Parceria vertical, ou aliança mercadológica, no sistema carne bovina é definida hoje, no Brasil, como uma iniciativa conjunta de supermercados com frigoríficos e pecuaristas objetivando levar ao consumidor uma carne de origem conhecida e qualidade assegurada. Entretanto, não há porque não ampliar esta definição de modo a incluir outros parceiros como açougues e serviços de alimentação. A parceria vertical difere da integração vertical porque na última 'as várias etapas das transações são realizadas dentro de uma mesma firma'.
Exemplo típico é a produção integrada de leite pasteurizado, embalado e distribuído por algumas granjas. Mas, essa integração raramente ocorre nas cadeias produtivas das carnes. De acordo com FEARNE esses negócios colaborativos (“linkages”, “alliances”, “value-added chains” ou “partnerships”) são vistos por alguns como um meio-termo entre os extremos do livre mercado de “commodities” e da completa integração vertical, e por outros como uma alternativa menos rígida de coordenação de mercado.
Nas alianças de carne bovina não há contratos que obriguem qualquer uma das partes a comprar ou vender a parceiros da aliança, ou seja, ninguém é obrigado a qualquer transação comercial que não seja de seu interesse. Há, porém, compromissos com escalas previamente acertadas de entrega aos parceiros, para evitar falta de produto, e com as especificações técnicas de qualidade.
Numa integração desse tipo, as adesões e até mesmo o cumprimento de compromissos devem ser espontâneos. No entanto, à coordenação, assessorada por uma auditoria de qualidade, reserva-se o direito de não aprovar a participação, ou até mesmo de excluir um participante com desempenho insuficiente ou incompatível com o nível de exigência do programa.
O que se pretende demonstrar nos itens subseqüentes é que, embora difícil, pois a 'mentalidade conservadora' e a 'inadequação das estruturas empresariais' são apenas dois exemplos das 'fragilidades da cadeia da carne bovina', a implantação de sistemas de rastreamento de suprimentos e de APPCC (Análise de Perigo e Pontos Críticos de Controle) exige que os serviços de alimentação participem das alianças mercadológicas que estão surgindo no País.
As carnes em geral, e a bovina em particular, constituem excelentes fontes de proteínas, vitaminas do complexo B e minerais essenciais como ferro e zinco. O consumo de 100 a 150g de carne magra por dia é especialmente importante para a manutenção da saúde nas dietas de baixas calorias, contribuindo significativamente para atender os requisitos mínimos de nutrientes sem elevar o aporte calórico, pois como se vê na Tabela 1, 100g de carne bovina magra assada ou grelhada contém uma alta densidade de nutrientes e somente 190kcal.
Reconhecendo as recomendações médicas bastante restritivas quanto à participação de calorias de gordura animal no conteúdo calórico das dietas, a zootecnia moderna tem conseguido alterar a composição das carcaças por meio de genética e manejo da alimentação animal de modo a aumentar a proporção de tecido muscular e reduzir a de tecido adiposo.
No gado zebu, ou produtos de cruzamento Bos taurus x Bos indicus, criado a pasto e abatido com idade entre 24 e 36 meses, os cortes cárneos magros (cerca de 10% de gordura) desossados, representam 63%, e as carnes com até 20% de gordura (peito, costela e retalhos) representam 12% do peso da carcaça. Os 25% restantes são de ossos, cartilagens, tendões, aponeuroses e aparas gordas.
Ressalte-se que, nesse tipo de carne, quase toda gordura dos cortes cárneos pode ser separada com faca, antes do preparo culinário, ou no prato à mesa, de modo que a inclusão de 200g dessa carne nas dietas contribui com 12 a 16g de gordura, ou cerca de 7% de calorias de gordura bovina numa dieta de 2000kcal. Além disso, na carne bovina menos da metade dos ácidos graxos é do tipo saturado e a relação entre ácidos graxos hipocolesterolêmicos e hipercolesterolêmicos é de 0,83 (4), podendo ser maior na carne brasileira (resultados não publicados) .
Por essas e outras razões, a carne bovina tem uma forte participação nos cardápios das refeições coletivas. No Hospital Albert Einstein, em São Paulo SP, são servidas 130 mil refeições/mês, 93 mil com carne, sendo 50% destas com carne bovina. No Hospital das Clínicas da Unicamp são servidas 80 mil refeições/mês, 55% das quais com carne bovina, e nos Restaurantes Universitários da mesma instituição, 60% das 147 mil refeições servidas/mês também contêm carne bovina. (Informações obtidas com as responsáveis pelos serviços referidos).
Estes são aspectos favoráveis do consumo de carne em relação à saúde humana. Entretanto, há outros aspectos menos auspiciosos que precisam ser considerados, como é o caso das doenças transmissíveis dos animais ao homem, das toxi-infecções alimentares, e dos resíduos químicos.
Sobre as doenças transmissíveis, a que mais chama a atenção na atualidade é a BSE (encefalopatia espongiforme bovina) ou doença da vaca louca, que ocorre no Reino Unido desde 1983 e, mais recentemente, em alguns países da Europa Continental, como Portugal, onde neste ano já foram constatados mais de 50 casos de animais infectados. Desde 1996 o governo britânico admite que o agente causal da BSE pode ser o mesmo da nvCJS (nova variante da Síndrome de Creutzfeld e Jakob) em seres humanos. Felizmente, não há nenhum registro de caso de BSE no Brasil.
Dados estatísticos não são o ponto forte do Brasil, mas sabe-se que aqui é comum encontrar 3% de cisticercose no gado abatido em matadouros inspecionados por autoridades federais; imagine-se, então, qual seria a incidência da doença parasitária no gado das vizinhanças de centros urbanos, abatido em matadouros que operam à margem da lei, ou sob a proteção dela em muitos estados e municípios, porém de maneira frouxa e inadequada.
O problema é que poucos conhecem as diferenças entre um sistema de inspeção concebido para ter poder de polícia sanitária e outros sistemas menos ortodoxos, concebidos para aparentar seriedade do poder executivo local. Isto tem causado muito prejuízo, não apenas à saúde pública, o que já é muito grave, mas também à economia como um todo, em termos de desorganização do sistema industrial, e à imagem de país exportador - detentor de um moderno parque industrial de carnes - que foi criada nas décadas de 70 e 80, e que vem sendo destruída nesta década.
A falta de controle de resíduos químicos nos alimentos em geral também faz parte do mesmo contexto em que prevalece a perda do poder dos órgãos fiscalizadores. No tocante às toxi-infecções, cresce a preocupação com a contaminação dos alimentos em geral, e da carne em particular, por patógenos como Staphylococcus aureus, Salmonella, Campylobacter spp. Listeria monocytogenes e Escherichia coli H7:0157, os quais têm sido responsáveis por inúmeros casos de intoxicação e morte, principalmente em países onde o registro de tais ocorrências é levado a sério, conforme a Tabela 2.
Pode até ser que alguns desses patógenos não tenham aqui a mesma virulência que têm por lá; que o gado daqui – de pêlos curtos e criado a pasto - seja mais limpo, ou que haja menos ruptura de vísceras e contaminação de carcaças no abate do gado no que resta dos nossos bons matadouros-frigoríficos, mas tais suposições não nos deixa numa situação muito confortável com relação à saúde dos comensais de serviços de alimentação. Tais serviços atendem indivíduos com diferentes graus de sensibilidades às intoxicações alimentares, como crianças, idosos, pacientes de hospitais, pessoas alérgicas, mulheres grávidas, indivíduos mal nutridos e portadores de doenças metabólicas.
ADQUIRIR CARNE DE BOA QUALIDADE NÃO É TAREFA FÁCIL
O processo de aquisição de carnes pelos serviços de alimentação em geral é baseado em cotação ou licitação de preços, que é a grande preocupação dos administradores, com ressalvas sobre qualidade interpostas pelos nutricionistas. Mas, admitindo-se que os administradores se sensibilizem com os argumentos em favor da qualidade, quais critérios devem ser considerados?
Temperaturas e tempo são parâmetros fundamentais em qualquer programa de qualidade de alimentos perecíveis. No recebimento pode-se medir a temperatura e daí por diante controlar o tempo e a temperatura de estocagem. Mas, que controle o nutricionista pode ter sobre tais parâmetros desde o abate até a entrega na plataforma de recebimento?
Note-se, ainda, que a temperatura de 5oC, usualmente recomendada para conservação de perecíveis sob refrigeração, está sob suspeita diante do fato de que Listeria monocytogenes e Yersinia enterocolitica começam a se multiplicar a 0oC Pode-se fazer algumas análises, como a medida do pH, porém, como o pH24horas varia de um músculo a outro, e em função do estoque de glicogênio muscular antes do abate, raramente os valores encontrados têm algo a ver com o estado de conservação da carne. Resolve-se isto, parcialmente, com um controle estatístico por tipo de corte cárneo, mas é preciso estar ciente de que as análises físico-químicas, isoladamente, são na melhor das hipóteses confirmatórias de um estado de deterioração detectado pelos órgãos do sentido, e não dizem nada sobre a contaminação por patógenos.
Haveria, ainda, a possibilidade de se fazer monitoramento microbiológico, mas o custo elevado e a demora na obtenção dos resultados das análises inviabilizam esta alternativa. Além desses aspectos de saúde é preciso considerar as proporções de gordura e aponeuroses, que, por vezes, fazem com que uma aquisição a preços menores não represente a melhor opção. É de se notar, também, que os fornecedores brasileiros não oferecem catálogos com especificações, o que dificulta as operações de compra. Entretanto, a melhor forma de se resolver esses problemas é exigir carne com qualidade higiênico-sanitária assegurada e especificações técnicas, desenvolvendo para isso uns poucos fornecedores fixos responsáveis e negociando preços com base em planilha de custos. Deve-se prever também a possibilidade de se fazer periodicamente vistorias técnicas nas instalações dos fornecedores.
NECESSIDADE DE UMA LINGUAGEM NAS TRANSAÇÕES COMERCIAIS
Todos os países que possuem um setor industrial de carnes bem organizado classificam as carcaças das espécies de carnes vermelhas com base em parâmetros que variam de um sistema a outro, mas que, em geral, priorizam a idade ou maturidade, o sexo do animal e a espessura de gordura subcutânea da carcaça. Em muitos países ordenam-se as classes, segundo critérios de qualidade e rendimento, em tipos hierarquizados.
Os sistemas de classificação de carcaça bovina em geral se utilizam de características avaliadas na carcaça quente, ou seja, a coleta de dados é feita no ambiente da sala de matança. Registra-se num cartão impermeável o peso da carcaça, a maturidade (número de dentes incisivos permanentes ou o grau de calcificação das cartilagens da coluna vertebral), a categoria de sexo (macho, macho castrado e fêmea), uma medida ou escore de gordura subcutânea e um escore de conformação ou musculosidade.
Nesses sistemas, a combinação de maturidade e sexo determina a categoria animal. Exemplos:
a) novilho – jovem, macho castrado;
b) novilha – jovem, fêmea;
c) vaca – adulto, fêmea;
d) tourinho – jovem, macho inteiro, e
d) touro ou marruco – adulto, macho inteiro.
A gordura subcutânea, medida ou avaliada por profissionais treinados, varia com a categoria de sexo/maturidade, com o genótipo do animal e com a alimentação a ele fornecida.
O escore de musculosidade é o impacto visual causado pelo volume de massa muscular, e o escore de conformação diz respeito à forma mais ou menos convexa das regiões anatômicas da coxa, dorso-lombar , paleta e braço. Ambos são muito influenciados pelo genótipo do animal e são bons indicadores da relação carne/osso da carcaça, sendo que o primeiro indica carne magra/osso e o segundo carne + gordura/osso.
São muitas as combinações possíveis e o propósito é deixar que o mercado demonstre suas preferências por elas, segundo as necessidades daqueles que industrializam ou comercializam e os desejos do consumidor. Nos países da América do Norte, essas e outras características são avaliadas após o resfriamento das carcaças, no ambiente de câmaras frias, combinadas em tipos, que são imediatamente ordenados segundo uma hierarquia pré-estabelecida oficialmente denominada “grading” (tipificação).
Os sistemas de tipificação dos Estados Unidos e Canadá, e também da Austrália e Japão, valorizam muito a cor da gordura e a cor e o grau de marmorização (“marbling”) da porção muscular. O objetivo principal dos sistemas de classificação e de tipificação de carcaças é servir de linguagem comum entre os diversos elos da cadeia produtiva da carne e o consumidor. É através dessa linguagem que se pode captar mudanças nas atitudes de compra dos consumidores e transmitir as “mensagens” no trajeto inverso da carne, elo por elo da cadeia, até o primeiro deles que é o dos rebanhos de seleção.
No Brasil, como em muitos outros países latino-americanos, embora exista um sistema oficial de classificação nos moldes europeus, porém com hierarquização de tipos, portanto, de tipificação de carcaças, ele só é usado em situações muito particulares e, assim, não chega a ser conhecido a ponto de servir como linguagem comercial.
UM SISTEMA DE IDENTIFICAÇÃO DE ANIMAIS E CARCAÇAS
Desde 1996, quando o governo britânico reconheceu, após 10 anos de negativas, a possibilidade de transmissão do agente etiológico da BSE para seres humanos através da ingestão de carne e miúdos, o consumo de carne no Reino Unido e em outros países europeus passou por um forte declínio. Mas, graças às medidas sanitárias que vêm sendo adotadas, as estatísticas daqueles países registram uma lenta e constante recuperação dos níveis anteriores de consumo. Entre as medidas sanitárias implementadas, uma das mais importantes para restaurar a confiança dos consumidores europeus foi a imposição de ‘um sistema efetivo de identificação animal e de registro de transferência de propriedade’ denominado “traceability” (rastreamento). Criou-se, assim, o passaporte animal, controlado por um sistema informatizado capaz de processar dados de 24 milhões de ‘movimentos’ (nascimentos e transferências) de animais por ano.
Um dado importante é que ‘somente produtores ligados a um programa de certificação de qualidade são elegíveis para participar das parcerias que proliferam no setor da carne’ no Reino Unido e ‘a corrida agora é para se desenvolver um sistema de rastreamento completo’, do animal até os cortes individuais para venda ao consumidor.
Assim, a idéia do rastreamento - que consta ter sido implementada inicialmente na Alemanha, para demonstrar aos consumidores que a carne que estavam comprando não era importada e, portanto, tinha a segurança conferida pelos serviços veterinários do governo alemão – ganhou o mundo e já está se tornando exigência no comércio internacional.
E é essa exigência dos importadores que está provocando uma mudança de atitude no segmento industrial de carne bovina no Brasil. Vê-se hoje empresários do ramo, que sempre foram resistentes às inovações que não lhes permitissem auferir lucros imediatos, procurando atalhos para o novo caminho, para o qual encontram-se completamente despreparados.
Por Pedro E. de Felicio, Josyanne C.M de Carvalho-Rocha e Cinara M. Shibuya com o título de ' PARCERIAS VERTICAIS DE CARNE BOVINA E SERVIÇOS DE ALIMENTAÇÃO', publicado na Revista Higiene Alimentar, São Paulo SP, 1999. Editado e adaptado para ser postado por Leopoldo Costa.
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