12.06.2012

SABOR MINEIRO OU SABOR PAULISTA?



Passei a vida inteira aqui, filha de mineiros, e minhas boas lembranças de comida são muitas. Principalmente de imigrantes, que não tinham esse nome, mas sim, de vizinhos. Novidades excitantes como pão com alho e azeite, em Cerqueira César, quibe na av.Paulista, alcachofras recheadas, gefilte fish, doce de damasco em forminha,marzipã.

Com amigas quatrocentonas e suas mães aprendi pouco. Chamo carinhosamente de quatrocentona a mulher que acha que só ela tem avós.

Para começar, o assunto “comida” era tabu. Éramos meninas muito urbanas e as raízes estavam nas fazendas das tais avós. Íamos de casa para a escola. O bonde passava em frente ao Santa Luzia, à Doceira Paulista e, às vezes, comíamos uma empadinha ou um quindim.

Nas casas das amigas, nada que eu nunca houvesse visto. Arroz de forno, carne picadinha na ponta de faca, canja de galinha, quibebe, biscoito de polvilho, pudim de claras e rocambole, bolo de nozes com baba de moça e a mais ubíqua das sobremesas:rodelas de laranja entremeadas e cobertas de coco ralado.

Em dia de festa, peru com farofa. E lembro-me de alguns aniversários infantis mais caprichados com cachos de passas recheadas, caindo de trepadeiras, como uvas.

Com certeza absoluta a família paulistana era muito tradicional em matéria de comida e bebida, e não se atrevia a inovar em nada. Só o Santa Luzia nos trazia uma certa civilização global.

Para ilustrar, lembro que viajei com uma amiga cheia de avós a Paris, nós duas mocinhas. Ficamos no Grand Hotel sobre o Café de la Paix. Jantávamos todos os dias sob a batuta de um grande chef, a julgar pela delícia que era. E em todo jantar a amiga pedia ao garçom um arrozinho com ovo frito.O rapaz acudia pressuroso,mas depois de uma semana escutei-o sussurrar com o companheiro. “Tenha ganas de dar-lhe uns tapas no...” Era português, e ela bem os merecia.

Fomos crescendo com São Paulo, a amiga e eu. Nos idos de 80, ela baixou ao hospital vítima de intoxicação de sashimi, que ousara experimentar num esforço de auto educação, já que ninguém comia outra coisa. Voltou por tempo indefinido à inocente canja de galinha comum pouco de vinagre na finalização.

Na verdade,a comida que encontrei na cidade de São Paulo não era diferente da que mineiramente comíamos em casa.Um trivial que segundo os dias da semana, repetitivo e gostoso.

Perdi a paçoca de três carnes da Carmen, o arroz de suã de porco, o tatu de panela, o mangarito, o virado de farinha de milho e muito mais, com certeza embalada pelos lombinhos e galinhas ensopadas com quiabo de minha casa.

Há uns dez anos, numa viagem de pesquisa, encontrei pelas mãos da Fia, sem avó aparente, no Vale da Paraíba, o que deveria ser a verdadeira cozinha paulista. Patos macios, galinhas na quase coalhada, lambaris, a frescura das hortas,as frutas no pé.

Só me falta uma tarde cinzenta de nuvens, ameaçando trovoadas, quando choverão gordas içás. Vou fritá-las com farinha e comer a farofa de bundas crocantes. Só então poderei morrer, enfim, paulista.

Texto de Nina Horta publicado no caderno "Comida" da "Folha de S. Paulo" de 5 de dezembro de 2012. Adaptado e ilustrado por Leopoldo Costa.

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