Quadro geral da região montanhosa e deserta situada entre S. João Del Rei e a Serra da Canastra
Para ir de Paracatu e de lá a Goiás desviei-me do caminho mais direto a fim de visitar a Serra da Canastra, onde nasce o Rio São Francisco e que limita as comarcas de S. João dei Rei e Paracatu.
Para chegar a essa serra tomei a direção oeste-quarta-noroeste e andei cerca de 45 léguas. A região que percorri então forma uma espécie de crista e deve ser forçosamente muito elevada, pois se acha situada entre as cabeceiras do Rio Grande e as nascentes dos primeiros afluentes do São Francisco. Sabe-se, aliás, pelas observações barométricas de Eschwege, que a Fazenda do Vicente, localizada a quatro léguas da pequena cidade de Tamanduá, situada à beira da estrada, tem uma altitude de 551 metros acima do nível do mar, e que a vila de São João Batista, cinco léguas distante de Oliveira, onde parei, fica a uma latitude de 994,8 m.
Essa região é geralmente montanhosa, apresentando alternativamente pastos e matas. Existe mesmo uma densa floresta perto de Tamanduá. Ali o capim dos campos não é de tão boa qualidade quanto no distrito de Rio Grande, e é unicamente nas imediações da Serra da Canastra que se acha o capim-flecha, gramínea que caracteriza as melhores pastagens. Espalhadas pelos campos vêem-se árvores raquíticas e retorcidas, à semelhança do que vi na região entre o norte da Província de Minas e o Rio São Francisco.
É mais além do povoado de Formiga, lugarejo situado acerca de 24 léguas de S. João del Rei, que se encontram nessa parte os limites do sertão, mas muito antes a região já se mostra escassamente povoada. Entre a Fazenda do Capão das Flores, distante seis léguas e meia do Rancho do Rio das Mortes, e a do Capitão Pedro encontrei apenas uma única propriedade, num percurso de duas léguas e meia. No dia seguinte encontrei apenas uma pessoa no caminho e no outro rão vi absolutamente ninguém.
Existem ainda lavras em exploração nos terrenos mais próximos do Rancho do Rio das Mortes Pequeno e de São João del Rei. As dos arredores de Tamanduá e Pium-i, porém, estão agora completamente abandonadas. Ali, cultiva-se a terra, cria-se gado e cevam-se porcos. Logo depois de passar pela propriedade do Capitão Pedro, situada a nove léguas do Rio das Mortes, vi em todas as fazendas um grande número de suínos. São eles que constituem a principal riqueza dos arredores de Formiga.
Há uma luta constante nas propriedades contra esses animais, que em certas ocasiões se mostram de uma audácia bastante incômoda. Explicarei em poucas linhas quais os cuidados que eles recebem. Não se separam as fêmeas, os varões e os leitões, e todos ficam soltos ao redor da fazenda. Duas vezes por dia são alimentados com espigas de milho e de dois em dois meses recebem uma porção de sal diluído na água. De tempos em tempos são examinados para ver se têm feridas, as quais são tratadas com mercúrio-doce. Quanto aos porcos castrados para engorda, são tratados com mais cuidado, ficando presos durante o dia num curral e sendo à noite guardados num telheiro cujo chão é forrado com palha de milho. Recebem três rações por dia, sendo duas de milho, geralmente, e a última de fubá, inhame (Alocasia) ou carás ( Dioscorea alata). De quinze em quinze dias dão-lhes de beber um pouco de água salgada. Nas propriedades onde se fabricam queijos o sal é substituído por rações diárias de leitelho.
A raça de porcos mais comum nessa região é chamada canastra. Os porcos são geralmente pretos e me parecem ter as pernas mais compridas que os da França, o corpo mais curto e o dorso mais arredondado. Suas orelhas se mantêm eretas na primeira infância e são um pouco caídas nos adultos. Machos e fêmeas são castrados com a idade de um ano, sendo-lhes necessário mais um ano para engordar. Um porco médio dessa raça pesa, quando cevado, cerca de 6 arrobas. Os suínos são levados em varas à capital do Brasil, percorrendo três léguas por dia. Os homens que os conduzem são pagos à razão de 6.600 réis por viagem, sendo que o Rio de Janeiro dista 80 léguas do povoado de Formiga, que pode ser considerado como o centro produtor dessa região.
Os negociantes de Formiga compram os porcos nas fazendas das vizinhanças, onde são criados em grande quantidade, embora não lhes dêem grande importância. A acreditar no que me disseram, um desses marchantes despachara, ele só, vinte mil porcos em 1818.
Eu já disse que os lavradores da Comarca de São João del Rei eram mais desleixados com suas casas do que os fazendeiros dos distritos auríferos. É evidente que essa parte da comarca, mais afastada dos centros de civilização do que o resto da Província de Minas, não constitui exceção. A propriedade de Cachoeirinha, situada um pouco antes de Tamanduá, tem três léguas de comprimento por duas de largura. Vi ai uma quantidade considerável de gado vacum, de porcos e de carneiros. Seu proprietário, o Capitão-Mor João Quintino de Oliveira, vendera nesse ano, no Rio de Janeiro, porcos no valor de dois contos de réis. Era um homem educado e cuja mesa atestava de sobra a sua riqueza. Não obstante, a casa que ocupava era quase tão mal cuidada e modesta quanto as que eu vira em todas as outras fazendas. Ficava situada, como as senzalas, ao fundo de um vasto terreiro e rodeada por mourões que tinham a grossura de uma coxa e a altura de um homem, tipo de cercado muito em uso na região. Da varanda, bastante ampla, em cuja extremidade fora erguido um pequeno oratório, passava-se para uma grande peça coberta de telha-vã e de paredes sem caiação, cuja única mobília consistia em alguns bancos de madeira, tamboretes forrados de couro e uma enorme talha com um caneco de ferro esmaltado para retirar a água. Os poucos quartos que davam para essa sala eram pequenos e não apresentavam mobiliário mais variado. Depois de Tamanduá, principalmente, já nos limites do sertão, as casas da sede dos fazendas se compõem de várias edificações isoladas, mal construídas e dispostas sem ordem, no meio das quais dificilmente se distingue a residência do proprietário. Citarei a de Dona Tomásia, localizada entre o povoado de Pium-i e a Serra da Canastra. A propriedade era de extensão considerável e vi aí vários escravos, gado vacum e numerosos porcos. Entretanto, em meio a várias casinhas que serviam de celeiros e senzalas, a dona da fazenda ocupava uma miserável cabana construída sem os mínimos requisitos de estética e conforto, cujo mobiliário consistia apenas numa mesa e alguns bancos rústicos.
Desnecessário é dizer que os moradores dessas fazendas não se parecem em nada com os mineiros das comarcas de Sabará, Serro do Frio e Vila Rica. São homens grosseiros e ignorantes. Suas maneiras se parecem bastante com as dos nossos campônios da França, mas são muito menos ativos e joviais. Quero deixar anotado, ainda, que os lavradores dessa região mantêm o corpo bem aprumado, ao passo que os nossos homens do campo são em geral ligeiramente encurvados, conseqüência do fato de que estes lavram eles próprios a terra enquanto que os primeiros contam com os negros para substituí-los nesse trabalho ou se limitam a tratar do gado.
Embora esses homens vivam numa região longínqua e pouco povoada, não se encontram entre eles a generosa hospitalidade que é tão comum em outras partes da Província de Minas Gerais. Como exemplo disso, relatarei o que me sucedeu numa propriedade bastante próspera. A minha chegada mandaram colocar minhas bagagens num quartinho úmido e escuro, infestado de pulgas e bichos-de-pé (Pulex penetrans). Para não deixar embaraçado o filho da casa, com o qual eu viajara, não me queixei, indo trabalhar na varanda. Foram, porém, bastante gentis para não permitir que Firmiano pusesse o caldeirão no fogo, e me convidaram para jantar. Entretanto, não me foi servido o suficiente para satisfazer o mais moderado apetite. José Mariano e o índio ficaram completamente esquecidos, e teriam morrido de fome se não lhes houvesse sobrado um pouco de feijão da refeição da manhã. A noite esperei inutilmente que me oferecessem um leito, mas essa ideia não lhes passou pela cabeça. O quarto onde me tinham alojado estava de tal forma atulhado de bagagens e era infestado por tantos insetos que preferi mandar armar minha cama do lado de fora. Senti muito frio durante a noite e levantei-me de mau humor, resolvido a dar uma boa lição ao meu hospedeiro. Quando ele apareceu e me deu bom dia, perguntei-lhe como única resposta se sabia ler, pedindo-lhe que lançasse os olhos sobre a minha portaria (passaporte régio) À medida que ele ia lendo eu via seu corpo empertigar-se e sua atitude tornar-se respeitosa. "Não me tinham alojado estava de tal forma atulhado de bagagens e era infestado por tantos insetos que preferi mandar armar minha cama do lado de fora. Senti muito frio durante a noite e levantei-me de mau humor. resolvido a dar uma boa lição ao meu hospedeiro. Quando ele apareceu e me deu bom dia, perguntei-lhe como única resposta se sabia ler, pedindo-lhe que lançasse os olhos sobre a minha portaria (passaporte régio) À medida que ele ia lendo eu via seu corpo empertigar-se e sua atitude tornar-se respeitosa. "Não lhe mostrei esse papel ontem à tarde", expliquei quando ele terminou a leitura, "porque julgava que uma pessoa de bem não precisasse de uma ordem para abrigar decentemente um viajante que se comporta de modo digno. Quero esclarecer que a pessoa a quem o senhor permitiu que dormisse à sua porta, quando possui uma casa tão espaçosa, é um cavalheiro, honrado pela proteção especial do rei deste país." E como eu me achasse a par dos negócios do meu hospedeiro, acrescentei a essas palavras uma ameaça que deve tê-lo deixado extremamente preocupado. O pobre homem ficou petrificado. Desmanchou-se em desculpas e ofereceu-me a casa toda. Como único favor pedi-lhe que no futuro recebesse melhor os estrangeiros, e fiz questão de pagar as ligeiras refeições que fizera em sua casa.
Os agricultores passam a vida nas fazendas e só vão à vila nos dias em que a missa é obrigatória. A obrigação de se reunirem e se comunicarem uns com os outros, bem como o cumprimento das obrigações religiosas, impede-os, talvez mais do que qualquer outra coisa, de reverterem a um estado de quase selvageria. Não obstante, a utilidade dessas idas à paróquia seria bem maior se o agricultor pudesse tirar delas alguma instrução moral e religiosa. Os eclesiásticos, porém, não se dedicam a instruir os fiéis, e comumente escandalizam-nos por sua conduta irregular.
Nos países civilizados a ausência de ensinamentos religiosos e morais conduz a um rude materialismo, ao passo que naqueles que ainda não se civilizaram inteiramente essa falta geralmente leva à superstição. Assim é que os habitantes da região que descrevo agora acreditam em feiticeiros e lobisomens, e muitos chegam ao cúmulo de considerar heréticos os que se recusam a acreditar nisso.
Eu disse acima o quanto é útil para os agricultores a oportunidade que têm de se reunirem e se comunicarem uns com os outros, mas devo acrescentar que as vantagens dessas reuniões nos lugarejos e povoados ficam infelizmente anuladas pelos perigos que ali os esperam. A população permanente das vilas é com efeito em grande parte composta, em todo a Provincia de Minas, de homens ociosos e de prostitutas, e nos ranchos dos mais humildes lugarejos presencia-se uma vergonhosa libertinagem, e com um impudor, às vezes, de que não há exemplo nas nossas cidades mais corrompidas.
Companheira de todos os vicios, a indolência é uma das principais chagas dessa região. Fiz esforços inauditos para encontrar um tocador numa extensão de 60 léguas, e no entanto existe ali uma multidão de homens pobres e sem ocupação! Os que são casados cultivam terras alheias e se resignam a trabalhar alguns dias para viver sem fazer nada o resto do ano. Os solteiros, que são em menor número, perambulam de casa em casa, vivendo à custa de compadres e comadres, ou então saem para caçar, ausentando-se durante meses. Precisam vestir-se, mas qualquer trabalho insignificante lhes basta para formar o seu humilde guarda-roupa, que se compõe de duas camisas e um número igual de calças de algodão grosseiro. Além do prazer da ociosidade, eles encontram outra vantagem nessa vida nômade e independente: a de se subtraírem a todas as obrigações cívicas, e em especial ao serviço militar. No sertão as autoridades não podem exercer nenhuma vigilância, as leis perdem a sua força, e muita gente para aí acorre de outras partes da província, seja para escapar à perseguição da Justiça, seja simplesmente para usufruir de uma liberdade ilimitada.
Texto de Auguste de Saint-Hilaire, tradução de Regina Regis Junqueira em "Viagem às Nascentes do Rio São Francisco", Editora Itatiaia, Belo Horizonte; Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo; 1975, capítulo VII pag. 73-77.Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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