12.09.2011

O BOI NO FOLCLORE BRASILEIRO

Leopoldo Costa

Pelas regiões da pecuária vive uma literatura oral louvando o boi, suas façanhas, agilidade, força, decisão. Especialmente no Nordeste, onde outrora não havia a divisão das terras com cercas de arame, modificando a fisionomia social dos agrupamentos, motivando uma psicologia diversa, os bois eram criados soltos, livres, nos campos sem fim. Novilhos eram beneficiados: ferra, assinalação na orelha, castração. Cada ano os vaqueiros campeavam o gado para a apartação, separando-se as boiadas segundo os ferros e a inicial da ribeira, impressa a fogo na coxa. Alguns touros e bois escapavam ao cerco anual e iam criando fama de ariscos e bravios. Eram os barbatões invencíveis, desaparecidos nas serras e várzeas, bebendo em olheiros escondidos e sesteando nas malhadas distantes. Vaqueiros destemidos iam buscar esses barbatões, com alardes de afoiteza e destemor. Vezes, o boi escapava e sua fama crescia pela ribeira. Cantadores encarregavam-se de celebrizar suas manhas, velocidade e poderio.

Outros cantadores levavam, cantando, esses versos para outras regiões. O boi ficara célebre. Um dia, inesperadamente, um vaqueiro ou um grupo surpreendia-o, corria horas e horas em seu encalço, alcançando-o, derrubando-o, pondo-lhe a máscara e trazendo-o, ao grito do aboio vitorioso, para o curral. Como não era possível conservar  esse animal fugitivo e feroz, abatiam-no a tiros, aproveitando a carne. Novas cantigas narravam sua captura, a derradeira batalha e o sacrifício. Nalguns versos o boi era transfigurado, tornava-se gigantesco e o cantador, humoristicamente, fazia a divisão dos melhores e piores pedaços com as pessoas conhecidas da redondeza. Bois, touros, novilhos, vacas, o ciclo do gado, possuem sua gesta gloriosa. O boi-barroso nos pampas do Rio Grande do Sul é, visivelmente, uma importação nordestina. Na terra gaúcha o louvor é ao cavalo e não ao gado, que não mereceu consagração na insistência poética popular.

Desde fins do séc. XVIII os touros valentes tiveram poemas anônimos realçando-lhes as aventuras bravias. Ver Luís da Câmara Cascudo " ("Tradições Populares da Pecuária Nordestina", doc. da Vida Rural n. 9. Ministério da Agricultura, Rio de Janeiro, 1956), com extenso documentário.  Os primeiros elementos foram publicados por José de Alencar ("Nosso Cancioneiro", O Globo, Rio de Janeiro, 1874), infelizmente com a técnica de Almeida Garrett, fundindo arbitrariamente as versões independentes. Ver Sílvio Romero ("Cantos Populares do Brasil", in Folclore Brasileiro, 1. Rio de Janeiro, 1954), Pereira da Costa (O Folclore Pernambucano) Gustavo Barroso (Ao Som da Viola, Rio de Janeiro, 1921), Rodrigues de Carvalho (Cancioneiro do Norte), A. Americano do Brasil (Cancioneiro de Trovas do Brasil Central), Luís da Câmara Cascudo (Vaqueiros e Cantadores, Porto Alegre, 1939).


Boi-Bumbá. 

É o bumba-meu-boi do Pará e Amazonas. Peregrino Júnior define: "Festa popular, que se realiza em Belém e nos arredores, pelo São João. Consiste na exibição de um boi de pau e pano, conduzido por dois personagens - Pai Francisco e Mãe Catirina -, que são acompanhados por dois ou três cavalos e uma orquestra composta de rabecas e cavaquinhos. É uma variante transparente do bumba-meu-boi no Nordeste." (Histórias da Amazônia, 276, Rio de Janeiro, 1936).

No III Colóquio Internacional de Estudos Luso-Brasileiros, reunido em Lisboa, setembro de 1957, Peregrino Júnior apresentou um estudo descritivo sobre "O Boi-Bumbá no Pará", Bruno de Meneses ("Boi-Bumbá," Auto Popular, Belém, Pará, 1958) fez uma pesquisa sobre o folguedo, reunindo música, enredo, desenvolvimento etc., de maneira excelente. O Bumba-meu-boi no Nordeste exibe-se no ciclo das festas do Natal e o boi-bumbá paraense, durante o São João.  O elenco inclui o senhor da fazenda, dona Maria sua mulher, a moça branca filha do casal, amo (feitor da fazenda), rapaz fiel (vaqueiro), dois vaqueiros, rapazes (vaqueiros auxiliares), Pai Francisco (preto velho), Mãe Catirina (sua mulher), Cazumbá, preto velho e seu companheiro, Mãe Guimã (mulher deste), diretor dos indígenas, que é o chefe da maloca, doutor curador e seu ajudante, um padre e o sacristão, um menino que serve de rebolo (segura os chifres do boi, rebolando-se enquanto Pai Francisco amola a faca para fazer o repartimento), o tripa do boi (homem debaixo da armação, movimentando-a), maloca dos indígenas e roda de brincantes.  Pai Francisco mata o boi para satisfazer ao desejo de Mãe Catirina e faz a divisão da carne e vísceras. O fazendeiro manda prendê-lo pelos indígenas, previamente batizados por um falso sacerdote. O doutor curador ensina a Pai Francisco a técnica de espirrar em vários pontos do boi até despertá-lo. Bailados, desafios, saudações. O boi-bumbá outrora visitava casas amigas e agora fica num local determinado para a exibição; terreiro, barracão, tablado. Acultura-se com outros folguedos como grupos figurando indígenas, pássaros, etc.


Bumba-meu-Boi 

Boi Calemba, Bumba (Recife), Boi-de-Reis, Boi-Bumbá (Maranhão, Pará, Amazonas), Três-Pedaços (Porto da Rua, Porto de Pedras) em Alagoas, Folguedo-do-Boi, Reis-do-Boi em Cabo Frio, estado do Rio de Janeiro (Macedo Soares), sendo a primeira denominação a mais vulgar e geograficamente conhecida. Bumba é interjeição, zás, valendo a impressão de choque, batida, pancada. Bumba-meu "voz de excitação repetida nas cantigas do auto, o mais popular, compreendido e amado do nordeste, o "folguedo brasileiro de maior significação estética e social" para Renato Almeida. Exibe-se dos meados de novembro à noite de Reis, 6 de Janeiro, pertencendo ao ciclo do Natal e sua presença no carnaval é reprovada pelos tradicionalistas. Apresenta-se em terreiro livre, campo aberto, não demandando tablado e atendendo aos convites para residências particulares.

A mais antiga menção é a do padre Miguel do Sacramento Lopes Gama (1791-1852) no seu periódico 'O Carapuceiro', de 11 de janeiro de 1840, no Recife, já constituído com figuras, bailados e enredo. Datará das últimas décadas do séc. XVIII e seu ambiente foi o litoral, engenhos de açúcar e fazendas de gado, irradiando-se para o interior. Henry Koster, que viveu onze anos em Pernambuco (1809-1820), não o cita, embora o faça minuciosamente para outros autos vividos nas zonas canavieiras e em Itamaracá. O Nordeste deve ter sido sede de formação e de conforto. O Bumba-Meu-Boi no Brasil Central e Estados do extremo Norte e Sul foi exportação nordestina. Normalmente não aparece em Alagoas, Sergipe e Espírito Santo. O Rio Grande do Sul, com os elementos sugestivos para sua criação pastorícia, escravaria, espírito satírico, não o conta no seu folclore tradicional.

Influência Europeia.

A figura poderosa do touro tem a mais diversa e prodigiosa bibliografia no domínio mítico, hinos védicos, lendas hindus, tradições brâmanes, iranianas, turianas, esüivônicas, germânicas, escandinavas, francas, celtas, gregas, latinas que Angelo de Gubernatis compendiou e debateu com suficiência e paixão assim como Frazer através dos cultos agrários.

O touro, o boi (Zeus, Poseidon, Dionisius: imagem da potência fecudante; atributo solar e lunar égide da conservação física; sagrado no Egito, Caldéia, Fenícia, Creta, Cartago) mereceu figurar nos préstitos, engalanado, festejado, divinizado, e uma sobrevivência é sua participação material em cerimônias religiosas da Igreja Católica, com intervenção sacerdotal, o boi-de-São Marcos (25 de abril), levado aos templos, assistindo a missas perto do altar-mor, acompanhado pelos fiéis numa devoção indiscutível. Julio Caro Baroja estudou-o na Extremadura espanhola e Rodney Gallop em Penafiel e Braga, "A Boi Bento' (sacred ox) figures in several Portugueses religious processions" nas festas de Corpus Christi, como comparecia na mesma data em Marselha e em Aix (França) e na procissão de São Zopito em Loreto, Aprutino (Itália) nas comemorações do Pentecostes, até poucos anos. Sem inclusão direta na liturgia cristã, houve o 'Boeuf Gras' em Paris na época do carnaval, com séquito de luxo espaventoso e também na Galícia, o 'Buey Gordo', em Orense, conforme a citação de Vicente Risco. No planalto de Huila, Mossâmedes, Angola, há a 'On-dye Lwa', saimento do 'Boi Sagrado', que os padres A. Lang e C. Tastevin registraram préstito ligado aos deuses da vegetação e aos manes do Rei, propiciando chuvas regulares pois é festa de verão.

Não encontro em nenhuma cerimônia votiva ou lúdica africana influências sensíveis no auto brasileiro, criação genial do mestiço, sem intuito, expressão ou sentido sagrado, exceto para pesquisadores vocacionalmente dedicados às comprovações expressas sob "l'autorité irresistible des preférences personnelles," como diz Pierre Gaxotte. Naquelas exibições o boi é animal vivo, cumprindo missão de atrair e fixar a benevolência dos deuses agrários, sem bailado do personagem central e longe de qualquer volição humorística e recreativa. É forma protocolar, hierárquica, sagrada, respeitosa, imutável pela inflexibilidade do costume. Teófilo Braga, que nunca assistira a um Bumba-Meu-Boi, nunca o compreendera, sugeriu que o folguedo era reminiscência do 'Boi Geroa' dos 'Ba-Nianecas' ou Va-Nianecas de Huila, o 'Muene Hambo', o mesmo 'On-dye lwa' de Lang-Tastevin. É preciso muita imaginação interpretativa para confronto semelhante. Houve também em Espanha e Portugalos touros fingidos, feitos de vime, bambu", arcabouço de madeira frágil e leve, recoberto de pano, animado por um homem no seu bojo, dançando e pulando para afastar o povo e mesmo desfilando diante dos Reis. Foram as touras, corpos de canastra com cabeças. de fingimento (Bluteau, Moraes, Domingos Vieira), imitando as corridas de touros reais, repetindo no plano da simulação risível as afoitezas e agilidades dos toureiros famosos.

Na tourinha a finalidade era divertir, alegrar distrair a multidão. É dessa toura que fala Garcia de Resende na Miscelânea, Lisboa, '1554: "Vimos grandes judarias, / judeus, guinolas, & touras." Não havia enredo, temática, declamação. Era unicamente ação lúdica. Luís Chaves lembra que, na Vila Real, brincavam de tourinhas os rapazes do seu tempo. A armação constava de uma tábua com um pau pregado na extremidade, saliente para ambos os lados, fingindo chifres. O rapaz que a dirigia atacava os companheiros toureadores com a falsa cornamenta. No Concelho de Vila do Conde, pelo Natal, "fazem o bicho da manta em que uma pessoa, coberta de um pano, a imitar um animal, com os braços de fora em ar de chifres, investe contra os presentes," escreve Ernesto Veiga de Oliveira. Ismael del Pan registra a 'Fiesta de la Vaca' (25 de janeiro) em San Pablo de los Montes, Toleqo, onde o essencial para o gáudio público era "La Vaca, que se armava de un palo, adornado con cintas y flores, en cuyo extremo van sujetos unos ingentes cuernos de toro o de vaca, asimismo extraordinariamente exornados. Y el mozo que representa La Vaca va dando cornadas con el emblema astado, haciendo correr delante de él a todos los forasteros." São estes os únicos elementos europeus determinantes longínquos do folguedo brasileiro típico. O auto, como existe no Brasil, não ocorre em paragem alguma do mundo. Noutro volume examinei, mais devagar, o assunto.

Origem 

O boi de canastra português surgiu no meio da escravaria rural, sem a imitação da tourada, bailando, saltando, espalhando o povo folião. Havia grito, correria, emulação. No "Reisado da Borboleta, do Maracujá e do Pica-Pau," que Sílvio Romero recolheu em Sergipe, o boi afugenta o auditório, tendo ao lado o vaqueiro negro, com a toada característica de sua função : "Olha o boi, olha o boi, / Que te dá; / Ora, entra pra dentro, / Meu boi marruá". Ainda em janeiro de 1900, Max Schmidt vê em Rosário, Mato Grosso, o boi assustando as crianças, mas sendo assistido por um médico para curá-lo do seu desmaio. Não há outro assunto.  Alceu Maynard Araújo, informa que em São Luís de Paraitinga, S. Paulo, 1951, comparece o boi fingIdo, com a ocupação exclusiva de defender dos meninos atrevidos e curiosos a figura hirta da Miota. Recordava, na limitação funcional, os mas, capitão-de-mato, vigário, doutor-curador, cobrador de impostos, o valentão, escravo fujão, e as visões da literatura oral nos duendes velhos, Caipora, Bate-Queijo, Corpo-Morto, Gigante, e entes naturais, burrinha, ema, urubu. Abria-se a porta para a colaboração inesgotável dos títeres bailarinos, da Europa e dos arredores nacionais, sangue novo para a perpetuidade do folguedo. A par do boi dançador dos vaqueiros, as permanentes mantêm as presenças das damas e galantes, figurantes nas procissões do Corpo-de-Deus em Portugal do séc. XVIII, e conservam seu aspecto sereno, composto, cantando, com discreta monotonia devota, as loas sagradas, sem que tomem parte na estúrdia barulhenta dos vaqueiros e mais figurantes. O rancho da Borrinha na Bahia era popularissimo como na Venezuela, nas festas do Natal, é da Burriquita.

Fundiu-se no Bumba-Meu-Boi. "O mais apreciado em Pernambuco era cavalo-marinho" (Sílvio Romero. Foi para o Bumba, como, já em 1873, Celso de Magalhães, registrava no Maranhão a vitória do Bumba-Meu-Boi sobre o cavalinho. De reinados, ranchos, bailes e danças autônomas nasce, cresce e se amplia Bumba-Meu-Boi. No Nordeste, área indiscutível de sua formação, desenvolvimento e duração, quase cada ano há modificação no elenco, numa substituição que denuncia a incessante conquista do nível da atenção coletiva. Não é preciso citar o Siebung (peneiramento), de Richard Thurnwald, para compreender-se que essa dinâmica de adaptação é a justificativa de sua permanência funcional.  O processo de concatenação, de ajustamento dos vários temas, é uma assombrosa audácia técnica, mantendo uma unidade temática na multiformidade dos motivos conjugados na representação.

Os vaqueiros, que permanecem em cena todo o tempo da exibição, de horas e horas, improvisam sempre, enfrentando o bom-humor feroz da assistência aparteadora, admiráveis na rapidez, prontidão e felicidade das réplicas fulminantes, inventando cantigas, caricaturando a severidade das damas e galantes, arremedando animais, fantasmas, críticas, que atravessam a exibição humilde e enaltecedora da inteligência popular do Brasil. Comparando-se número e participação dos figurantes, desde 1840 no Recife do Carapuceiro, com as colheitas de Pereira da Costa nos finais do século XIX e de Samuel Campelo e Ascenso Ferreira na mesma cidade, evidencia-se que não há e não houve homogeneidade no auto que se recompõe cada ano· na exigência das predileções e curiosidades do povo. Nascido dos escravos e pessoas pobres, agregados dos engenhos e fazendas, trabalhadores rurais e de rudes ofícios nas cidades, sem a participação feminina (não que influísse a ordem régía de D. Maria Primeira em 1789, proibindo mulheres no palco, e sim pela impossibilidade do auxílio mulheril nas circunstâncias sociais em que nasceu o auto) é o único folguedo brasileiro em que a renovação temática dramatiza a curiosidade popular, atualizando-a. E sua alteração não prejudica a essência dinâmica do interesse folclórico, antes o revigora numa expressão indizível de espontaneidade e de verismo. Merecia um levantamento completo e uma pesquisa fiel às suas raízes e contemporaneidade, recenseamento de participantes (Amadeu Amaral Júnior, Luís da Câmara Cascudo, variantes, coreografia, indumentária, tão diversa, e a música, bonita, clara e fácil. Temática.

O boi dança, com os vaqueiros, dois e três e é morto por motivos variados e até sem razão (Pereira da Costa). Ressuscita, comum e tradicionalmente por uma ajuda, como se lê em Gil Vicente (Farsa dos Almocreves), um clister, substituído por um menino empurrado à força pelo traseiro da armadura: ou não ressuscita (versão de Gustavo Barroso, volta a viver pelo oferecimento de ouro, fazenda de gado, engenho de açúcar, uma moça bonita; por uma série de espirros do vaqueiro (Boi-Bumbá, Pará, Bruno de Meneses, ou pelo puxão da cauda (Édison Carneiro). Intervenção contínua de sucessivos personagens, mudáveis segundo tempo e lugar, inclusive indígenas no Norte do País.  Final em bailado e canto geral, uníssono, imitando a moenda, o tear, o carrossel, ou em desafios (Belém do Pará). Orquestra, instrumentos de corda.

Repartição. 

Era cena infalível e que está rareando. O boi, morto, era simbolicamente repartido, com destinações ironicas. Renato Almeida regístrou-a em Camaçari (Bahia) e Florival Seraine em Acaraú (Ceará), transformada em venda, avaliando-se por quantidade de feijão, milho, farinha, cachimbo, crueira, etc. Nota Édison Carneiro que "a divisão se faz sem tomar conhecimento dos desejos e intenções do Dono do Boi, tanto o boi pertence aos que com ele lidam." Artur Ramos " na fase da sedução freudiana batizou a cena em repasto  totêmico". Verifica-se a satisfação lógíca de cerfmonial cinegético milenar, comum e ainda normal pelo mundo. Já obrigava na lenda etólia de Meleagro, matando o javali de Calidon, a presentear a princesa Atalanta com a cabe a tradição pastoril, como no Amazonas, onde Robert A vé-Lallemant encontrou-o em 1859, em Manaus, incluído no ciclo do São João (Viagem pelo Norte do Brasil, II, 104, Rio de Janeiro, 1961), ou na mais recente Brasília, visto em agosto de 1965.


Boi-de-Fita. 

"Dois bois que deverão correr, o maior, o mais corredor, o mais gordo, o mais bonito, não se apanha pela cauda. Nas pontas dos chifres enlaçam-se duas fitas, de cores diferentes. A corrida consiste não na queda, mas em tirar cada vaqueiro o laço do seu lado, que será entregue à esposa, à namorada, ao vigário, ou a outra pessoa conceituada. Se não se consegue arrancar o laço e o boi ganha· "os paus, então os vaqueiros são apupados estrepitosamente." (Hélio GaIvão, "O Boi-de-Fita," Diário de Natal, 18-7-1949. Rio Grande do Norte).

Boi-de-Mamão.

Toma esse nome o auto do bumba-meu-boi em Santa Catarina. "A origem dessa denominação boi-de-mamão não nos foi possível assinalar. Há quem fale de que, nas representações desses autos populares, há muitos anos atrás, usava-se mamões verdes para a confecção da cabeça do boi, de onde teria surgido o termo local, que logo se teria espalhado por todo o litoral catarinense. Nada há, porém, de positivo." (Osvaldo Ferreira de Melo, "O Boi-de-Mamão no Folclore Catarinense," Departamento Estadual de Estatística, série C.N. 1, Florianópolis, Santa Catarina, setembro de 1949).

O folguedo consta essencialmente do boi malhado, o vaqueiro Mateus, as figuras do urubu, do feiticeiro, coberto de folhas e pequenos arbustos, que vem benzer o boi (derrubado por Mateus e beliscado pelo urubu), o cavalinho, a cabra ou cabrinha, a Bernúncia, que finaliza a representação, noturna e ao ar livre, com um grupo de cantadores e acompanhados os cantos (todas as figuras têm a cantiga ao som da qual fazem seu bailado) por percussão, chocalhos, reco-recos, pandeiros. Noutros bois-de-mamão aparecem o Virbulino, variante do feiticeiro, o urso, mesmo um sultão (em São José), variante do urso, o cururu e a jaruva (em Nova Trento) e houve uma espécie de grande carneiro, distribuindo marradas e que  foi eliminado por inconveniente.

Era o arreceio. Os srs. Jaime e Altair Mason citam, no boi-de-mamão no município de 0rléans, as Catirinas, homens vestidos de mulher ("Festejos de Natal e Reis no Município de Orléans," Boletim Trimestral da Comissão Catarinense de Folclore, n.6, 56, Florianópolis, dezembro de 1950; Walter F. Piazza 'Aspectos Folclóricos Catarinenses', Florianópolis, 1953). Ver Fernando Corrêa de Azevedo, "O Boi de Mamão no Litoral Paranaense," Revista Brasileira de Folclore, 6, Rio de Janeiro, 1963; Kleide Ferreira do Amaral Pereira, "O Boi de Mamão do Litoral de Santa Catarina," Revista Brasileira de Folclore, 8/10, Rio de Janeiro, 1964.

Boi Marrequeiro. 

Boi ensinado a disfarçar a aproximação do caçador e assim possibilitar um bom tiro nas marrecas (Anátidas). "Marrecas e jaçanãs são aves aquáticas caçadas em grande escala. Às margens dos lagos de Viana descem numerosos bandos de marrecas, cujas caçadas rendem muitos milheiros de aves: O caçador serve-se do boi marrequeiro e da antiga granadeira, carregada com chumbo grosso. O boi ensinado procura iludir as espertas aves. Colhe aqui uma erva, além outra, mudando as patas vagarosamente, para dar a impressão despreocupada de que pasta tranquilo.

O caçador, amparado pelo animal, acompanha-o e vai tomando chegada. Finalmente, quando as aves estão reunidas como um bloco, leva a arma ao rosto, faz pontaria e procura desfechar o tiro, no momento em que percebendo sua imprudência, aflitas, as marrecas levantam o vôo. O tiro parte, o caçador recebe um forte couce da arma, mas espalha a morte entre centenas de aves. A mesma cena repete-se noutra enseada; e no fim do dia a safra é abundante." (J.Silvestre Fernandes, "Baixada Maranhense," Revista de Geografia e História, I, 43-44, São Luís Maranhão,1946)

Boi-na-Vara. 

"No nosso Estado de Santa Catarina - e cremos ser o único estado do Brasil onde se efetuam - as brincadeiras de boi são realizadas unicamente nos municípios da orla litorânea, desde São Francisco do Sul até Laguna, onde são os verdadeiros divertimentos populares. Um dos nossos informantes (Sr. Carlos George Du Pasquier) disse que "a época de sua realização é na Semana Santa, inicia-se na quarta e prolonga-se até o Sábado de Aleluia." Entretanto, cabe-nos afirmar que, na localidade de Santa Luzia, no município de Tijucas, assistimos a um boi-na-vara em dias subsequentes à Pascoa de 1949, e, em outra época do ano, na primavera de 1948, na localidade de Terra-Nova, no mesmo município de Tijucas, assistimos ao aludido folguedo. E o que é o boi-na-vara? Eis como Apolinário Porto Alegre, que assistiu à realização deste habitualismo, na ilha de Santa Catarina, na localidade de Saco dos Limões, o descreve ("Viagem a Laguna" 1896, in Província de São Pedro, n.8, de março de 1947, Porto Alegre): "Imaginem um comprido varejão forte e grosso, mas flexível, tendo seis ou sete metros de lonjura e talvez enterrado quase um metro pela extremidade mais cheia e robusta, para ficar firme no solo. Da outra extremidade pende um laço bem atado que vem prender-se às guampas dum boi escolhido, como capaz de luta.

No meio do varejão há uma figura de homem em tamanho natural, feita de panos e trapos. Quando o cornígero preso estica o laço tentando desprender-se, a vara curva-se e o boneco como que fica suspenso e ameaçador sobre sua cabeça. O boi que o vê arremete contra ele, e a vara volta à posição vertical, levando consigo o boneco.  Aquele recua de novo, este torna ainda à segunda posição. E repetem-se assim as mesmas cenas, enfurecendo por fim a alimária, a ponto de às vezes rebentar as prisões, atirar-se em todas as direções, investindo contra o povo que cai até dentro d'água."No município de Araquari (antigo Parati), ao se prender o boi à vara, se armam vários laços, a fim de se evitar a sua evasão" (informação do Dr. Vítor A. Peluso Jr.). "Em São José, à cauda do animal se amarrava uma lata e formava-se um semicírculo de batedores de latas para irritar o boi"  (informação do Major Álvaro Tolentino de Sousa). Os bois-na-vara que presenciamos não tinham o boneco-espantalho e a alimária era irritada com um pau. O folguedo se realiza até o completo esgotamento do animal, quando, então, matam-no e repartem a sua carne entre os participantes da brincadeira. (Walter F. Piazza, "Contribuição ao Folclore do Boi, no Brasil," Boletim Trimestral da Comissão Catarinense de Folclore, n.8, 71-74, Florianópolis, junho de 1951).

Padre Cícero
Boi-Santo.

Movimento supersticioso ocorrido no Ceará, 1918-1920, com repercussão nas regiões nordestinas. Participa do ciclo do Padre Cícero. Em 1900 o Padre Cícero recebeu um novilho zebu de presente e mandou-o para uma sua propriedade, no município do Crato (Baixa do Dantas), a cargo de um seu servidor, o negro José Lourenço. Esse, encantado pela beleza e mansidão do zebu, que tinha o nome de Mansinho, e não conhecendo outro tipo daquela raça na região, ficou impressionado pela majestade, imponência e figura do boi, começando a fazer-lhe promessas e dirigir-lhe orações. Uma vez prometeu um feixe de capim verde, em plena estiagem, e ao pagar o voto trouxe capim furtado. Mansinho recusou comer a promessa e mugiu como se admoestasse ao José Lourenço.

O negro convenceu-se de que o espírito do seu padrinho Padre Cícero podia, vez por outra, atuar no corpo do zebu e dedicou ao animal inteira devoção. Foi o primeiro crente do boi-santo. Com o passar dos anos, o culto espalhou-se, os fiéis multiplicaram-se, as romarias apareceram e Mansinho virou boi Ápis, comendo em manjedoura enfeitada, usando fitas nos chifres, cauda e testículos, coberto de rosários, terços, bentinhos, estampas de santos aos quais comunicava forças mágicas ou revigorava as existentes. Serviam ao boi papas, mingaus, bolos, com vênias e carícias, sob a orientação respeitosa de José Lourenço. Excremento, urina, baba, pelos, raspas dos cascos, fragmentos dos cornos, eram relíquias, amuletos, remédios específicos, comprados em pequeninas porções e por preços altos, ao beato José Lourenço. Os fios da cauda do boi-santo eram trazidos ao pescoço, escondidos nas carteiras, encastoados em ouro, determinando fortuna, sorte, ventura, felicidade nos negócios.

O deputado Floro Bartolomeu da Costa (1876-1926), chefe político do Juazeiro, onde residia o Padre Cícero, convenceu ao reverendo que o boi-santo estava sendo demasiado poderoso e causando péssima impressão.  Mansinho foi vendido e morto em 1912, no Juazeiro, com grande desolação dos devotos e prantos de José Lourenço. Os mendigos do Crato e mais distanciados da cidade é que aceitaram, por esmola, a carne de Mansinho, da qual nenhum romeiro cometeu o sacrilégio de servir-se. Cessada a manifestação do culto material, muitos anos Mansinho continuou lembrado pelos seus fiéis e os saquinhos de seda, com restos de seus resíduos, valiam dinheiro forte. Documentação e crítica em Floro Bartolomeu (Juazeiro do Padre Cícero, Rio de Janeiro, 1923); M. Dinis (Mistérios do Juazeiro, Juazeíro, 1935); Lourenço Filho (Juazeiro do Padre Cícero, S. Paulo, sem data); Abelardo F. Montenegro (História do Fanatismo Religioso no Ceará, 59, Fortaleza, 1950).

Por Luís da Câmara Cascudo no livro ' Dicionário do Folclore Brasileiro', Edições Melhoramentos, São Paulo, 1980, p. 127-130 e 150-154. Editado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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