2.13.2016

A TRAJETÓRIA DO FRIGORÍFICO ANGLO DE PELOTAS




Os antecedentes do Frigorífico Anglo estão em 1918, quando a União dos Criadores do Rio Grande do Sul, a Associação Comercial de Pelotas e outros investidores decidiram criar um frigorífico em Pelotas, conforme concluiu o economista Eugênio Lagemann (1985) ao estudar a falência do Banco Pelotense. Foi, justamente, esse banco, o principal acionista a custear o local para o empreendimento onde antes se localizava a charqueada de Alfredo Braga, herdada de Felisberto Gonçalves Braga, ambos charqueadores. O então prefeito, Cypriano Rodrigues Barcellos, em 1914, comprou o terreno para fazer o Asseio Público e um frigorífico que fosse capaz de dar vazão à indústria da carne, economia fundadora da cidade. Assim, teve início a história do complexo industrial da Companhia Frigorífico Rio Grande, o primeiro empreendimento de capital nacional no Rio Grande do Sul, que se arvorou na concorrência com os quatro frigoríficos estrangeiros instalados no Estado desde 1917 (JANKE, 2011, p. 46).

O empreendimento previa a instalação de um frigorífico completo, contendo um ramal ferroviário, um trapiche, oficinas, depósitos e câmaras frias, constituindo uma fábrica grande para os padrões da época (MICHELON, 2012), com capacidade para abater quinhentas reses por dia e com condições para conservar frutas, laticínios e demais produtos perecíveis. Problemas de diferentes ordens, sobretudo econômicas, resultariam na venda do complexo para o grupo inglês Vestey Brothers, em 1921, pouco depois de concluída a obra. Em matéria publicada no Almanach de Pelotas (1921, p. 291-293) informa-se que a construção do frigorífico foi feita por dois construtores de Buenos Aires, Scott e Hume, responsáveis pela execução de vários outros frigoríficos na Argentina. Descreve-se o abate e o processamento da carne correspondendo a um frigorífico dentro dos padrões que o capital estrangeiro estava utilizando nas suas unidades o que equivalia ser exemplo da técnica e tecnologia mais atual em abate e refrigeração de carnes. Em 1920, o frigorífico abateu 2.949 animais, dos quais 1.034 foram empregados na produção de charque. O restante, diz a matéria, foi exportado para a Inglaterra (17 dez. 1943, p. 8).

Em 14 de março de 1921, foi lavrada a escritura e, em novembro do mesmo ano, a fábrica começou a funcionar com o nome The Rio Grande Meat Company. Em 1924 mudou o nome para Frigorífico Anglo de Pelotas, já em funcionamento parcial, que se manteve penosamente até 1926, quando foi desativado. Constatou-se, em pesquisa bibliográfica, esse mesmo procedimento em unidades na Argentina, ou seja, os grupos estrangeiros adquiriam fábricas e as desativavam até momento oportuno. Tais empreendimentos implicavam na compra de unidades já instaladas em lugares que atendiam quesitos básicos: proximidade com um porto marítimo, possibilidade de numerosa mão de obra no entorno e acesso à matéria prima. As aquisições garantiam que em momentos de farta produção e exportação, houvesse a possibilidade de ativar rapidamente essas unidades. Enquanto essa demanda não surgia, o grupo mantinha a unidade desativada, o que no caso pelotense foram 15 anos. Só em 1942, com a demanda de alimentos para a Europa, durante a Segunda Guerra Mundial, começaram as obras de ampliação e adequação do frigorífico, para torná-lo uma unidade produtiva complementar aos demais já existentes no Uruguai, Argentina e, mesmo, no Brasil. Em 17 de dezembro de 1943, a unidade foi inaugurada, consistindo na maior realização industrial da cidade, conforme notícia publicada no jornal Diário Popular (5). Ao longo dos anos, novos prédios foram construídos, modernizados e adaptados para atender as exigências da inspeção sanitária e atender aos novos processamentos e produtos, até que em meados dos anos 1970 a disputa pelo mercado da carne, a insurgência dos industrialistas nacionais contra os trustes estrangeiros e as exigências na qualificação da industrialização da carne, promoveram o declínio do investimento estrangeiro no Brasil, momento em que algumas empresas estrangeiras começaram a deixar o país como resposta ao crescimento do capital nacional no setor.

No final dos anos de 1980 a produção do Anglo vinha diminuindo de tal modo que a fábrica foi sendo desativada. De acordo com o depoimento do ex-trabalhador Jesus Rottman (6), mantinha-se, apenas, a industrialização de carne, de seus derivados, de frutas e de legumes. Nesse período, o Anglo foi fechando todos os seus escritórios no Rio Grande do Sul. O grupo inglês Vestey Brothers, detentor da bandeira Anglo, encerrou suas atividades vendendo suas unidades daquele momento até 1993. O Frigorífico Anglo de Pelotas foi desativado em 1991 (MICHELON, 2012, p. 62), embora, de acordo com o depoente supracitado, em 1990 cessaram todas as atividades, ficando para o ano de 1991, o desmanche dos setores para venda ou transferência de material para a unidade de Barretos, em São Paulo. Supõe-se que o arquivo da fábrica tenha sido enviado à Barretos na ocasião. Fez-se tentativas para localizar a documentação, porém, a notícia mais crível é de que quando Anglo de Barretos foi vendida para o grupo JBS, dono da Friboi, a documentação foi evadida do Brasil. Em contato com o grupo Vestey Brothers, a informação conseguida nega a existência dos documentos das unidades já encerradas. Levantou-se a hipótese de que a documentação brasileira se encontraria, em partes, no arquivo uruguaio de Fray Bentos. A verificação deverá ser in loco. O acordo de cooperação entre os pesquisadores brasileiros e uruguaios, que franqueia a pesquisa no acervo do Museo de La Revolución Industrial (7).

No período do fechamento, que foi processual, o complexo fabril passou por um período de esvaziamento. As máquinas e equipamentos ainda não obsoletos foram encaminhados para as unidade de Curupi, Goiânia e de Barretos (8). Os documentos saíram da fábrica e tomaram rumos desconhecidos ou supostamente foram para Barretos, como já dito anteriormente. Parte do maquinário e de instalações mecânicas sem uso foi vendida como sucata. Outra parte, como os compressores, mesas rolantes, caldeiras e máquinas aproveitáveis para a planta fabril depois que o Anglo foi adquirido por uma outra empresa, foi utilizada parcialmente por um curto período.

No final de 2005, a Fundação de Apoio Universitário Símon Bolívar comprou da Casarin Empreendimentos o complexo fabril inativado e doou parte das construções para a Universidade Federal de Pelotas que, em 2006, iniciou as obras de adequação dos edifícios para receber seu novo campus universitário. Na ocasião, o complexo já estava protegido e constava no Plano Diretor da Cidade de Pelotas bem como estava listado no inventário do Patrimônio Cultural com proteção nível 2.

A despeito da proteção, as obras para adaptação das instalações em salas de aula, laboratórios, biblioteca e demais dependências acadêmicas e administrativas, alteraram significativamente a aparência das edificações. Algumas partes de máquinas, que ainda restavam nos prédios, foram retiradas de seus locais e desmanchadas. Em documento realizado na visita técnica à Fray Bentos, vê-se a casa de máquinas completa. Junto ao campus, havia o projeto de um shopping center, à esquerda de quem entra no portão, projeto este que não se concretizou. No entanto, a empreiteira que adquiriu o complexo derrubou parte do prédio das conservas. Tal como consta na documentação sabe-se o tamanho das salas e essa pesquisa logrou identificar as funções que tinham durante os anos 1980.

Com as supressões ocorridas, faz-se ilegível o conjunto no todo. Alguns vestígios bastante significativos para este tipo de indústria, como os currais, a rampa de acesso à sala de abate, as câmaras frias, entre outros, foram descaracterizados ou destruídos. Entre os prédios colocados abaixo, do ponto de vista da memória coletiva, o mais importante foi o do setor de conservas, cujo frontão exibia o nome Anglo pintado em letras vermelhas e podia ser visto desde a ponte que demarca o limite dos municípios de Pelotas e de Rio Grande. Antes de ser demolido, logo após a aquisição, a Universidade Federal de Pelotas substituiu o nome Anglo por UFPel. Conforme as faculdades e a administração central foram se instalando no local, alguns projetos surgiram em prol da história da fábrica e em 2013, um estudo feito pelos autores desse trabalho levantou o patrimônio cultural da universidade, dando especial ênfase ao patrimônio industrial. Neste interim, o complexo do Anglo de Fray Bentos era apresentado para inscrição na lista do patrimônio mundial na categoria paisagem cultural.

Notas.

(5) Inaugura-se hoje o Frigorífico Anglo. Diário Popular. Pelotas, 17 dez. 1943. p. 8.

(6) Depoimento do Sr. Jesus Miguel Rottman, administrador geral, em 28 jul. 2015. Esta mesma informação foi apresentada pelo Sr. Silvio Cavalheiro Paulo em 17 out. 2014. Os depoimentos deste ex-trabalhador foram retomados em entrevistas sucessivas dado o fato de que trabalhou no Anglo Pelotas de 1957 a 1987. Nos anos seguintes, já aposentado, prestou serviços para a empresa na qualidade de consultor. Acompanhou o encerramento da empresa em 1991 e Iniciou como aprendiz e especializou-se na manutenção das máquinas, razão pela qual conhecia detalhadamente todos os setores. Visitou o Campus Porto, assim inicialmente chamado o complexo ocupado pela Universidade Federal de Pelotas, em companhia dos autores da pesquisa várias vezes e auxiliou a compreender como a intervenção no segundo piso descaracterizou a planta original da sala do abate. Dotado de excelente memória, contribui para a identificação dos setores ao longo do prédio e registrou o período no qual houve a alteração da sala de abate para adequar-se às exigências das normas de exportação. Ainda, no presente deste relatório, contribui com a equipe na indicação de depoentes.

(7) Que ocorrerá quando houver recursos para que uma equipe do Brasil possa desenvolver o trabalho de levantamento dos documentos, haja vista que os documentos do Museo não estão inventariados e necessitam ser identificados e separados no momento da busca. Na visita prévia, o levantamento inicial indicou a necessidade de dois pesquisadores em tempo integral, por um período de 15 a 20 dias, para o levantamento das atas e das plantas. Outros documentos necessitam de tempo maior.

(8) Depoimento do Sr. Silvio Cavalheiro Paula, chefe da mecânica, em 29 jan. 2015.

Referências

JANKE, Neuza Regina. Entre os valores do patrão e os da nação, como fica o operário: o Frigorífico Anglo de Pelotas: 1940-1970, Pelotas: Cópias Santa Cruz, 2011.

MICHELON, Francisca Ferreira. Sociedade Anônima Frigorífico Anglo de Pelotas: o trabalho do passado nas fotografias do presente. Pelotas: Ed. da Universidade Federal de Pelotas, 2012.


Excertos do texto de Francisca Ferreira Michelon (1) e Ubirajara Buddin Cruz (2)  publicado na "Revista Memória em Rede",UFPEL, Pelotas, v.8 n.14 jan/jun 2016 pp.181-186. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa. As fotografias que acompanham o texto foram suprimidas.

(1)  Doutora em História, Professora do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural, Universidade Federal de Pelotas, RS, Brasil - 

(2) Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural. Universidade Federal de Pelotas, RS, Brasil - 

1 comment:

  1. A presença britânica foi e é grandiosa em Pelotas durante todo o século XX. No século XIX em Pelotas já tivemos nos anos 40 e 50 a presença de imigrantes ingleses, irlandeses e escoceses e sem dúvidas está bem registrado a imigração de britânicos na cidade pelotense no ano de 1852 na formação da Colônia D Pedro II instalada em Monte Bonito e Capão do Leão. Até hoje destacadamente existe o sobrenome britânico Sinnott - referenciando a ETA Sinnott em Pelotas. Encerrando, o Castelo ou cassarão da Baronesa é chamado assim por causa que a sua proprietária era filha de ingleses, a senhora Hartley, esposa do barão Maciel. MAGNIFICO foi e é a presença britânica em Pelotas e no RS. Meu e-mailç: oscarwother@live.com

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