Introdução
Na
história, a necessidade de pesar, medir e classificar o que se produz, além de
estabelecer métodos para verificar a qualidade das produções está presente
desde que a agricultura e a vida em sociedade foram estabelecidas. Na cadeia da
carne bovina não foi diferente. Em alguns países surgem no início do século 20
sistemas de classificação e tipificação de carcaça. As normas, regulamentos
técnicos, metrologia (a ciência das medições) e a avaliação de conformidade
compõe estes sistemas, que servem de base para a comercialização de carcaça e
carne.
Em 1946,
o mestre em Zootecnia da ESALQ Nicolau Athanassof já chamava a atenção para a
apreciação das carnes, dizendo o seguinte: “Entende-se por qualidade de carne,
o conjunto de características procuradas pelo consumidor e que habilitem a
dizer: a carne é de primeira, segunda ou terceira qualidade, de acordo com o
seu valor real e a classe de bovinos que a forneceu. A inspeção das carnes nos
matadouros comporta pois um exame feito sobre os bovinos em pé e outro, sobre a
carcaça e as vísceras.”
Portanto,
embora não seja uma idéia nova, a normalização através da classificação de
carcaças nos frigoríficos brasileiros talvez venha representar o passo inicial
para sustentabilidade da cadeia e obtenção de qualidade na produção da carne.
Os principais objetivos desta normalização:
· Facilitar
comunicação – estabelecer características para um produto, processo ou serviço,
identificadas de forma objetiva e demonstrável, criando uma linguagem comum
entre quem fornece e quem compra;
· Economia – redução
de custos por meio de racionalização e ordenação de processos e das atividades
produtivas;
· Proteção do
consumidor – leva em conta expectativas dos consumidores e estabelecem mínimos
legítimos necessários.
Estas
normas podem ser estabelecidas dentro de uma propriedade, por entidades
setoriais, sociedades científicas , ou ainda por consórcios de organizações. As
normas terão o valor que o mercado lhes reconhecer. O reconhecimento virá da
aproximação das normas estabelecidas com as expectativas dos consumidores da
carne bovina.
O setor
da carne bovina
Existem
duas possibilidades de atuação na pecuária de corte para produzir com a noção
de padrão de qualidade que visa atender ao consumidor de carne:
1)
Produtividade – Decisão quanto a genética (raça, linhagens, cruzamentos) seria
a primeira etapa de um controle de qualidade, pois não é possível através do
gerenciamento (nutrição, manejo, etc...) superar problemas com gado de genética
inferior. Partindo deste ponto, teríamos a combinação com manejo-ambiente
[sexo, castração, vacinação, fase de crescimento ao abate (peso e idade),
engorda a pasto, semi-confinamento, confinamento, apartação e transporte para o
matadouro etc...] influenciando nas
características da carcaça e/ou carne.
Tabela de pontos comuns de controle de
qualidade
|
|||
Processo
|
Ponto de controle
|
Potenciais impactos na qualidade
|
|
Genética/cruzamento
|
Avaliação do bezerro
Seleção de reprodutor
Seleção de fêmeas de reposição
Combinação de raças (tipos)/sistemas
|
Características de carcaça
Desempenho
Temperamento
|
|
Manejo do gado
|
Castração
Desmame
Vacas prenhes
Animais para engorda
Transporte
|
Escoriações
Injúrias no couro
Lesões em locais de injeção
Características de carcaça
Temperamento
Desempenho
|
|
Controle de parasitas
|
Parasitas internos
Parasitas externos
Injúria no couro
Injúria no fígado (intoxicação)
|
Lesões em locais de injeção
Segurança sanitária
|
|
Nutrição
|
Manejo de pastagens e forragens
Suplementação:
Minerais
e vitaminas
Energia e
proteína
|
Características de carcaça
|
|
Manejo de descarte
|
Tempo apropriado
transporte???
|
Características de carcaça
Escoriações
Injúrias no couro
Condenação
|
|
2)
Qualidade e padronização do produto – sexo e idade do animal, peso, conformação e acabamento da carcaça permitem
agrupar produtos com expectativas de obtenção de qualidade diferenciada da
carne.
Tabela de padrões para a indústria de
carne
|
|||
Desejável
|
Indesejável
|
||
Peso da carcaça (kg)/@
|
240 – 270/16 a 18@
|
< 220/15@ ou > 270/18@
|
|
Maturidade (número dentes incisivos
permanentes/ idade aproximada)
|
Até 4/ 28 a 36 meses
|
> 6/ acima de 42 meses
|
|
Acabamento da carcaça (cobertura de gordura,
mm)
|
3 - 6
|
< 3 e > 6
|
|
Área de olho do Lombo (cm2)
|
75 a 80
|
< 65 e > 100
|
|
Na
modificação das características da carcaça e carne incluem-se fatores
quantitativos citados acima e ainda aqueles qualitativos, sendo ambos de alguma
forma interligados. Quais os fatores, como verificá-los e como estão
relacionados constitui um desafio tecnológico para todos os agentes que estão
de alguma forma interessados na cadeia da carne.
Quanto
aos fatores quantitativos:
A
composição da carcaça pode ser verificada pela desossa e elaboração dos cortes
cárneos e análise da composição química (umidade, proteína, gordura, minerais
...). Estas avaliações requerem um grande investimento de recursos e portanto
não são ainda comumente utilizadas na indústria frigorífica. As medidas ou
avaliações seguintes são normalmente utilizadas como indicadores de composição
de carcaça:
· Medida da espessura de gordura que recobre a
carcaça em pontos específicos, fazendo-se ajustes subjetivos (Avaliação subjetiva do acabamento ou cobertura da
carcaça, atribuindo escores segundo uma escala pré-definida) – importante para
a qualidade visual dos cortes e para proteção da carne contra resfriamento
muito rápido (enrijecimento excessivo pelo frio);
· Medida da área do olho de lombo, seção
transversal do m. Longissimus dorsi – indicador indireto do crescimento
da massa muscular e relacionado com o rendimento em termos de cortes
principais;
· Peso da carcaça – mínimo para garantir alguma massa
muscular e a partir de um determinado ponto do crescimento, que depende do tipo
de animal, tem impacto negativo no rendimento por ocorrer apenas acúmulo de
gordura;
·
Avaliação subjetiva da conformação (relação
carne/osso), onde carne equivale à soma de músculo e gordura, ou da
musculosidade (relação músculo/osso), atribuindo escores segundo uma escala
pré-definida – importante para rendimento de cortes, e no caso de tipos de
animais mais musculosos diferencia a produção de carne magra;
· Avaliação subjetiva da proporção de gordura
interna (GRPC - gordura renal, pélvica e cardíaca ou inguinal), nos países onde
essa gordura ou sebo permanece na carcaça durante o resfriamento.
Nos
Estados Unidos, a indústria de carnes utiliza-se destas medidas para tipificar
a carcaça em um índice chamado “ classe de rendimento (yield grade = YG)” , que
tem relação com o rendimento dos principais cortes cárneos (parte do dianteiro
e o traseiro especial) desossados e com gordura aparada.
Exemplo
de YG = 2,5 + 0,1 (espessura de gordura em mm) + 0,0084 (peso da carcaça
quente, kg) + 0,2 (GRPC,%) - 0,05 (AOL, cm2) rendimento dos principais cortes (%) = 51,34 –
0,23 (espessura de gordura em mm) - 0,02 (peso da carcaça quente, kg) – 0,462 (GRPC,%) + 0,116 (AOL, cm2).
Tabela de Conversão de “Classe de
rendimento” em rendimento de cortes especiais, desossados e aparados
|
|
Classe de rendimento
|
Rendimento de cortes
(%)
|
1,0
|
54,6
|
2,0
|
52,3
|
3,0
|
50,0
|
4,0
|
47,7
|
5,0
|
45,4
|
No Brasil existem equações semelhantes, como a
descrita por Felício.
Cortes Comerciais Brasileiros - CCB (%)
=
60,33 – 0,015 (peso da carcaça quente,kg)
–
0,462 (espessura de gordura, mm) + 0,110 (AOL, cm2).
Exemplo
de CCB (%) = 60,33 – 0,015 (272kg) – 0,462 (5 mm) + 0,110 (75 cm2)
= 62,2% de carne dos CCB, desossados e com 5 mm; não inclui a carne da
ponta-de-agulha.
Na
avaliação dos fatores qualitativos, consideramos que:
A
qualidade da carne proveniente de cada carcaça também apresenta grande variação
quanto ao aspecto visual (cor, textura e firmeza) nos pontos de venda e quanto
aos atributos relacionados à apreciação (maciez, suculência, e sabor/aroma) da
carne preparada para o consumo, isto é, cozida ou assada.
Os
testes para avaliar tais atributos enfrentam barreiras semelhantes às
enfrentadas pela medição de composição de carcaça. Desta forma, os indicadores
listados abaixo são utilizados para predizer quão macia, suculenta e saborosa
será a carne após a cocção.
·
Maturidade fisiológica do
bovino abatido, avaliado pelo grau de ossificação das
cartilagens das vértebras do sacro, lombares, e torácicas, com ajustes pela
luminosidade da cor da superfície de um corte da carne, bem como pela textura;
no Brasil, como em alguns outros países, a maturidade é avaliada pela erupção e
crescimento dos dentes incisivos permanentes; Quanto mais velho o animal, maior
quantidade e insolubilidade das fibras de colágeno que fazem parte da
aponeuroses e outros tecidos de preenchimento e ligação com os tendões na
carne, conferindo uma textura mais grosseira e menor maciez;
·
Marmorização (“marbling”), ou gordura
intramuscular, também conhecida como gordura entremeada, que está relacionada
ao genótipo, à fase da curva de crescimento e ao nível energético da ração do
bovino, que por sua vez estão associados à velocidade de ganho de peso e
composição deste ganho. Além disso, a marmorização parece funcionar como um
seguro contra abuso no ponto final de cocção da carne;
·
Cor da carne e da gordura, avaliada na
superfície da carcaça ou na superfície denominada área do olho do lombo
(contra-filé). A cor tendendo ao creme-claro, por exemplo, aponta para um
animal jovem, alimentado com ração, em confinamento. Já a cor da carne (tecido
muscular) é indicador de maturidade fisiológica, pois ocorre aumento do
conteúdo do pigmento avermelhado com a idade, sendo a cor vermelha mais escura
um indicativo de animal mais velho.
Novos indicadores tem sido
aplicados na prática comercial e industrial de outros países visando alterar a
qualidade da carne produzida a partir de carcaças de bovinos jovens:
·
Composição racial do gado,
mais especificamente as proporções de Bos indicus e Bos taurus no genótipo;
·
Tipo de pendura da carcaça durante o
resfriamento ou pelo menos nas primeiras dez horas de resfriamento, quando
feita pelo osso ísquio da bacia pélvica (ponta das nádegas), diminui a
necessidade de maturação;
·
Tempo de maturação, que segundo o MSA – Meat
Standards Australia, deve ser de no mínimo cinco dias, porque influencia a
apreciação da carne.
Normalização pelo novo
Sistema Brasileiro de Classificação de Carcaça
Os critérios adotados pela
IN (Instrução Normativa do MAPA, 2004) nº 9 para classificação das carcaças são
o sexo e a maturidade, o peso e o acabamento.
·
Sexo - verificado pelo exame dos caracteres
sexuais, com as categorias: Macho inteiro (M), Macho castrado (C), Novilha (F),
e Vaca de descarte (FV).
·
Maturidade - verificada pelo exame dos dentes
incisivos, com as categorias:
Dente de leite (d) -
animais com apenas a 1ª dentição, sem queda das pinças;
Dois dentes (2d) - animais
com até dois dentes definitivos, sem queda dos primeiros médios da primeira
dentição;
Quatro dentes (4d) -
animais com até quatro dentes definitivos, sem queda dos segundos médios da
primeira dentição;
Seis dentes (6d) - animais
com até seis dentes definitivos, sem queda dos cantos da primeira dentição; ou
Oito dentes (8d) - animais
com mais de seis dentes definitivos.
·
Peso da Carcaça - verificado mediante pesagem da
carcaça quente (em kg).
·
Acabamento da Carcaça - verificado mediante
observação da distribuição e quantidade de gordura de cobertura, em locais
diferentes da carcaça (regiões torácica, lombar e no coxão), com as categorias:
(1) Magra - gordura ausente; (2) Gordura escassa - 1 a 3 mm de espessura; (3) Gordura
mediana - acima de 3 e até 6 mm de
espessura; (4) Gordura uniforme - acima
de 6 e até 10 mm de espessura; (5) Gordura excessiva - acima de 10 mm de espessura.
As peças e cortes, serão
identificados (as) com os códigos dos parâmetros sexo, maturidade e acabamento
com carimbos nas peças com ossos e etiquetas nas embalagens dos cortes
desossados. As identificações serão mantidas até o consumo industrial ou
exposição do produto para venda ao consumidor.
Limitação
A classificação de carcaça não garante a qualidade do
produto carne quanto aos atributos atrativos para o consumo, todavia seria uma
maneira de padronizar a linguagem da cadeia aumentando a transparência e
facilitando os negócios bem como auxiliando em verificação de resultados pelos
pecuaristas. Como afirmado anteriormente, com certeza seria um passo
interessante em direção a uma visão de produção com qualidade.
Tendências
de Requisitos técnicos a serem incorporados ao mercado da carne a médio prazo
●
Controle de
resíduos biológicos – hormônios, medicamentos, antibióticos (Produtor);
●
Bem-estar animal
(Produtor);
●
Boas práticas
agrícolas (Produtor);
●
Segurança alimentar
(APPCC) (Indústria);
●
Rastreabilidade
(Produtor e Indústria).
Iniciativas
ligadas às tendências do mercado:
Sistema
agropecuário de produção integrada – GAP na agropecuária = Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA);
Certificação
da produção responsável de carne – WWF;
Sistema
nacional de rastreabilidade da carne.
Exemplos
de normalização no setor
Iniciativas
voluntárias de normalização têm foco no aumento da competitividade e inserção
diferenciada dos produtos nos mercados.
Implementação
de denominação de origem controlada para a carne dos pampas meridionais – RS.
Desafios
A
conscientização dos diversos atores do segmento acerca do uso de normas
técnicas ainda é pequena. Disso resulta pouca compreensão acerca do papel da
normalização e dos benefícios que pode proporcionar. A cadeia de carne é pouco
articulada do ponto de vista tecnológico – Exemplo: Classificação de carcaça –
para alguns altamente desejável enquanto outros não têm interesse na
implementação.
Por Eduardo Francisquine Delgado (Laboratório de Anatomia e Fisiologia Animal Departamento de Zootecnia – ESALQ/USP- Piracicaba, SP). Adaptado para ser postado por Leopoldo Costa.

No comments:
Post a Comment
Thanks for your comments...