12.11.2011

ESCRAVATURA - IMPOSTO DA CAPITAÇÃO



Ainda hoje, de vez em quando, aparece alguém sugerindo a implantação de um “imposto único” no Brasil. Alexandre de Gusmão, em 1733, prometendo ao Estado um grande aumento e, aos vassalos, um grande alívio, apresentou ao rei o seu projeto de que se trocassem todos os impostos por dois únicos tributos (na verdade um só), a saber: “matrícula dos escravos e maneio, relaxando por eles os quintos e mais direitos que hoje se pagam na casa de fundição, os dízimos e mais direitos de lavouras, o registro e mais direitos de passagens de todos os caminhos e todas as imposições de que hoje se compõe o donativo, deixando livre a cada qual negociar com o ouro na espécie que lhe parecer e introduzir nas Minas, ou extrair delas, os gêneros que quiser, sem pagar mais direitos que aqueles que já se acham estabelecidos nos portos de mar”832.

O Brasil não conhece o Brasil; não conhece sua história tributária. Por isto é que alguns “Gusmões” de hoje ainda ousam propor o tal “Imposto Único” sem medo de serem linchados pela população. Senhores tributaristas, prestem atenção na proposição, implantação e efeitos do tributo da capitação nos anos setecentos.

O número de pretos forros era tão considerável que o sistema tributário de capitação se idealizou e se viabilizou por incidir também sobre eles. Vejamos registro da profª. Laura de Mello e Souza: “No início dos anos 30 do século XVIII, estudando as possibilidades de se estabelecer nas Minas o imposto da capitação, a Coroa dirigiu ao governador conde das Galvêas uma série de cartas ordenando que se examinassem as vantagens e desvantagens da alforria. O conde respondeu que, apesar de serem ordinariamente atrevidos, os (negros e crioulos) forros trabalhavam nas lavras e apresentavam utilidade aos reais quintos, como contribuintes que eram. Já os mulatos forros eram bem mais insolentes, 'porque a mistura que têm de brancos, os enche de tanta soberba e vaidade que fogem ao trabalho servil, com que poderiam viver, e assim vive a maior parte deles como gente ociosa'. O rei alarmou-se ante essas informações, pedindo que Galvêas opinasse sobre a necessidade de se 'dar alguma providência acerca dos mulatos forros, que vivem também em grande liberdade o escravismo, como ideologia político-econômica, tinha, necessariamente, que desmoralizar, como desmoralizava, o trabalho livre. O sistema tributário da capitação, no entanto, viu nos forros importantes contribuintes e instituiu, assim, estupenda contradição ideológica: “Como a maior parte dos negros e mulatos forros trabalham em ofícios mecânicos (...) sejam espoliados das Minas e se pode recomendar ao governa-dor não consinta vadios e os obrigue a servir na lavra das terras ou (...) nos ofícios mecânicos e que não (...)” mudem “(...) este modo de vida”834.

As verdadeiras razões da pecha de vagabundos que até hoje atribuímos a nós mesmos são óbvias; se não as enxergá-vamos é porque a nossa historiografia havia extirpado vários elos da corrente de nossa História.

Teixeira Coelho em Instrução, escrito em 1780, deixa evidente de onde veio a nossa fama de vagabundos, contra-pondo-nos ao trabalhador europeu chegado no Brasil depois de 1870. Tudo aquilo era conseqüência da ideologia escravista a que fomos submetidos por mais de três séculos:

“Não há na Capitania de Minas um homem branco, nem uma mulher branca que queiram servir; porque se persuadem que lhes fica mal um emprego, que eles entendem que só competem aos escravos. (...) Esta presunção e ociosidade dos brancos se tem transferido aos mulatos e negras, porque uma vez que são forros não querem trabalhar e nem servir, e como a necessidade os obriga a procurarem as suas subsistências por meio ilícitos - se precipitam os homens e as mulheres, cada um nos vícios que correspondem aos diferentes sexos”835. (Grifos, nossos.)

Portanto, preconceituosos contra o trabalho pelas próprias mãos eram os reinóis e os mazombos, cuja vaidosa elitização do ócio a contradição escravista repassou aos forros. Em 1734, o sistema tributário da capitação, com algumas diferenças, fora implantado somente para a mineração dos diamantes. Esse sistema, no entanto, em 1735, acabou sendo aplicado para todas as atividades produtivas da capitania Mineira: “(...) estabeleceu a capitação dos escravos, e censo das indústrias pelo termo de junta feito em Vila Rica a 30 de junho de 1735 (...) em que cada negro escravo ou forro pa-gasse – quatro oitavas e três quartos de ouro – cada ofício o mesmo – cada loja grande – vinte e quatro oitavas – cada lo-ja medíocre – dezesseis oitavas – cada loja inferior – oito oitavas – cada venda – dezesseis oitavas (...)”. Depois, em 11 de julho de 1735, retificou-se que “(...) Escravos crioulos nascidos em Minas de idade até quatorze anos para baixo, se não pagaria coisa alguma; e que cada negro, negra, mulata ou mulato forros, que, como mineiros, ou roceiros não tivessem escravos, nem vendas lojas ou ofícios pagariam duas oitavas, um quarto e quatro vinténs”. (...). “Principiou a capitação no primeiro de julho de 1735, e se proibiu o uso da moeda, ficando livre o ouro em pó para que os donos pudessem levar aos portos do mar, porém que deles só poderiam conduzir para o porto de Lisboa”836.

A capitação implantada, na verdade, substituiu apenas os quintos e criou o imposto das “indústrias”, ou seja, tributou o trabalho das pessoas que seriam, nos dias atuais, as pessoas físicas trabalhadoras (assalariadas e autônomas) e as pessoas jurídicas (indústria e comércio) permanecendo todos os demais impostos, além do Subsídio Voluntário que seria criado em 1755 para ajudar a reconstruir Lisboa, mas que só foi extinto, em tese, na República. A história do sistema tributário da capitação, causa de genocídio e vergonha para reinóis, mazombos e forros pelegos das Minas, foi deformada na historiografia graças, também, à falsidade da opressão tributária ao povo atribuída às casas de fundição da época da Inconfidência Mineira. Assim, revelada a história da capitação, também a historiografia da Inconfidência Mineira, neste ponto, terá que ser revista.


Notas

832 Obras Várias de Alexandre de Gusmão, parte II, Tomo I, 1950, p. 57.
833 Desclassificados do Ouro, Graal, 1982, p.107, citando cartas de 17 de junho de 1733 e 20 de maio de 1732, APM, SC, Cód. 18. Parêntesis não-itálicos, nossos.
834 Verbete nº. 1727 do IMAR/MG, Cx. 22, Doc. 41, do AHU, confirmando a informação da dra. Laura.
835 Revista do Archivo Público Mineiro, v. 8, p. 561.
836 Instrucção de J.J. Teixeira Coelho, in Revista do Archivo Público Mineiro, v. 8, Fasc. I e II, jun-jul-1903, p. 492-493.

Por Tarcísio José Martins no livro 'Quilombo do Campo Grande', Santa Clara Editora, Contagem MG, 2008, p.324-327. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

No comments:

Post a Comment

Thanks for your comments...