mesmo sem o querer, fiel á negra, pois o veneno que circula nas suas veias é daqueles que não perdoam.
Tal é o papel que desempenha nas colônias a mulher de cor.
A irresistível atração que arrasta para ela o crioulo e o europeu tem dupla causa: as suas formas sedutoras e o cheiro das suas axilas.
O homem, habituado à atmosfera que o envolve, está condenado a viver nela eternamente.
Isto é tão verdade que a maior parte dos traficantes — uma vez feita a fortuna — levam com eles para a Europa uma ou mesmo mais mulheres bronzeadas.
Conheci um francês (tinha apenas uns 40 anos e possuía dois milhões) que voltou da América com uma negra mina que alforriara.
Sancha era bela entre as mais belas de suas irmãs, e ainda mais, dedicava ao seu protetor um reconhecimento apaixonado. Pois bem, em Paris, ela viu-se esquecida e reconheceu que cada dia lhe arrebatava um pouco do seu império.
O francês, antes tão vivamente apaixonado, não lhe testemunhava ainda frieza, propriamente; mas a negra não interessava mais à sua felicidade, e ele vivia imerso em uma tristeza cujos motivos lhe eram desconhecidos.
Uma noite, a mina, enciumada, não se conteve mais.
— Então Sancha perdeu o afeto do senhor? Perguntou ela. E o brilho da sua pele escura ficou menos sedutor que a palidez das mulheres brancas? — Por que motivo?
O francês tentou em vão acalmar a negra. Muitas cenas se sucederam.
Uma manhã, no entanto, a alegria voltou a casa. Os criados faziam as malas, e a mina dirigia os preparativos da partida.
Eu fora levar minhas despedidas ao antigo negociante.
— Uma negra desterrada na Europa, confessou-me ele, vive como uma branca nos trópicos. No nosso clima de brumas as suas carnes amolecem e perdem o cheiro que nos embriaga. Trocam-se também os reflexos fascinantes que a luz equatorial lhes dá por tons obscuros, inexpressivos, que lembram a cor lodosa da mulata. O bem-estar desaparece na Europa para essas excelentes criaturas. Às filhas do sol é necessário uma coroa de luz. Eis por que volto para a América. O quadro está em meu poder. Vou procurar a moldura, que lhe dará valor.
Esse jovem milionário era simplesmente um discípulo de Rafael e de Ticiano. Adorava a linha como Ingres e a cor como Delacroix. Sua apreciação inteligente das leis da perspectiva estabeleceu manifestamente que o senso artístico era tão fortemente acentuado nele quanto o gênio dos negócios.
Agora que este estudo está findo, compreende-se melhor o apego exclusivo do corretor por Manuela.
Fruchot tinha provado a maçã do amor africano, e a catinga o embriagava.
Ter-lhe-ia sido fácil, como muitos outros senhores, casar com a branca que o seu cabelo ruivo seduzisse, e ainda, o dote embolsado, abandonar a mulher legítima para retomar Manuela.
Mas Fruchot, embora corretor, conservava os seus elevados sentimentos de artista. A ideia de semelhante infâmia não podia passar pela sua cabeça.
Eis por que o meu antigo condiscípulo, feliz com a sua duquesa bronzeada (como ele gostava de a chamar), recusou o casamento que lhe haviam proposto.
Na verdade, Manuela não era indigna desse sacrifício. Quanto mais a conhecíamos, mais apreciávamos essa natureza dócil que ainda não tivera tempo de ser corrompida pelo cativeiro.
Era, sobretudo, para essa que o amor abrira largos horizontes.
A dedicação da preta fora sem limites, como o seu reconhecimento; e a sua alma, fecundada pela felicidade, atingira sem esforço os cimos luminosos que existiam na alma do corretor. Doce, afável na sua majestade natural, Manuela cercava constantemente Fruchot de cortesias e cuidados deliciosos.
Assim, durante as refeições, a mina não tocava em um prato antes dele, e cada vez que bebia, inclinava a cabeça para o seu lado com um movimento cheio de graça e de deferência.
Quanto a mim, Manuela conquistara a minha simpatia.
Fruchot, a quem comuniquei as minhas impressões, declarou-me que em casa ela nunca consentiu em sentar-se à mesa com ele. Servia-lhe com uma amabilidade respeitosa e não jantava senão depois dele ter acabado. Manuela não podia esquecer que Fruchot era um senhor branco, e que, pela cor, ela lhe era inferior.
A preta ignorava ainda, tão dedicada, tão sincera na sua afeição, que o amor aproxima as distâncias e constitui a perfeita igualdade. Sem igualdade não há amor, nem amizade. Se não fosse o abuso detestável que ela fazia do almíscar, como aliás, todas as suas parceiras, eu teria julgado aquela negra a mais perfeita das criaturas.
Pensei, mais de uma vez, olhando-a, na sedutora Barbara.
"Que sua graça encantadora fazia dela a soberana de quem era escrava."
Deixem-me agora dizer duas palavras sobre o nosso modo de viver a bordo da sumaca . Isto me vai proporcionar ocasião de reproduzir a dupla face dos costumes brasileiros.
Autoria de Charles Expilly (tradução de Gastão Penalva), no livro 'Mulheres e Costumes do Brasil, Companhia Editora Nacional, São Paulo, Biblioteca Pedagógica Brasileira - Brasiliana, 1935, capítulo III, p. 122-155. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.
Nota do Tradutor
A tradução da obra de Charles Expilly 'Les femmes et les moeurs du Brésil', que tomei a meu cargo, carece, por natureza, de duas palavras explicativas.
Cuida-se de um livro propriamente escandaloso, para usar a expressão literária, em toda a sua extensão.
Escandaloso pelo despeito do autor, que um dia veio de França com sua esposa na intenção de fundar no Rio de Janeiro uma escola normal e, dissuadido por uma promessa irrealizada, acabou fabricante de fósforos. Escandaloso pelos conceitos emitidos em desfavor da nossa raça, dos nossos costumes, da vida íntima da família brasileira, que com tanto carinho o agasalhou e a quem ele nega hospitalidade. Escandaloso pelas duras verdades que contém, essas mesmas verdades cruas e desconcertantes que 70 anos depois haviam de ressurgir pela boca do sr. Paulo Prado, desenhando a cores vivas o Retrato do Brasil. Escandaloso como um libelo tremendo contra a escravidão, cujos martírios o autor denuncia, lança aos ares como sinistro apregoador de desgraças, exaltando, num hino dissonante, essa raça infeliz e oprimida donde saiu o peito ingênuo e fecundo que amamentou sua filha. "Comme ta mère, tu es née au Brésil et une esclave t'a donné son lait". Escandaloso afinal como celeiro informativo da nossa história, dos nossos dias passados, da nossa acidentada formação nacional, em meio de um estado de coisas que o próprio Expilly (e ai se estriba a sua defesa) fundamenta no trecho de um jornal da época, firmado de punho brasileiro, e insculpe matreiramente no pórtico do seu livro.
Tudo isso, creio, me põe à salvaguarda da pecha de escritor antipatriótico. Outras muitas versões se têm dado à lume, onde esse possível antipatriotismo se evidencia de modo mais irritante. Quem desconhece o acervo de ironias que os viajantes esclarecidos que nos têm visitado, em todas as idades, vão largando daqui e dali, nos seus polpudos relatórios, como quem atira a esmo inúteis pontas de cigarros, mas de cinza ainda quente?
Ao menos, o atrabiliário Charles Expilly, se muita vez amarga nas suas apreciações, tem por si o mérito de condenar ao exagero uma instituição que no decurso de séculos nos infelicitou as páginas da história, num regime cruel de opressão que a seu ver era uma iniquidade. "L'iniquité retranchée dans une logique impie, c'est le blasphème incarné dans le burreau".
Julgue o leitor esses capítulos com o espírito tranquilo, desprevenido de falsas patriotadas, dessas clássicas patriotadas que nos fazem, esquecidos de lavar a roupa de casa, estremecer de rancor se alguém de fora nos aponta as sujeiras. Aprecie com serenidade a alucinante marcha dos tempos. E veja se, graças a Deus, que é brasileiro, progredimos ou não, desde o dia 20 de abril de 1857, 357 do descobrimento e 77 da nossa era presente, em que o jornalista Eugenio do Prado escreveu no Jornal do Comércio, dando conta, como o outro Prado, do retrato do Brasil desse tempo: "Embrutecimento do clero — nenhuma crença nas classes altas, uma mistura de idolatria, de paganismo, de superstição e de cristianismo nas classes inferiores — tal é o estado do Brasil".
Como ficou dito, o único intuito dessa tradução (e os editores o reconheceram de pronto) reside no seu valor documentário. Bem ou mal considerado, o que apenas buscamos conservar, reproduzido em vernáculo, é o material que reflete o nosso passado social e histórico, se bem que contemplado por uns olhos algumas vezes sensatos, outras vezes deformados por consciente estrabismo.
Agora, as decisões da justiça.
"La justice, c'est la verité; et Ia verité, c'est Dieu".
GASTÃO PENALVA
MUITO LINDOOO!
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