12.17.2012

NA TERRA DE SANTA CRUZ, COMO O DIABO GOSTA



As pesquisas têm demonstrado que as idéias reformadoras de católicos e protestantes só lentamente se traduziram em efetivas mudanças de comportamento por parte da população cristã. O processo variou em seu ritmo conforme as regiões atingidas, mesmo se considerarmos apenas o continente europeu. A exportação da Reforma Católica, para o além-mar multiplicou as dificuldades normalmente impostas a uma tarefa dessa natureza. Pense, leitor, em algumas delas como as grandes distâncias; a falta de clérigos; a precária estrutura paroquial diante de um imenso território de ocupação populacional dispersa; as peculiaridades culturais de uma sociedade híbrida na qual, além disso, se despejavam continuamente, por meio do degredo, elementos desviantes da metrópole; e os vícios inerentes à escravidão e ao desmedido poder local concedido aos senhores. Tudo isso atrasou a efetivação da Reforma — entendida como projeto da aculturação — na colônia. E aqueles que se esperava que seguissem os preceitos da Contra-Reforma com maior fervor, os padres, estavam longe de serem homens acima de qualquer suspeita. Como tantos, eram feitos de carne e osso. Mais carne, até.

E o que nos mostra a historiadora Lana Gama Lima, que estudou em detalhes casos como o de Marciana Evangelha, moça solteira de 29 anos que, no Maranhão, denunciara o jesuíta José Cardoso ao comissário do Santo Ofício, Antônio Dias, do Colégio da Companhia de Jesus, em 16 de outubro de 1753. Ela o acusara de pedir-lhe “seu sêmen”, de dizer que “a desejava ver nua” ou ainda de lhe pegar “nos peitos no confessionário”. Sobre as relações do padre e a moça, sabia-se, por exemplo — e é o Comissário quem anota — que esta “ [...] o trazia doido e fora de si e que por ela perdia muitas vezes o sono da noite, o que nunca lhe sucedera com outra mulher alguma” e, ainda, que “por amor dela havia de sair da religião”. Seduzida por declarações ardentes e promessas, a moça atrapalhava-se nos depoimentos. Tanto que, passado mais dois dias, voltou novamente à presença do Comissário para declarar que o padre lhe garantira que, “ [...] se consentisse com ele lhe daria remédio para que ficando corrupta parecesse virgem e que para não conceber lhe daria também remédio”.

Românticos não eram raros. E havia alguns, como o padre Francisco Xavier Tavares, capaz de uma súplica cavalheiresca a Maria Joaquina da Assunção, mulher casada: “[...] se queria ter com ele uns amores e se consentia que ele fosse a sua casa”. Outros confessores chegavam a requintes galantes, ofertando flores às suas escolhidas em pleno confessionário ou fazendo como o padre Custódio Bernardo Fernandes que, no Recolhimento das Macaúbas, em Minas Gerais, dissera a Catarina Vitória de Jesus que lhe queria bem. Mais, perguntando se ela era sua, meteu na boca um raminho, pedindo-lhe que o puxasse com seus dentes.

Mas havia, também, o avesso da história. O confessionário era tido como espaço ideal para a abordagem de mulheres diabolicamente sedutoras. Ao receber “um escrito” amoroso da parda Violante Maria, o pároco João Ferreira Ribeiro, mandou-lhe um recado “por um mulato seu confidente” para que fosse à igreja de Santo Antônio e, acabada a missa, fosse ter com ele no confessionário. Marcaram então um encontro no caminho que ia para o lago e “ [...] lá entraram ambos no mato e teve ele acesso carnal a ela”. “Outra vez, também no confessionário” — a mesma Violante — “conversou com o padre que lhe falou que demorasse um pouco para que os outros pensassem que se confessava”. E dela que parte a iniciativa da conquista. Diferentemente da metrópole, onde, segundo os viajantes estrangeiros, os namorados conversavam em coches e cadeirinhas, noite adentro na praça do Rossio, os lugares do amor na colônia eram bem outros. Entre nós, os encontros tinham lugar em quintais, becos, roças, beiras de rios e adros de igrejas. Segundo o historiador Ronaldo Vainfas, esta era uma colônia de poucas cidades e casas devassadas. Entre nós as coisas se faziam pelos matos, “em cima das ervas”, em especial no caso de relações proibidas. E o autor chama atenção para o grande paradoxo: um espaço por assim dizer, público, como era o mato ou a beira de um rio, podia ser mais apto à privacidade exigida por intimidades secretas do que as próprias casas de parede-meia ou cheia de frestas.


As relações ditas pecaminosas é que chegam ao conhecimento do historiador, visto que vigiadas, perseguidas e, por isso, muito bem documentadas. Tomemos o exemplo das igrejas paroquiais, convertidas, nesse tempo, em espaço para namoricos, marcação de encontros proibidos e traições conjugais. Não foram poucas as pastorais setecentistas exigindo a separação de homens e mulheres no interior das capelas e naves, compreendendo-se, assim, o porquê de uma carta pastoral como a de D. Alexandre Marques, de 1732, proibindo a entrada nas igrejas de “pessoas casadas que estiverem ausentes de seus consortes”. Nas igrejas, portanto, brotavam romances.

E nelas, muitas vezes, se abrigavam os amantes — o que estava longe de ser uma originalidade colonial, havendo registros desses fatos em Portugal e noutros países europeus desde a Idade Média. Não por acaso um manual português de 1681, o de Dom Cristóvão de Aguirre, continha as perguntas: “se a cópula tida entre os casais na Igreja tem especial malícia de sacrilégio? Ainda que se faça ocultamente?”. Lugar de culto, lugar público, a Igreja seria também um lugar de sedução e de prazer. Um lugar onde, vez por outra, leitor, Deus dava licença ao Diabo...

No Brasil, as missas do século XVIII eram animadas por toda a sorte de risos, acenos e olhares furtivos, transformando, para desgosto dos bispos reformadores, as igrejas em concorridos templos de perdição. A luz bruxuleante, as arcadas e as colunas e os múltiplos altares laterais ofereciam recantos resguardados da curiosidade alheia, onde se podia até mesmo tentar gestos mais ousados, como um beijo ou um aperto de mão. A costumeira reclusão das donzelas de família e a permanente vigilância a que estavam expostos todos os seus passos, tornavam missas, procissões, ladainhas e novenas ocasiões sedutoras, para as quais contribuíam os moleques-de-recados e as alcoviteiras, ajudando a tramar encontros. Abrigo de amantes, a Igreja logrou converter-se, em certas circunstâncias, em um dos raros espaços privados de conversações amorosas e jogos eróticos, os quais envolviam nada menos do que os próprios confessores. E tais jogos eram perpetrados até mesmo, como já vimos, no refúgio dos confessionários.


Texto de Mary Del Priore no livro "História do Amor no Brasil", Editora contexto, São Paulo, 2006, excertos p.36-41. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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