A carta de Caminha estava errada. Plantar no Brasil foi bem mais complicado do que o patriotismo imagina
Em 26 de abril de 1500, realizou-se a 1ª missa no Brasil. Em 1º de maio de 1500, foi a vez da 1ª ação de marketing. Pero Vaz de Caminha escreveu ao rei dom Manuel o relato da viagem, com o seguinte trecho: “Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados (...) Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. Pois é, “em se plantando, tudo dá” é um erro de citação. Seja como for, o trecho é uma desculpa por não terem achado no que estavam realmente interessados - ouro, só encontrado 200 anos depois.
Note a menção esquisita aos “ares frios e temperados” em Porto Seguro, na Bahia. Apesar do otimismo, o fato é que quase nada que os portugueses entendiam por comida nascia no Brasil. Os portugueses até tentaram: em 1532, na 1ª expedição colonizadora, Martim Afonso de Souza plantou trigo em São Vicente. As plantas davam flores, mas murchavam sem grãos. As parreiras nasciam esquisitas, com uvas isoladas, e não rendiam vinho decente. Arroz nascia, mas pouco e em grãos pequenos. Os bois morriam ou passavam mal com o calor e não conseguiam se reproduzir.
As terras brasileiras nunca tiveram problema de fertilidade. O caso sempre foi o clima e as decisões políticas. Parece contrassenso que não se consiga plantar algo que nasce no frio em regiões quentes: plantas vivem de sol. Isso acontece devido à fisiologia delas. “A planta detecta quando é época de dar flores de acordo com a diferença de duração do dia e da noite e pelo calor. Quando uma planta de clima temperado nasce nos trópicos, onde dias e noites são iguais ao longo do ano, não recebe esse sinal”, diz José Roberto Peres, da Embrapa.
Tempos de feijão, farinha e carne-seca
Os colonos portugueses se viravam com o que os índios conheciam: feijão, milho, mandioca, amendoim, batata-doce e pimenta e alguns produtos asiáticos que importaram, como coco, banana, manga e jaca. Na prática, a dieta era bem pobre. “A alimentação colonial era basicamente feijão, farinha e carne-seca”, diz o historiador Carlos Roberto Antunes dos Santos, da UFPR. Se você observar os pratos numa festa junina, pode ter uma ideia da dieta daquela época. Nas fazendas, plantar comida era secundário, só para o sustento. A estrutura agrícola era controlada pelo governo português. “Plantar alimentos aqui exigia o mesmo tipo de licença que para plantar cana”, diz Antunes.
A cana era sinônimo de dinheiro, de bem exportável em forma de açúcar. Assim, o clima brasileiro e as prioridades da coroa favoreceram plantar aqui o que não podia ser plantado na Europa. Na expedição de Martim Afonso, chegou a cana-de-açúcar e o primeiro engenho foi instalado em São Vicente, em 1532. A cana, originária da Índia, foi a base da economia da colônia até tomar um baque dos holandeses, que ocuparam uma grande faixa do Nordeste de 1630 a 1654 e levaram consigo mudas para o Caribe, acabando com o monopólio. A partir de 1727, quando foi plantado no Pará, o café iria se tornar o principal produto de exportação do Brasil. Vindo da Etiópia, a planta prefere um clima um pouco mais ameno e terras altas – adaptou-se melhor a São Paulo, mudando o centro da economia do país.
Enfim, o arroz encontra o parceiro
No século XIX, o Império decidiu trazer europeus para o país. O Brasil entraria em sua 2ª fase de produção agrícola. Os europeus trabalharam no café em São Paulo, mas, o que talvez seja mais importante, ocuparam terras quase selvagens no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina, adequadas a produtos de clima temperado. E os italianos e alemães não precisaram, como os portugueses antes, abandonar totalmente seus hábitos alimentares. Pela 1ª vez, surgiram plantações em escala de alimentos para venda. Pão de trigo e macarrão entraram na dieta.
Cerveja passou a ser produzida no país. O arroz tornou-se a primeira parte do arroz com feijão. O arroz não tem problemas com o clima tropical, mas se desenvolve melhor em regiões alagadas. Era plantado desde tempos coloniais. Mas isso era feito no seco, o que só rende um terço do arroz alagado e resulta em grãos pequenos, que não ficam soltos quando cozidos. Para plantar em terras alagadas, é preciso áreas planas e amplas e um solo com camada impermeável a pouca profundidade. “Na maioria do país, o solo só vai ter essa camada impermeável a 1,80 m. No Rio Grande do Sul, a 30 cm. Por isso o arroz se deu melhor por lá”, diz Ariano de Magalhães Jr., engenheiro agrônomo da Embrapa.
Saúva |
Toda planta importada é uma invasora e pode acontecer duas coisas: a espécie não encontra predadores e doenças locais, o que faz com que se dê melhor no ambiente importado do que no original. Ou encontra predadores e doenças aos quais não está adaptada. A saúva (Atta spp.) foi a grande inimiga das plantas que chegaram ao Brasil. Em 1911, no romance 'O Triste Fim de Policarpo Quaresma', Lima Barreto faz seu personagem ter sua utopia rural frustrada por um ataque de saúvas. Em 1928, Mário de Andrade colocou na boca de Macunaíma: “Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”.
Em 1935, sob Getúlio Vargas, o Brasil decretou guerra à formiga. A Campanha Nacional Contra a Saúva tinha o lema “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”. Foi a 1ª iniciativa científica do Estado em lidar com as condições agrícolas. Agrônomos testaram várias soluções, inclusive tatus para comer as saúvas (ideia descartada porque tatus são vetores de doenças). Decidiu-se pelo uso de inseticidas químicos, e isso incentivou a indústria nacional. A saúva é um problema ainda hoje, em escala menor, mas Vargas dava o primeiro passo para implementar no Brasil o que seria chamada de Revolução Verde.
Chegada de gado importado da Índia |
Com a população aumentando, a demanda por carne também cresceu. O gado europeu, trazido desde o 1º momento da colonização, não era bem adaptado. Em 1904, um boi tido por pronto para o abate, aos 8 anos, pesava 150 kg. Hoje, uma raça considerada média pela Embrapa é abatida entre 450 e 500 kg. Em 1874, Henrique Hermeto de Carneiro Leão, o barão de Paraná, importou do zoológico de Londres um casal de gado indiano – o zebu, que se diferencia do gado europeu por ter corcova, o cupim. Logo se percebeu que as vacas da Índia se adaptavam muito melhor ao clima do Brasil.
No início do século XX, produtores brasileiros trataram de importar animais da Índia, mas havia um probleminha: lá as vacas são sagradas, e eles não venderiam seus ancestrais reencarnados para comedores de carne. Os indianos vendiam suas vacas para estrangeiros desde que para zoológicos e circos. Assim, os fazendeiros brasileiros foram atrás dos criadores indianos que haviam vendido para zoos europeus e trouxeram as vacas para cá. Se você come bife, está comendo vacas sagradas. Só a raça Nelore, importada da província de Nellore (em Andhra Pradesh), é responsável por 80% da carne consumida no país.
Vinho nordestino
A partir dos anos 1960, e com mais intensidade após a fundação da Embrapa, em 1972, a prioridade passou a ser aumentar a produção e ocupar regiões antes pouco utilizadas para a produção de alimentos – isto é, quase todo o país, sua região tropical. Um caso emblemático foi a soja. Trazida dos Estados Unidos no século XIXe usada basicamente para alimentar o gado, é uma cultura asiática de clima temperado que se adaptou ao sul do país. Por meio de seleção de espécimes menos sensíveis ao calor e pela falta de estações no ano, a partir dos anos 1970, começou a ser plantada no Centro-Oeste.
A produção de soja passou de 1 milhão de toneladas, em 1979, para 57 milhões, em 2009, dos quais 18 milhões foram apenas no Mato Grosso (quase o dobro de Paraná e Rio Grande do Sul, os outros estados com mais plantações). Segundo o agrônomo Roberto Peres, da Embrapa, o trigo também já está pronto para conquistar o cerrado. O Nordeste também não passou despercebido. Nos anos 1960, sob o comando do economista Celso Furtado, foi feito um levantamento das regiões cultiváveis do semiárido.
Colheita de Soja no Mato Grosso do Sul |
A partir dos anos 1980, frutas como o melão passaram a ser produzidas no Nordeste, e hoje já começam a ser plantadas outras de clima temperado, como maçãs, peras e caquis ou, o mais surpreendente, uvas para vinho - que precisam de condições muito específicas de sol e frio para dar certo. As plantas exigem frio, e não apenas estações do ano, para produzir um hormônio de crescimento chamado cianamida hidrogenada. Para plantar no Nordeste, os produtores precisam podar as plantas e aplicar o hormônio manualmente. Com os avanços tecnológicos, o que era maldição pode se tornar benesse. Segundo Manuel Abílio de Queiroz, professor de agronomia na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), como não há estações do ano, é possível plantar em qualquer época, por demanda. “O agricultor pode até mesmo plantar por encomenda. A colheita passa a responder ao mercado, e não ao clima.” É um futuro promissor para o semiárido.
O fungo que domou Ford
Nativa da Amazônia, a seringueira (Hevea brasiliensis) era conhecida dos europeus desde o século XVIII. Mas, quando Charles Goodyear inventou a borracha vulcanizada, em 1839, criando um novo material com base no látex, o interesse pela planta explodiu. Usada dos pneus à vedação em válvulas hidráulicas de motores a vapor, a borracha se tornou um dos insumos fundamentais da Revolução Industrial, juntamente com o aço e o carvão. Data-se o início do ciclo da borracha em 1879, quando as exportações atingiram 10 mil toneladas, mas o fim já estava decretado antes do princípio. Em 1876, o inglês Henry Wickam havia levado 70 mil sementes para a Inglaterra a fim de serem estudadas por botânicos. Em 1895, passaram a ser plantadas na Ásia. Em 1900, o Brasil controlava 95% da produção de borracha. Em 1910, 50%. Em 1918, 20%. E, em 1940, 1,3%.
Em 1928, Henry Ford tentou ressuscitar a borracha brasileira para produzir pneus para seus carros. Adquiriu 10 mil km² de terras perto de Santarém (PA) e criou Fordlândia, uma colônia com casas ao estilo dos subúrbios americanos. Logo descobriu o que tornava tão mais barata a borracha asiática: plantando as árvores lado a lado, elas foram devoradas por um fungo que não existe na Ásia. Fordlândia durou até 1945, por causa da 2ª Guerra, com os japoneses tomando posse da Malásia e dando uma sobrevida artificial à indústria de borracha do Brasil. Hoje, o Brasil importa dois terços da borracha que consome. Do que nasce aqui, 60% é produzida no estado de São Paulo.
Celeiro do mundo sob suspeita
Parece um final feliz? Bem, nem todos concordam. O movimento pelos orgânicos rejeita diversas tecnologias modernas de agricultura, principalmente agrotóxicos e transgênicos - o 1º algo que permite vencer a saúva no Brasil e o 2º uma possibilidade para a adaptação de mais culturas. O Greenpeace vem denunciando a soja como a nova vilã do desmatamento no país e realiza ações como a de 2006, na Holanda, que tentou barrar a entrada de soja brasileira produzida na Amazônia. O agronegócio também é tido como vilão para certos movimentos sociais. Ainda que hoje o forte do Brasil seja a produção de alimentos, a estrutura fundiária permanece concentrada em grandes fazendas e, em muitos casos, sob a coordenação de grupos multinacionais, como a Cargill e a Monsanto, que fornecem sementes transgênicas, insumos e todo o plano de produção.
Não há como pequenos produtores bancarem as máquinas e a extensão de terras necessárias para produzir a preços competitivos. Conflitos rurais mataram 34 pessoas em 2010, segundo a Comissão Pastoral da Terra. De 1995 a 2010, 38 769 trabalhadores foram resgatados de fazendas em trabalho em condições análogas às da escravidão. O agronegócio respondeu por 37,9% das exportações do Brasil em 2010, dos quais a soja, sozinha, respondeu por 8,5% (dados dos ministérios do Desenvolvimento e da Agricultura). Depois de 5 séculos, o país finalmente tem condições de cumprir a profecia de Caminha e se tornar o “celeiro do mundo”. Será uma bênção ou uma maldição?
Texto de Fábio Marton (Design de Leandro Guima) publicado na revista 'Aventuras na História' da editora Abril em novembro de 2011 com o título de 'Em se plantando nada dá'. Adaptado para ser postado por Leopoldo Costa.
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