3.12.2013
SURPRESAS DO CORAÇÃO: A MÚSICA DE PIXINGUINHA
“A flauta tem variações incríveis.
Dá voltas de cobra.
Chora.
Silva.
Ri, na execução maravilhosa dos seus dedos. E até os companheiros, habituados, ficam surpreendidos e sorriem, acompanhando com os corpos agitados nas cadeiras da orquestra magnetizada. O povo vai comprando bilhetes e entrando, atraído para o teatro a cuja porta ele tocar.”
Trecho de uma crônica de Orestes Barbosa publicada no jornal A Notícia, em 1923, esta descrição apaixonada da performance de um flautista, e de seu poder de seduzir o público, é também o julgamento de um talento saudado, de maneira igualmente apaixonada, por Heitor Villa-Lobos, Ernesto Nazaré, Vinícius de Morais, Antônio Carlos Jobim e toda a nata da música popular brasileira. Alfredo da Rocha Viana Filho, o Pixinguinha, objeto de tanta admiração, representa a própria essência dessa nata.
Difícil é saber o que mais encantava em Pixinguinha: se as qualidades de instrumentista, arranjador e compositor ou seus predicados humanos. Nos campos da MPB, outros nomes seriam tratados com igual respeito, mas dificilmente com tantos elogios. Vinícius o chamou de ser humano perfeito; Brasílio Itiberê o situou musicalmente ao lado de Bach; Mário de Andrade o transpôs para Macunaíma, na figura de Olelê Rui Barbosa, “um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadista de profissão”; Hermínio Belo de Carvalho esdruxulamente o comparou a um “totem africano esculpido em ouro e estanho”.
Construiu-se, assim, o maior mito da música popular brasileira. Pixinguinha é a majestade diante da qual todos se curvam. Sua sensibilidade é mágica: traduz em som emoções como um simples mortal jamais poderia fazer. Sua polifonia foge às regras convencionais da linguagem musical, sua interpretação abarca improvisos inimitáveis.
Impressionante, hoje em dia, é entrar em uma loja de discos qualquer e não encontrar títulos de sua autoria na letra “P” da seção de MPB. Não fosse o centenário de seu nascimento, que inspira o lançamento de parcos exemplares de CD, o totem africano estaria sobrevivendo provavelmente apenas na memória de gerações criadas há mais de 30, 40 anos, ou ainda na poeira de um modesto apartamento em Vila da Penha, subúrbio do Rio de Janeiro, onde seu único filho, adotivo, Alfredinho, é guardião de um tesouro pelo qual pouca gente se interessa: partituras, manuscritos, fotos esmaecidas, troféus, flauta, gravata-borboleta, um bilhete, guardado em plástico, em que Jobim o declara “amor da minha vida”.
Nas comemorações dos cem anos, o repertório de Pixinguinha, com clássicos e inéditos em disco, ganhará edição em CD. Pelo mesmo motivo, agitam-se pesquisadores, capazes de vasculhar novidades na vida e obra de Pixinguinha. As mais recentes descobertas chegam em livros a serem lançados no ano do centenário.
Enquanto coletava informação para Choro do quintal ao Municipal (editora 34), o instrumentista Henrique Cazes verificou que Sofre porque queres não foi a primeira música de Pixinguinha gravada em disco, em 1917, como se acredita. Ao ouvir registros realizados entre 1902 e 1927, cedidos pelo pesquisador Jairo Severiano, Cazes descobriu uma gravação de 1915 do choro Dominante, com o desconhecido Bloco dos Parafusos, trio com clarinete, cavaquinho e violão, em disco sem identificação de autores e intérpretes. A autoria de Pixinguinha para Dominante só seria registrada em gravações realizadas anos depois, o que inclusive levava a crer que o choro fora composto mais tarde.
Há dez anos, Cazes se dedica a remontar arranjos originais do mestre, o que o levou a dirigir a Orquestra Pixinguinha. Seus estudos apontam para outro equívoco histórico: a primeira gravação de que o compositor participou como solista teria sido a da polca Nhônhô em sarilho, do violonista Guilherme Cantalice, realizada provavelmente no mesmo dia de 1911 em que foi gravada São João debaixo d’água, de Irineu de Almeida, apontada como a pioneira. A constatação de que uma foi gravada antes da outra se dá pela numeração do registro da Casa Faulhaber, que indica o número 1450002 para a primeira e 1450006 para a segunda.
No caminho para o lançamento de uma versão ampliada da biografia Pixinguinha vida e obra (Lumiar), publicada em 1978 pela Fundação Nacional de Arte (Funarte), o jornalista Sérgio Cabral desenterra outras inéditas curiosidades, tornando claro o significado de títulos de velhos e conhecidos choros. Sofre porque queres foi escrito para uma jovem chamada Irene, integrante do rancho Filhos da Jardineira, por quem o maestro era apaixonado. São Lourenço no vinho foi dedicada ao proprietário da firma Vinhos Único, de nome Lourenço, que patrocinava o Grupo da Velha Guarda, organizado por Pixinguinha. O Sólon, de Proezas do Sólon, era o dentista do compositor. E Os cinco companheiros, referência ao grupo que se apresentava na rádio Mayrink Veiga, integrado por Pixinguinha, Laurindo de Almeida, Luperce Miranda, João da Baiana e Luís Americano.
Quando o assunto é Pixinguinha, as surpresas parecem intermináveis. Sua discografia deverá ser acrescida de pelo menos dois títulos: Os dois se gostam e Domingo eu vou lá, ambos de 1918. Pelas características melódicas, Henrique Cazes afirma categoricamente que são de autoria do “inconfundível” Pixinga. Por outro lado, diz Cazes, os solos de flauta na valsa Pastorinha e nas polcas Flauzina e Jocosa, a ele atribuídos, em gravações de 1912, seriam na verdade do autor das três músicas, Pedro Galdino. “Muitas novidades podem ainda aparecer”, comenta o instrumentista. Que o diga Alfredinho, filho de Pixinguinha. Ele garante ter em casa partituras inéditas em número suficiente para compor um CD inteiro.
Situações como estas refletem não apenas a maneira desordenada como as gravações eram registradas antigamente, mas também o temperamento displicente de Pixinguinha, que se entregava à música sem preocupação com registros ou ganhos. Tanto, que foi capaz de dar a Benedito Lacerda a parceria de músicas que compôs sozinho.
Poderia ser também atribuída a seu jeito despreocupado e generoso a divulgação de outros equívocos episódicos, cedo ou tarde esclarecidos. Em 1968, quando o Teatro Municipal do Rio de Janeiro se cobria de pompa e circunstância para comemorar seus 70 anos, descobriu-se que na verdade eram 71. O homenageado ficara quieto para não estragar a festa. Sobre seu proclamado encontro com Louis Armstrong, em Paris, sabe-se que nunca aconteceu. Pixinga, provavelmente ébrio, deve tê-lo confundido com algum anônimo saxofonista em um bar enfumaçado qualquer na noite da capital francesa. Os dois viriam a se conhecer no Rio.
Fatos como esses são corriqueiros na vida de um homem beatificado por reunir, harmonicamente, genialidade e simplicidade. Criado nos subúrbios do Rio, em uma família numerosa que desde cedo o incentivou à música, aos 13 anos Pixinguinha já compunha e deleitava quem se reunia em rodas para escutá-lo. Daí em diante, só fez brilhar. Em alguns de seus choros, a riqueza melódica é capaz de deixar tontos os músicos que se disponham a interpretá-los. Houve quem atribuísse seu virtuosismo a uma mediunidade. O professor de música Paulo Silva considerou seus compassos “transcendentes”. Alfredinho não se acanha em chamá-lo de “iluminado”.
As composições de Pixinguinha são geralmente alegres, travessas, mas há espaço para o romantismo do qual Carinhoso é o melhor exemplo. Com mais de 200 versões, é a música mais gravada no Brasil. Entre centenas de maxixes, polcas, choros, valsas e até hinos evangélicos, há títulos que se referem a animais, como Gavião calçudo, Marreco quer água e Papagaio sabido, que parecem remeter às vozes e ruídos desses bichos. O choro 1 x 0, de difícil execução, sugere dribles e outros lances de uma partida de futebol — no caso, Brasil x Uruguai, com gol de Friedenreich na prorrogação, em 1919.
Antes de Pixinguinha, os arranjos não eram brasileiros, mas importados ou impregnados de influências estrangeiras. Popular e erudita, sua estética revolucionou e direcionou a música brasileira para uma originalidade fundamentada em raízes nacionais, indígenas, africanas. Com uma criatividade irrefreável, fez músicas para teatro, circo, banda, cinema. Em 1964, internado 50 dias depois de um dos quatro ataques cardíacos que sofreu, saiu do Instituto Cardiológico Aluísio de Castro levando na bagagem repertório para um disco inteiro, sem ter tocado qualquer instrumento.
Contrapontos. A popularidade de Pixinguinha tem como marco o ano de 1919, quando formou o grupo Os Oito Batutas, que tocava no Cine Palais — naquele tempo, grupos musicais se apresentavam nas salas de espera dos cinemas. A ousadia do repertório em ritmos brasileiros, como lundus, batuques e cateretês, foi recebida com alguma reserva pela crítica, mas muita satisfação por parte do público. Rui Barbosa ia ao cinema só para ouvi-lo tocar. Os Batutas acabariam fazendo temporadas de sucesso em Paris e Buenos Aires.
Em 1946, quando trocou a flauta pelo saxofone, Pixinguinha deixou seus fãs e amigos decepcionados, mas por pouco tempo. No conjunto regional liderado por Benedito Lacerda, que tocava flauta, sobressaíam-se os solos e contrapontos do sax-tenor. Nunca ficou clara a razão da mudança de instrumento, mas uma das hipóteses é de que a bebida lhe prejudicou a embocadura ou o controle das mãos. Em se tratando de alguém cujo nome virou até marca de cachaça, não é de se espantar.
A boêmia era com certeza mais um motivo de admiração para os companheiros que o assediavam no Bar do Gouveia, no centro do Rio, onde comparecia diariamente, o que o levou a ganhar cadeira cativa, marcada com placa. O bar não mais existe, mas no local foi posta uma estátua de seu mais fiel cliente, em 23 de abril do ano passado, marcando o início das comemorações do centenário.
O fato é que Pixinguinha sempre conquistou amizades com seu jeito modesto e carinhoso. O menino alegre, de olhos puxados, louco por carnaval, tornou-se um rapaz corpulento de metro e oitenta, cuja simpatia conquistou Albertina Pereira Nunes, cantora da Companhia Negra de Revistas, em espetáculo do qual Pixinga participava como regente da orquestra. Os dois nunca mais se separariam — e jamais correu o menor rumor de aventura extraconjugal. Fidelidade era mais uma de suas qualidades.
Seria preciso muita imaginação para apontar defeitos em Pixinguinha. Pode a uca, ou o uísque, ter prejudicado seu trabalho e talvez a popularidade o tenha cercado de gente em demasia. Todos cabiam em seu coração. Havia também uma tendência a não manifestar opinião sobre política ou qualquer outro assunto polêmico. Apaziguar era sempre mais importante. Falar mal de alguém, nem pensar. Nada disso poderia, contudo, ser considerado defeito. Mais uma vez, era motivo de admiração.
E episódios se sucediam para que, sobre a imagem de Pixinguinha, pusessem uma auréola de brilho cada vez mais intenso. Internado no mesmo hospital onde se encontrava Albertina, a Beti, trocava o pijama pelo terno para visitar a mulher como se viesse da rua, de modo que ela não desconfiasse de seu estado enfermo. Restituído seu dinheiro por assaltantes que o reconheceram, pedindo-lhe desculpas depois de atacá-lo, levou-os para uma roda de choro regada a cachaça. Na missa de suas bodas de prata, deixou o filho ao lado da mulher, no altar, e assumiu o lugar do organista, que faltara, para dar música à cerimônia.
Vida como a de Pixinguinha não poderia deixar de ter final comovente, na sacristia de uma igreja, durante um batizado, numa tarde de fevereiro de 1973. Quando fechou os olhos, começou a chover, o que mereceu do padre o comentário de que morrera como Cristo. Do lado de fora, desfilava a Banda de Ipanema, que, diante da notícia, calou os tambores e se dispersou sem cumprir o trajeto oficial. Pixinguinha virou estátua, enredo de carnaval, ídolo centenário de um país quase sem memória.
Texto de Bruno Casotti publicado na "Revista Veredas", do Centro Cultural Banco do Brasil, ano 1, nº.13, jan.97. pp.7-9.Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
Bela homenagem ao Mestre Pixinguinha, Leopoldo!
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