12.21.2011

O SAMBA E A DITADURA DE VARGAS

O SAMBA ANTES DO FOLCLORE

Costuma-se contar a história do samba em dois momentos opostos. O primeiro, quando os sambistas eram perseguidos pela polícia - que reprimia manifestações culturais dos negros - e obrigados a tocar escondidos, em vielas dos morros e fundos de quintal. No segundo momento acontece o contrário: o governo passa a incentivar o carnaval e as músicas populares. Em 1995, com a publicação do livro 'O Mistério do Samba', o antropólogo Hermano Vianna revelou que a mudança de postura com relação à música não aconteceu assim tão de repente. Estilos negros e populares faziam parte de festas dos ricos e famosos séculos antes de o desfile das escolas de samba virar uma festa oficial. Em 1802, por exemplo, o comerciante inglês Thomas Lindley escreveu que as festas dos baianos ricos eram animadas pela ”sedutora dança dos negros, misto de coreografia africana e fandangos espanhóis e portugueses”. Até mesmo em Portugal os músicos populares brasileiros eram bem recebidos. No fim do século XVIII, poucos anos antes de a corte portuguesa fugir para o Brasil, o músico Caldas Barbosa, mestiço filho de uma escrava, encantou a corte de dona Maria I, a rainha louca, tocando lundus. Hermano Vianna revelou também que o samba, em sua origem, tinha muito pouco de folclórico ou nacionalista. Os estilos europeus fazem parte da raiz ancestral do samba tanto ou mais que a percussão africana. Os primeiros sambistas liam partituras, tocavam instrumentos clássicos, participavam de bandas de jazz, adoravam ouvir tango e conhecer as novidades musicais nos cabarés parisienses. A cara que o samba tem hoje, de símbolo da ”autenticidade brasileira” e da resistência da cultura negra dos morros cariocas, é uma criação mais recente, que de certa forma abafou a primeira. Afirma Vianna em 'O Mistério do Samba:'
O samba não se transformou em música nacional através dos esforços de um grupo social ou étnico (o ”morro”). Muitos grupos e indivíduos (negros, ciganos, baianos, cariocas, intelectuais, políticos, folcloristas, compositores eruditos, franceses, milionários, poetas - e até mesmo um embaixador americano) participaram, com maior ou menor tenacidade, de sua ”fixação” como gênero musical de sua nacionalização. Os dois processos não podem ser separados. Nunca existiu um samba pronto, ”autêntico”, depois transformado em música nacional.
Um exemplo de que o primeiro samba não tinha nada de folclórico são dois pioneiros desse estilo musical: Pixinguinha e Donga, que em 1917 registrou o primeiro samba gravado na história. Os dois começaram a tocar juntos na década de 1910, provavelmente na casa da baiana Hilária Batista da Silva (1), a tia Ciata, na Praça Onze, centro do Rio de Janeiro. O quintal dessa casa é frequentemente apontado como ”berço do samba”, o lugar que abrigou o nascimento mítico desse novo estilo musical.
Negra baiana que migrou para o Rio ainda no século XIX, Ciata vendia doces vestindo turbante e saia do candomblé. Era a típica figura que inspirou a ala das baianas do desfile das escolas. À noite e nos fins de semana, músicos, políticos, intelectuais, jornalistas e amigos iam para o samba na casa dela - até então, ”samba” significava um evento, uma festa e não um tipo de música. O novo estilo saiu da criatividade daquele grupo de amigos.
Acontece que as composições que surgiram da casa da baiana tinham muito pouco do samba que hoje anima a Sapucaí. Lembravam mais o maxixe, o ”tango brasileiro”, ritmo dançado a dois derivado de polcas europeias. Instrumentos de sopro eram comuns - com sua flauta, Pixinguinha era um dos protagonistas daquelas festas. O escritor Mário de Andrade, no livro 'Música de Feitiçaria do Brasil', escreveu que a própria tia Ciata ”passava os dias de violão no colo inventando melodias maxixadas”.
'Pelo Telefone', grande sucesso daquele grupo, também lembra mais o maxixe que a percussão das escolas de samba. Apesar de ter sido provavelmente uma criação coletiva, foi registrado por Donga, estourando no carnaval de 1917. ”Fiz o samba, não procurando me afastar muito do maxixe, música que estava bastante em voga”, contou o sambista décadas depois. Os músicos da casa da tia Ciata tampouco se achavam defensores de uma etnia, de uma tradição ancestral ou de um símbolo nacional.  'Pelo Telefone' citava uma tecnologia e um jogo tão novos para aquela época quanto o GPS portátil e o pôquer online um século depois: ”O chefe da polícia pelo telefone mandou me avisar que na Carioca tem uma roleta para se jogar”. 
Em 1919, Donga e Pixinguinha criaram a banda. 'Os Oito Batutas' para animar a sala de espera do Cine Palais, no Rio de Janeiro. Essa banda foi a primeira a divulgar o samba pelo mundo. Seus integrantes tocavam piano e instrumentos de sopro, apresentavam-se vestindo ternos e sapatos engraxados - o grupo lembrava uma jazz band americana. Como um conjunto de festas de casamento e formaturas nos dias de hoje, tocavam de tudo: lundus, polcas, batuques, músicas sertanejas, maxixes e sambas. Esse repertório eclético rendeu a eles shows pelo mundo.
'Os Oito Batutas' se apresentaram para os reis da Bélgica quando visitaram o Brasil, na embaixada americana (o embaixador admirava o grupo), no pavilhão da fábrica da General Motors e até mesmo para a princesa Isabel e a família real brasileira em exílio na França. Entre fevereiro de 1922 e abril de 1923, passaram seis meses tocando na boate 'Le Schéhérazade', de Paris, e outros seis se apresentando em teatros de Buenos Aires. Durante a viagem à França, entre cafés e cabarés cheios de novidades musicais, eles se apaixonaram pelo jazz. Ainda em Paris, Pixinguinha ganhou um saxofone de presente. ”Alguns anos mais tarde (fins de 1927), os Oito Batutas circulam pelo sul do Brasil”, conta o antropólogo Luís Fernando Hering Coelho. ”O programa da apresentação no Teatro Álvaro de Carvalho, em Florianópolis, no dia 28 de agosto de 1927 os anuncia como Jazz-Band Os Batutas, e no repertório há sambas, marchas, emboladas, maxixes, e músicas do repertório jazzístico como 'Who?, Beautiful Girl, Black Bottom, One Step'.”
Também era fascinado pela música internacional o flautista, pianista e violonista Sinhô. Uma espécie de Roberto Carlos da década de 1920, Sinhô tinha o apelido de ”o rei do samba”. Deve-se a ele a fixação do samba como um estilo musical que pôde ser descoberto pelas gravadoras de discos. ”O que há de mais povo e de mais carioca tinha em Sinhô a sua personificação típica”, escreveu o poeta Manuel Bandeira, admirador do sambista. Sinhô encantou o Rio de Janeiro compondo valsas, maxixes, fox, charleston, toadas, fados, e chegou a gravar sambas com orquestras. Essa ”personificação típica” do povo ligava pouco para a arte popular. Suas marchinhas carnavalescas eram quase cópias de canções europeias. Numa tarde de 1920, quando tentava divulgar partituras de suas músicas na Casa Beethoven, no Rio de Janeiro, ouviu uma freguesa assobiar a valsa francesa 'C’est pas Difficile'. Fascinado com a canção, foi para casa e tentou repetir a melodia no piano. Trocando algumas notas e adicionando outras, criou a marchinha Pé de Anjo, caçoando do pé grande de China, irmão de Pixinguinha. A música foi o hit do carnaval de 1920. Assim era o samba brasileiro — inspirado nas novidades europeias e americanas e formado por instrumentos de sopro e piano - até uma ideologia antiga ganhar músculos por aqui: o nacionalismo. Contorcendo a cabeça dos artistas, o nacionalismo provocou o nascimento de um novo samba. Antes de chegar a esse novo estilo musical, é bom dar uma volta pelo tipo de nacionalismo que nasceu no Brasil e o modo como ele criou a imagem que hoje temos do país.

(1)- O nome correto é Hilária Batista de Almeida. (LC)


SAMBA E FASCISMO

Um traço comum no carnaval de diferentes épocas e países é o de virar as regras do avesso. Durante as festas pagãs da Roma Antiga, que deram origem ao carnaval cristão, escravos e seus senhores invertiam os papéis: por um dia, eram os servos que mandavam. Uma inversão parecida acontecia na Idade Média. As pessoas faziam missas e procissões cômicas - no lugar dos padres, guiavam as cerimônias religiosas personagens bizarros como o Rei Momo. A véspera da quaresma liberava os foliões para tirar um sarro dos próprios costumes religiosos e da Igreja, autoridade indiscutível daquela época. Não havia tantos papéis trocados nos primeiros carnavais do Brasil, mas uma reviravolta de comportamentos também tomava conta.
Durante as festas conhecidas como entrudos, as pessoas atiravam bolas de cera nos outros e faziam guerrinhas d’água pela rua. Em 1832, ao visitar o carnaval de Salvador com dois tenentes da Marinha britânica, o jovem inglês Charles Darwin se assustou com os perigos do carnaval baiano. ”Estes perigos consistem principalmente em sermos, impiedosamente, fuzilados com bolas de cera cheias de água e molhados com esguichos de lata. Achamos muito difícil manter a nossa dignidade enquanto caminhávamos pelas ruas”, escreveu Darwin em seu diário. Por quase todo o país, a polícia até tentava conter os entrudos, mas raramente conseguia.
A festa dura até hoje - em alguns blocos do interior, os carnavalescos ainda atiram água, confete e farinha uns nos outros. Na maior parte da história do Brasil, o carnaval foi uma algazarra deliciosamente sem noção. Mas suponha que, de repente, um ditador bem metódico, militar e fascista, um ditador como o italiano Benito Mussolini, aliado de Hitler na Segunda Guerra Mundial, tivesse o direito de regular essa bagunça para torná-la orgulho da nação. Como seria o carnaval organizado por Mussolini?
Imagino que não haveria personagens trocados, arremessos de bolas de cera ou guerrinhas d’água. Como em um desfile patriótico, os carnavalescos marchariam em linha reta, com tempo metodicamente marcado para cada evolução. Passariam diante das autoridades do governo e de jurados, que avaliariam a disciplina, o figurino e a média de acertos dos grupos, dando notas até dez. A organização do carnaval permitiria apenas músicas edificantes e patrióticas. Para ressaltar a pátria e deixar de fora a influência estrangeira, a melodia só poderia ser executada por instrumentos considerados da cultura nacional. Se adicionarmos algumas celebridades quase nuas e muitas penugens, o cenário fica parecido com a Sapucaí. Foi mais ou menos assim que nasceu o desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro. Seu formato atual deve muito a costumes e ideologias fascistas da década de 1930, além do interesse do presidente Getúlio Vargas de misturar sua imagem à cultura nacional e popular, exatamente como Mussolini fazia na Itália. Já havia desfiles em sociedades carnavalescas no começo do século XX, é verdade, mas a maioria das regras da apresentação moderna nasceu com o fascismo.
Em 1937, ano em que o governo de Vargas se tornaria uma ditadura bem parecida com a italiana, foi instituído que todos os sambas-enredos deveriam homenagear a história do Brasil. As primeiras regras de avaliação e ordem do desfile nasceram dois anos antes, quando o interventor federal do Rio de Janeiro, Pedro Ernesto, começou a dar dinheiro para as escolas.
A apresentação ocorria na Avenida Rio Branco, o mesmo local onde as demonstrações militares comemoravam a Independência todo dia 7 de setembro. Os instrumentos de sopro foram proibidos. Só poderiam participar entidades registradas como sociedades recreativas civis. Esse carnaval disciplinado e patriótico não nasceu só por imposição do governo: os grupos também aderiram espontaneamente a ele. 'A Deixa Falar', primeira escola de samba de que se tem notícia, desfilou em 1929 usando comissão de frente cavalos da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Três anos depois, o samba-enredo da escola era 'Primavera e a Revolução de Outubro', em homenagem à tomada de poder de Getúlio Vargas em outubro de 1930. A apresentação contou com participantes vestidos de militares. Não fosse a influência do fascismo italiano, o famoso desfile do carnaval brasileiro não existiria. E, sem ele, o samba que conhecemos hoje seria também muito diferente. O mesmo patriotismo que deu um empurrão ao desfile de carnaval provocou a folclorização do samba.

Por Leandro Narloch no livro 'Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil',Editora Leya, São Paulo, 2009. p.87-94. Editado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.



Sobre o Livro:
É hora de jogar tomates na historiografia politicamente correta. Este guia reúne histórias que vão diretamente contra ela. Só erros das vítimas e dos heróis da bondade, só virtudes dos considerados vilões. Alguém poderá dizer que se trata do mesmo esforço dos historiadores militantes, só que na direção oposta. É verdade. Quer dizer, mais ou menos. Este livro não quer ser um falso estudo acadêmico, como o daqueles estudiosos, e sim uma provocação. Uma pequena coletânea de pesquisas históricas sérias, irritantes e desagradáveis, escolhidas com o objetivo de enfurecer um bom número de cidadãos.

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