Para que seja possível compreender, com a máxima clareza, as idéias que Nietzsche expressa em seu livro Assim falou Zaratustra (Also sprach Zarathustra), é necessário levar em conta todo o conjunto de sua filosofia - sem o que, o leitor neófito correria o sério risco de perder-se no estilo lírico-poético desta que é considerada uma das mais belas obras da literatura alemã. Singular, por sua forma e pelo desenvolvimento de suas idéias, Zaratustra representa o ápice de toda a doutrina filosófica de Nietzsche. Na verdade, o destaque dado a essa obra deve-se, em grande parte, à presença, no livro, de duas das mais importantes contribuições do pensamento nietzschiano: as idéias de super-homem e de eterno retorno.
De fato, foi a intuição do eterno retorno que levou Nietzsche a escrever o Zaratustra (como ele mesmo afirma em um livro posterior, intitulado Ecce Homo). Para sermos precisos, a concepção fundamental da obra - ou seja, a idéia de que tudo retorna inexoravelmente - data de agosto de 1881, mas a publicação do texto, na íntegra, dá-se apenas entre os anos 1884 e 1886. Para compreender, com exatidão, o sentido dessa idéia (tão facilmente associada a concepções religiosas ou místicas) de um retorno de todas as coisas, é necessário entender que, para Nietzsche, a afirmação irrestrita e incondicional da existência (no que ela tem de melhor e de pior) está diretamente ligada a esta idéia de que tudo se repetirá. “Não queira jamais uma coisa se não a quer por toda a eternidade”- assim poderia ser resumida a ética nietzscheana. Mas, tal idéia traz consigo um inconveniente: se as boas coisas retornam, também as más se repetirão. Foi por esta razão que Zaratustra chegou a adoecer: ele não sabia como evitar que o homem mesquinho e rancoroso retornasse. Como poderia o homem ser superado? Como seria possível fazer nascer o super-homem?
Para Nietzsche, a idéia de um eterno retorno pressupõe e complementa a do super-homem. Afinal, só um novo “homem” pode realmente afirmar a existência, ao invés de ultrajá-la em nome de valores superiores e metafísicos. Para o filósofo alemão, uma das maiores tendências do homem, ao longo de toda a sua história, foi a de desprezar o seu corpo e a própria vida terrena, em prol de uma existência “póstuma”. Desvalorizar a vida, desqualificá-la, torná-la um fardo por demais pesado - eis o que Nietzsche critica no homem rancoroso, no homem ressentido com as próprias limitações de sua condição humana. O super-homem, ao contrário daquele, representa o ultrapassamento desses sentimentos mesquinhos, representa o “sentido da terra”, o amor mais profundo à existência, o fim do niilismo (isto é, o fim do homem “cansado de querer” e do homem que “deseja o nada”). “Desejar o nada”, para Nietzsche, significa viver em função de um mundo que está para além de nossa percepção, ou seja, de um mundo supra-sensível. As forças religiosas e as superstições, de um modo geral, sempre representaram esse querer. Era preciso fazer com que os homens se desvencilhassem de seus corpos a fim de levá-los a atingir o mais puro estado de repouso (atitude nitidamente “contra-natura”, já que a vida se caracteriza pelo movimento). Mas também existem os que se cansaram do mundo metafísico e terminaram por “matar Deus” (Nietzsche, ao contrário do que se afirma, apenas anunciou esse fato). Para estes, a ciência e o “homem superior” (do qual falaremos mais adiante) ocuparam o lugar reservado à divindade. A vida perdeu, para eles, o seu sentido. Sozinho no universo, o homem desesperou-se. Não ousa sequer “querer”, está exaurido demais para desejar o que quer que seja. Estes são os dois momentos daquilo que Nietzsche chama de niilismo, mas ainda um terceiro episódio será necessário para fazer nascer o super-homem: o momento em que o homem deseja morrer, deseja ser superado. O super-homem está a caminho, é o que afirma Zaratustra nas últimas páginas do livro. Ele virá quando o homem afirmar a vida, sem buscar subterfúgios fantasmagóricos; ele virá quando o homem souber amar a existência sem depreciá-la, sem fazer dela um fardo que o oprime. Afirmar a existência e querer o seu eterno retorno é o que anuncia o super-homem. Mas, que não haja engano: o eterno retorno é seletivo, para Nietzsche. E será essa revelação que fará Zaratustra recuperar novamente sua saúde: o retorno é já uma afirmação; o que retorna não são as veleidades ou as fraquezas humanas, mas um “todo” que ultrapassa a condição mesquinha do indivíduo. Não se trata de um retorno do Mesmo, mas de um retorno da Diferença, um retorno do caos, da matéria que é infinita, retorno da vida, que não se extingue jamais.
Mas, passemos ao próprio texto: quem é esse Zaratustra? Sabemos, pelas idéias que expressa, que ele nada tem em comum com seu famoso homônimo, o profeta iraniano do século VII a.C. (também conhecido como Zoroastro) - que, ao contrário do Zaratustra nietzscheano, pregava o dualismo da existência (ou seja, a idéia religiosa dos dois mundos). O personagem de Nietzsche é um eremita, um homem que escolheu viver na mais profunda solidão das montanhas (“aos trinta anos de idade, deixou Zaratustra a sua terra natal...”). Por dez anos esteve em companhia apenas de seus animais, uma águia e uma serpente. A águia, que voa em amplos círculos pelo ar e a serpente, que se encontra sempre enrolada em torno de seu pescoço - sinal de uma amizade fraterna -, anunciam o eterno retorno. Não foi por acaso que Nietzsche uniu um animal que voa livremente a um animal rastejante . Eles representam a comunhão do céu com a terra, a afirmação da vida terrena - a única existente, para Nietzsche.
Uma apologia da existência - pode-se classificar assim esse livro que critica, na sua essência, o platonismo e a moral judaico-cristã. Ao platonismo - que tende a desvalorizar este mundo em benefício de um outro, perfeito e imutável - Nietzsche opõe a alegria e o prazer de uma existência imprevisível (a única possível para o homem). Ao cristianismo e às religiões de um modo geral, que chegam a um tal ódio pela existência que pregam a vida “póstuma” como a única e verdadeira existência feliz, ele traz a boa-nova do super-homem, aquele que recupera o “sentido da terra”, vivendo e morrendo por ela. “Enfermos e moribundos eram os que desprezaram o corpo e a terra e inventaram o céu e as gotas de sangue redentoras... De sua própria miséria, queriam libertar-se...” - afirma Zaratustra.
Ao completar dez anos de reclusão absoluta, Zaratustra resolve sair do cume de sua montanha para ir ter com os homens. Deveria ele descer às mais baixas profundezas, a fim de falar-lhes. Tal como o Sol, que diariamente o iluminava, Zaratustra queria ser, ele mesmo, uma luz para os homens. Queria lhes dar a esperança de uma vida nova; queria, sobretudo, anunciar o “renascimento” do homem. Mas, logo em seu primeiro contato, percebeu que a maioria não tinha ouvidos para os seus ensinamentos - sobretudo o “povo”, com o seu repugnante desejo de “rebanho”. O que dizer para aqueles que esperam por um guia, um pastor que lhes ensine que a vida não tem valor algum e que só há injustiça e podridão neste mundo? Como falar-lhes do super-homem, se eles não passam de ovelhas perdidas num pasto - a espera de seu redentor? “O homem é uma corda estendida entre o animal e o super-homem - uma corda sobre um abismo” - disse-lhes Zaratustra. Mas, o povo não entendeu o sentido de tais palavras. O povo não podia entendê-lo; estava por demais cansado de sua própria existência.
Zaratustra descobre, então, que seus ensinamentos não podem ser dirigidos à multidão. Não é possível, em hipótese alguma, ensinar-lhes a “morte do homem” - a morte da vida mesquinha, a morte do “meio-querer” e do homem que carrega, como um camelo, o fardo da existência. Não encontrou ali ouvidos bastante atentos e resolveu partir a procura de “seus amigos”. Enquanto proferia discursos, procurava-os - mas, difícil seria o caminho de Zaratustra. Como uma pesada gota de chuva anuncia a tempestade que se aproxima, Zaratustra deveria ser a gota e o raio que antecipariam a vinda do super-homem. Daí porque suas palavras continuaram tão pouco compreendidas pelos homens.
Para dar lugar ao super-homem, é necessário que o espírito humano passe por uma tripla metamorfose, que nos é descrita por Zaratustra: o espírito torna-se camelo, o camelo torna-se leão e, por fim, o leão torna-se criança. São estas as etapas, o longo caminho que só pode ser percorrido por poucos (não é sem motivo que o subtítulo de Zaratustra é “um livro para todos e para ninguém”). Segundo Nietzsche, o camelo é o “espírito de gravidade”, é aquele que carrega todo o fardo da existência, carrega o peso dos valores estabelecidos e de toda a moral vigente. O seu “sim” não é afirmativo; é um “sim” para tudo o que é peso e dor. Mas, chegando ao deserto, o camelo transforma-se em leão. O leão diz “não” a tudo o que até agora vigorou. O seu “não”, no entanto, é afirmador. Ele destrói todos os antigos ídolos, as “tábuas da lei”, os valores vigentes - é o momento máximo da crítica aos valores e à cultura. Mas, o leão precisa ainda transmutar-se em criança, para que a verdadeira afirmação apareça: o grande “sim” à vida. A criança representa o começo, um novo começo.
Zaratustra de Nietzsche é, na verdade, o anunciador, o profeta do super-homem. Ele é, de alguma maneira, seu pai, visto ter colaborado para o seu aparecimento. Mas, ele próprio não é o super-homem e nem mesmo seus animais representam o eterno retorno de maneira absoluta. Será preciso ainda que o grande “sim” seja proferido para que o retorno seja afirmativo, para que a existência seja desejada em todas as suas manifestações. A dor e a alegria pertencem à vida e ao homem; afirmá-las significa querer que a própria vida se repita. Alguns personagens de Nietzsche, no Zaratustra, acreditam amar a vida quando a tornam árida e sem alegrias. É o caso dos “homens superiores” que, num mundo sem Deus, substituíram os valores divinos pelos valores humanos - tão rígidos e opressivos quanto os anteriores. Na verdade, esses homens pretendem ocupar o lugar vazio, pretendem ocupar o lugar de Deus (que teria sido morto pelo “mais feio dos homens”). Mas eles são muito imperfeitos para isso, diz Zaratustra, pois não sabem rir e nem dançar. O verdadeiro criador é fundamentalmente alegre e afirmativo. O seu “sim” não é o do camelo; o seu “sim” é o da criança. É um “sim” inocente e puro. É o “sim” dionisíaco, o grande “sim” à existência como um todo. Somente o super-homem é o verdadeiro criador e o objeto de sua afirmação não podia ser outra coisa que o eterno retorno - assim falou Zaratustra...
Texto de Regina Schöpke adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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