12.08.2011

JÔ SOARES - AS ESGANADAS (CAP. 4 e 5)


CAPÍTULO 4
Transcrição do telefonema gravado na central radiotelefônica do Palácio Central da Polícia, por ordem do excelentíssimo senhor capitão Filinto Müller, chefe de polícia do Distrito Federal. O diálogo ocorreu entre o delegado Luiz Mello Noronha, destacado para investigar o cognominado “Caso das Esganadas”, e o chefe de polícia de Lisboa, excelentíssimo senhor doutor Manoel de Freitas Portella. O colóquio foi acompanhado pelo escrivão de polícia António Castelão, filho de portugueses, para ajudar nas eventuais variações linguísticas.




RIO DE JANEIRO
SEXTA-FEIRA 22 DE ABRIL DE 1938 — 10H30

NORONHA: Doutor Portella?
PORTELLA: Tô!
NORONHA: Alô?
PORTELLA: Tô! Tô!
NORONHA: Um momento, por favor! (Castelão intervém em auxílio de Noronha)
CASTELÃO: Doutor Portella?
PORTELLA (Resmunga baixinho longe do bocal): Cabrão de merda...(alto) já disse que estou cá!
CASTELÃO: Aqui é do Brasil, estamos ligando da Central de Polícia do Rio de Janeiro. Bom dia.
PORTELLA: Bom dia não, boa tarde.
CASTELÃO: É que aqui ainda é de manhã. Um momento, o doutor Noronha vai falar.
NORONHA: Doutor Portella, aqui é o delegado Mello Noronha. Está me ouvindo?
PORTELLA: Tô.
NORONHA: Ah, agora entendi! É o seguinte: nós estamos investigando uma série de crimes e tem um português chamado Tobias Esteves se oferecendo pra ajudar. Ele diz que foi policial em Lisboa. É verdade?
PORTELLA: Sim. (Silêncio prolongado)
NORONHA: Doutor Portella?
PORTELLA: Tô.
NORONHA: Ele era bom profissional?
PORTELLA: Quem?
NORONHA: O Tobias Esteves!
PORTELLA: Do melhor. Infelizmente, foi afastado. Meteu-se numa patranha por conta de um inglês trafulha.
NORONHA: Um momentinho. (Outro silêncio e Castelão traduz)
NORONHA(Volta a falar): Se entendi bem, Esteves se envolveu numa trapaça por causa de um inglês vigarista.
PORTELLA: Pois. Mas nada de grave, foi uma esparrela pra ajudar um poeta que lhe era muito querido. Um tal de Fernando Pessoa. Os dois, mais um jornalista, inventaram uma patacoada como se o inglês, um intrujão chamado Aleister Crowley, houvesse sumido na Boca do Inferno.
NORONHA: Sumido onde?! (Reclama em voz alta) A ligação tá uma merda! (Retoma a conversa) Não deu pra entender direito. O senhor disse que ele foi pro inferno?
PORTELLA: Não! Boca do Inferno! É um sítio perto do mar em Cascais com umas rochas muito perigosas. Os aldrabões deixaram lá um bilhete como se o cabrão do inglês se tivesse suicidado. O local é perfeito pra esse tipo de desporto. Bem, pra não ficar a deitar fora o nosso tempo, quanto ao Esteves, acho que a punição foi exagerada. O gajo até que é porreiro, lembro-me bem dele. Como detective, fazia deduções pasmosas. Mande-lhe de mim um abraço quando lhe chegar ao pé. (Desliga)
NORONHA(Para ninguém): Obrigado.

CAPÍTULO 5

Satisfeito com o resultado do telefonema, o delegado Mello Noronha chama Tobias Esteves ao seu gabinete na tarde da mesma sexta-feira. Manda emitir para ele uma carteira de delegado auxiliar provisório, convocado especialmente para o Caso das Esganadas. A autoridade do delegado oficializa a exceção. Em outras circunstâncias, a licença jamais seria concedida.
— Você entende que esse tipo de arbitrariedade não é do meu feitio
— explica Noronha, tratando Tobias com mais intimidade.
— Entendo perfeitamente, senhor doutor delegado.
— O doutor Portella elogiou muito seu trabalho.
— Bondade dele. O doutor Portella é dos poucos chefes que não foram substituídos no cargo pelo Salazar. Na política, essas trocas são comuns. Como dizia meu avô alentejano: “À merda nova, moscas novas”.
— Você está se referindo ao Estado Novo.
— Pois. Veja que ironia, senhor doutor delegado, escapei lá do Estado Novo, pra cair cá num Estado mais Novo ainda.
— É verdade.
— “Diz-me com quem andas, se não for eu, não vou.”
— Quê? — pergunta o delegado, sem entender.
— Nada, nada, senhor doutor delegado, é um ditado lá da minha terra.Muito antigo, do tempo em que Deus usava fraldas.
— O senhor é evangélico? — pergunta o curioso Calixto.
— Não, sou agnóstico.
— Agnóstico? O que é agnóstico?
— É um ateu cagão — define Mello Noronha, à sua maneira.
Desistindo de decifrar o provérbio, Noronha entrega a Tobias a pasta com as informações iniciais recolhidas pela polícia e o laudo das autópsias. Esteves põe uns pesados óculos de aro de tartaruga e absorve-se no relatório. Sua leitura é pontuada por gemidos curtos que o ajudam a se concentrar. O tique fora adquirido na infância, quando o menino Tobias estudava suas lições. O ruído, quase imperceptível, irrita Mello Noronha, da mesma forma que levava à loucura seus colegas de Lisboa.
Os documentos mostram que a primeira vítima se chamava Esmeralda Bulhões e sua família era do Rio Grande do Sul. Seu pai, Bernardino Bulhões, coronel do Exército, viera para a Capital com a revolução e era amigo do general Flores da Cunha. Esmeralda sofria de obesidade clinicamente severa, causada por uma disfunção glandular. Os médicos não sabiam ao certo qual. Tinha vinte e três anos e estudava francês. Sua mãe tinha certeza de que ela não conhecia as outras três desaparecidas. Na autópsia, dificultada pela corpulência da vítima, ficou comprovada ausência de atividade sexual pelo aspecto íntegro da membrana himenal. O conteúdo do estômago era composto de grande quantidade de açúcar, pasta de amêndoas, farinha de trigo e uma substância semelhante a ovos, misturada a uma certa quantidade de líquido de cor vinhosa, com forte odor etílico, porém não identificado. Nenhuma parcela havia sido digerida, indicando que a morte ocorrera minutos antes. As bordas internas da faringe estavam parcialmente laceradas, como se um objeto rombo e contundente tivesse sido introduzido, violentamente, pela boca até o esôfago, dilacerando também a traqueia. O óbito foi atribuído à asfixia mecânica por esganadura.
A autópsia do segundo corpo, o de Ivone Lopes Macedo, de vinte e dois anos, uma das herdeiras do laboratório Wendell & Macedo, é uma cópia exata do laudo cadavérico de Esmeralda Bulhões. A única diferença consiste no material encontrado. Acrescente-se, ao conteúdo gástrico observado na primeira vítima, casca de laranja picotada e, em vez do odor etílico, o que parecia ser um líquido cítrico, sugestivo de limão. Os achados referentes à vítima de número três, Ruth Mangabeira, de dezenove anos, filha de um ginecologista famoso, e à quarta, Cordélia Casari, de trinta e cinco anos, neta do industrial italiano Francesco Casari, têm as mesmas características. A não ser, novamente, o que revelou o conteúdo gástrico de cada uma delas. No caso de Ruth, era sugestivo de uma mistura de farinha de batata, ovos, açúcar e fermento em pó.
No exame de Cordélia Casari, uma substância diferente chama a atenção: uma massa gelatinosa semelhante ao chocolate endureceu no interior do aparelho digestivo, lesionando a mucosa do estômago. Há sinais de edema na face externa da coxa direita dos cadáveres, recobertos por manchas esbranquiçadas e ressecadas, sugestivas de líquido seminal, como se o agressor tivesse ali friccionado o pênis.
Esteves começa a ler em voz alta:
— Ainda consta dos laudos: “Nos quatro corpos, há presença de lesões cutâneas perilabiais e em torno das narinas causadas pelo anestésico triclorometano. A pele do rosto ainda exala o odor adocicado característico do clorofórmio. Não há espessamento de pele causado por calosidades nas pontas dos dedos que sugira a prática de instrumentos de corda. Levando-se em conta a decomposição, a obesidade e a ausência dos globos oculares, o rosto das jovens é caracterizado por traços harmoniosos. O sangue das vítimas foi substituído por groselha”.
O sotaque cadenciado do lisboeta empresta à leitura a marca absurda da blasfêmia. O delegado Mello Noronha é um homem prático. Para evitar o trânsito intenso das manhãs de segunda-feira sem despertar a curiosidade natural por assuntos da polícia, em vez do carro oficial com sirene ele usa uma ambulância do pronto-socorro. O veículo foi posto à disposição da Central. É nessa ambulância, conduzida pelo taciturno Calixto, que ele e Tobias Esteves se dirigem ao velório. Não é mera coincidência que tudo tenha ficado a cargo da funerária Estige; afinal, a empresa é a mais luxuosa da cidade. As famílias podem pagar o que há de mais sofisticado para o rito de passagem. Noronha mostra a Tobias o folheto de propaganda distribuído pela funerária.
Esteves contempla fascinado o anúncio, que exibe diversos tipos de caixões, desde os feitos de madeiras nobres aos fabricados com o pinho mais modesto. Há detalhes sobre as ferragens e os estofados. Os padrões mais caros têm alças folheadas a ouro e estofamento de cetim. A Estige possui em suas dependências dois salões para as cerimônias decorados em estilo barroco. Imagens celestiais repletas de anjinhos enfeitam o teto. Fazem parte do conjunto uma capela ecumênica, floricultura, restaurante, bonbonnière, loja de souvenirs, apoio psicológico e suporte religioso.
— É quase um convite ao suicídio — ironiza Mello Noronha. — Os enterros vão ser muito concorridos.
— Nunca se sabe, delegado — retruca Esteves. — Como se diz em Portugal: “Por mais caridades que faças e por mais rico que sejas, a quantidade de pessoas que irão ao teu funeral vai depender do tempo que estiver fazendo”. Faz-se uma longa pausa.O reflexivo Calixto quebra o silêncio pensando alto:
— Por mim, prefiro um velório de rico do que um casamento de pobre.

Trancado numa saleta nos fundos da rua Real Grandeza, Caronte ouve o burburinho suave produzido pelas pessoas presentes ao velório. As famílias decidiram que suas filhas seriam consagradas na mesma cerimônia. Econômico, o coronel Bulhões vê ali a possibilidade de um desconto. “Morreram juntas, sai mais barato enterrá-las juntas”, argumenta o militar, soluçando. Diante da reação ultrajada dos outros, ele corrige: “Claro, cada qual na sua cova”.
Caronte passou a noite e a madrugada aprontando os corpos agora expostos em ataúdes do modelo Imperial de Luxe na sala principal, cujo nome é Limiar do Paraíso. Sua destreza no acondicionamento final é reconhecida até pelos colegas mais invejosos. O processo inicia-se pela substituição do sangue e de outros fluidos do corpo. Nesse caso específico, da groselha. Caronte se permite um risinho soturno: “Ora, é quase igual!”. Em seguida, com uma máquina aperfeiçoada por Olavo Eusébio, ele bombeia o líquido de embalsamamento.
Geralmente, o profissional usa, em média, de oito a dez litros da infusão, mas, devido à vasta massa corporal das clientes, ele adiciona seis litros a esse volume. O líquido é resultado de outra técnica secreta do pai; aglutinado aos produtos químicos, há um óleo de aroma adocicado feito de ervas e pétalas de jasmim. Cumprida a manobra inicial, ato contínuo o verdugo dedica-se à infausta empreitada de vestir as quatro gordas. “Pesos mortos...”, ele pensa, rindo do calembur. Ali, não há o guincho que o ajuda no velho matadouro. Também não quer compartilhar o momento com os seus auxiliares; a Estige tem mais de doze funcionários contratados com a nova carteira de trabalho assinada.
Esse alumbramento é só dele: põe-lhes os vestidos brancos de renda, meias três-quartos da mesma cor, sapatilhas ornando os pezinhos gorduchos. Nos cabelos, uma guirlanda de flores do campo completa o ar angelical. Com seus dedos ossudos, maquia-lhes delicadamente os belos rostos. Um batom rosa sutil e uma pincelada de ruge nas faces rechonchudas. Inventou uma palavra para definir a arte: necrosmética. Ele observa, embevecido, sua obra e, trêmulo, sem se dar conta, deixa escapar um jato de esperma num orgasmo incontrolável. Caronte lava-se e veste a velha sobrecasaca que Olavo Eusébio usava em todos os funerais. Retirou-a do corpo ainda morno do pai morto. Antes de entrar no salão, arregaça as mangas e injeta em si próprio a solução de cocaína e heroína que prepara habitualmente. Utiliza a fórmula para vencer sua timidez contumaz. Embalado pelo delírio da droga, ele abre a porta para conduzir as exéquias. Hoje, Caronte está particularmente exaltado. Desequilibrou-se na dose.
Apoia-se no umbral e começa a sinistra litania:
— Deus está aqui. Deus, que tudo viu, tudo vê e tudo verá. Os grilhões destas almas sofridas se romperão, e Deus, que tudo viu, tudo vê e tudo verá, as aguardará de braços abertos. Lá, elas não mais padecerão do pecado da gula. Lá, elas não serão mais moçoilas gordalhaças, e sim sílfides vaporosas nos jardins divinos. Nunca mais serão chamadas de “as abalofadas”, “as corpulentas”, “as obesas”, “as volumosas”, “as gordalhonas”, “as atoucinhadas”, “as sebáceas”, “as chorumentas”, e, por que não dizê-lo?, de “as esganadas”.
— Caronte toma fôlego e segue:
— Sem falar nos apelidos humilhantes como “rolha de poço”, “baleia” e “baiaca”.
Ele lança-lhes o olhar vitrificado pelas drogas.
— Pobres virgens ilibadas! Saibam que Deus, que tudo viu, tudo vê e tudo verá, condena esses epônimos! O Criador tem por vocês o carinho que o grande poeta Ribeiro Couto manifestou. Nem o mal-estar generalizado o impede de continuar. De nada adiantam os esforços do delegado e de Esteves para detê-lo. Esgueira-se cambaleando entre os pesados esquifes e dirige-se a cada uma das ocupantes arrochadas nos Imperial de Luxe, proclamando:

— Esta menina gorda, gorda, gorda, 
Tem um pequenino coração sentimental. 
Seu rosto é redondo, redondo, redondo; 
Toda ela é redonda, redonda, redonda, 
E os olhinhos estão lá no fundo a brilhar...
Caronte safa-se da mão férrea do coronel Bulhões e insiste:
— É menina e moça. Terá quinze anos?
Umas velhas amigas de sua mamãe
Dizem sempre que a encontram, num êxtase longo:
“Como esta menina está gorda, bonita!”
“Como esta menina está gorda, bonita!”
E ela ri de prazer. Seu rosto redondo 

Esconde os olhinhos no fundo, a brilhar. Esteves tenta derrubá-lo com uma rasteira, Caronte salta sobre a perna estendida e emenda:

— Às vezes no quarto,
Diante do espelho,
Ao ver-se tão gorda, tão gorda, tão gorda,
Ela pensa nas velhas amigas de sua mamãe
E também num rapaz
Que a olha sorrindo,
Quando toda manhã ela vai para a escola:
“Ele gosta de mim… ele gosta de mim.
Eu sou gorda, bonita…”
E os dedos gordinhos pegando nas tranças
Têm carícias ingênuas diante do espelho...

Caronte termina a ronda macabra, recolhe um lírio pousado sobre um dos caixões e desaparece pela porta do seu gabinete. Passado o constrangimento, os parentes, acalmados por dois funcionários da funerária, fingem se convencer de que aquela exibição patética faz parte do pacote mortuário.

Leia também:
AS ESGANADAS (CAP.6 a 8)


Por Jô Soares no livro ' As Esganadas', Companhia das Letras, 2011, p. 31-41. Editado para ser postado por Leopoldo Costa.

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