3.27.2016

COZINHA MINEIRA, PATRIMÔNIO PAULISTA


Minas Gerais canta a originalidade mineira do tutu de feijão e de outras iguarias de igual sabor. Ledo engano: trata-se da velha cozinha paulista espalhada pelo Brasil por bandeirantes e tropeiros.

"Pela madrugada, iniciando o dia, o menino armava a trempe e acendia o fogo. Punha o toicinho para frítar na panela. O caldeirâo vinha do outro fogo, com feijão cozido (...) Frito o torresmo, era retirado. Repartia a gordura, colocava sal com alho, fritava, pegava o torresmo com a colher, punha no caldeirão de feijão, bem amassado com farinha. Era o 'virado' que se usava a engolir com café pelo meio."

Esta cena parece uma típica representação da história de Minas. Um estudioso da cozinha das Gerais, Eduardo Frieiro, não vacilaria em designar a cena como mineira, pois diz em seu clássico "Feijão, Angu e Couve". 'Iguaria incomparável para o paladar dos mineiros, e o mais mineiro dos pratos, é o tutu de feijão. O mais vernáculo é feito de feijão mulatinho, o qual, depois de cozido, se engrossa com farinha de mandioca ou de milho e é servido com torresmos'.

"Virado" ou "tutu", a cena acima não é mineira: é paulista, colhida em depoimentos de velhos caipiras da região de Taubaté, por Tom Maia e Tereza "Regina Maia, em "O Folclore das Tropas, Tropeiros e Cargueiros do Vale do Paraíba". Como paulistas são as descrições mais antigas da comida levada pelos bandeirantes e outros viajantes da capitania de São Paulo, desde o século XVI, em que a presença de feijão cozido, farinha e carne de porco é fundamental.

Um mineiro poderia argumentar: Bem, mas o lombo de porco com tutu ...é só nosso, e sair cantando a narrativa poética sobre o delicioso prato feita por um tal Braga, capixaba, citado por Carlos Drummond de Andrade: "(...) nós todos sentíamos, no fundo do coração, que acima de tudo pairava o divino lombo de porco com tutu de feijão. O lombo era macio, e tão suave, que tosos imaginamos que o seu primitivo dono devia ser um porco extremamente gentil, expoente da mais fina flor da espiritualidade suína (...). É inútil dizer qualquer coisa a respeito dos torresmos. Eram torresmos trigueiros como a doce amada de Salomão, alguns loiros, outros mulatos".

A veia poética mineira é muito mais encantadora do que as passageiras descrições sobre a rotina de uso do lombo do porco, tanto em São Paulo como no Rio de Janeiro, feitas, por exemplo, por Debret,em 1817,ao citar um negociante abastado que junta um lombo à "refeição simples, repetida invariavelmente todos os dias, de feijao e farinha. Ou pelo botânico Frei José Maria da Conceição Veloso, que, em 1792, fala dos "toucinhos e carnes de porco que descem de cima da serra onde está a cidade de São Paulo, e compram-se a 600 réis, 800 réis, a arroba. Ou, ainda, pelo mineralogista João Manso Pereira. que. em 1798, estando em São Paulo, aponta para "a criação de porcos, cujas carnes e toucinhos vão vender ao Rio de Janeiro".

Mas a história é mais antiga, pois desde o século XVI a nascente sociedade da Capitania de São Viceme tinha no "virado" de feijão, o pratro básico de sua cozinha. Todas as narrativas apontam para esse povo pobre do planalto paulista, morador do entorno da vila de São Paulo, dado ao serranismo e ao bandeirismo. Povo sempre em viagens e deslocamentos, que precisava de uma comida fácil de transportar e guardar em embornais e lenços: o "virado" ou "farnel" podia ser de feijões com pouco caldo, farinha de mandioca ou de milho, e alguma carne desfiada de porco, ou de galinha.

Segundo Ernani da Silva Bruno," a criação de galinhas e de porcos parece que se desenvolveu logo em São Vicente e no porto dos Paros" (na atual Santa Catarina). nos tempos mais primitivos da fundação da capitania. É claro que a maior parte do passadio dos primeiros habitantes, principalmente dos que subiram o planalto e se uniram às cunhãs indígenas na esteira do povoador João Ramalho, era o da culinária milenar dos tupis: feijão, milho e "produtos da terra" ou "prato de bugres".

já Sérgio Buarque de Holanda aponta que os primeiros paulistas se alimentavam "não só de cobras e outros bichos que rastejam, mas ainda de sapos, ratos, raízes de guaribá, grelos de samambaia (...)" e nas mesas rústicas, rolavam também iguarias exóticas muito apreciadas, como os 'vermes de taquara, formigas torradas e outros "dos mais imundos animais". Entretanto, estabelecida a rotina paulistana das pequenas e médias propriedades que pontilhavam em torno dos vales do Tietê e do Tamanduatei, cristalizou-se já no início do século XVII o cotidiano alimentar que hoje é conhecido como "comida caipira" ou, nas Alterosas como "cozinha mineira".

Porco e Milho

O cronista Gabriel Soares, em 1587, fala da importância da criação de porcos na terra vicentina, "de cujos couros se faziam botas". Poucas décadas depois Frei Vicente do Salvador reafirmava que as carnes suínas eram ali mais gordas que no mundo ibérico. principalmente as dos "que se sevam com milho zaburro e com pinhões". Os pinhões quase desapareceram, mas o milho dos índios só fez crescer. Uma civilização do milho é um dos títulos de "Caminhos e Fronteiras" de Sérgio Buarque, onde se encontram os inúmeros produtos desse vegetal na vida paulista colonial: Farinha, fubá, canjica, broas, cuscuz, biscoitos, pipocas, aluá, aguardente, curau, pamonhas, etc.

Algum estudioso da cultura mineira dirá: hoje, quando se chega a uma hospitaleira casa de Minas, pode-se comer uma coisa muito peculiar: : a "canjiquinha" feita da quirera do milho com costelinhas de porco cozidas. A quirera,ou seja, o milho passado grosseiramente no pilão, quebrado mas não reduzido a pó, já em a forma preferencial do milho em misturas pelos paulistas setecentistas. O milho completamente moído, ou fubá, era deixado para o angu dos animais ou dos escravos.

A reunião porco-milho em nossa história sempre foi algo extremamente eficiente do ponto de vista da máxima utilização dos recursos por uma população rural humilde: o homem come o milho, o porco come o sabugo, os excrementos de ambos adubam a terra que dá o milho. o homem come o porco e aproveita todos os seus componentes.

Ah! pode-se argumcntar: mas e a tradicional linguicinha caseira de Minas? Pois Otoniel Mota, no seu "Do Rancho ao Palácio", se refere ao século XVII paulista: "A carne de porco era tanta que a linguiça se vendia às varas. Belos tempos!"

" República do Pão de Queijo"

Na verdade, além de se valer da poesia e de bons estudos históricos e etnográficos para afirmar como seu patrimônio pratos corriqueiros no Centro e no Sudeste do Brasil, os mineiros exerceram uma interessante atitude política na valorização de sua tradição cultural, que tem como um dos eixos a cozinha.

Foi em 1985, o mineiríssimo Ziraldo Alves Pinto, presidente da Funarte do Ministério da Cultura, ocupado por sua vez pelo filho das Gerais José Aparecido de Oliveira, nomeado pelo mais mineiro dos políticos, Tancredo Neves,lançou o projeto Broa de Milho visando a criação de centros de estudo da culinária brasileira. Em Minas, o governador Hélio Garcia assinou no mesmo ano a criação de um grupo executivo para o projeto Culinária Típica Mineira. Quem nos conta esse caso é afilha de Uberlândia Mônica Chaves Abdalla, que aduz uma série de interessantes argumentos em seu livro "Receita de Mineiridade" para a caracterização das iguarias na mentalidade e no imaginário de seu povo, bem como da cozinha como uma criação intelectual ds elites da Mantiqueira.

As elites que procuram se afirmar em momentos de sua história buscam sempre santificar valores que dizem respeito a um passado mítico  e glorioso. Os franceses com a Revoluçáo de 1789, os gaúchos com as correrias pela campina na Farroupilha, os pernambucanos com as batalhas no tempo dos holandeses. Para Minas, o século XVIII com os esplendores do ouro, é um paradigma: afinal, eles tiveram durante 80 anos a produção da maior quantidade de ouro da América até então. Isso tudo desenvolvendo a vida urbana, e a beleza de seu patrimônio histórico.

Agora, trata-se de fazer crescer esse valor com a culinária, que não só é muito boa como vem sendo exportada para o Brasil pelos restaurantes. Só que nas pequenas cidades do interior de São Paulo, a maioria dos restaurantes com alguma qualidade serve a mesma comida. Pois a "cozinha caipira", esquecida pelo cosmopolitismo da elite paulista, é que foi transplantada para Minas desde o final do século XVII.

De São Paulo a Minas

Os bandeirantes paulistas, cansados de quase um século e meio de matanças, apresamento e escravização de índios, resolveram, no final do século XVII, procurar riquezas minerais ao norte da Capitania de São Vicente. Houve até estímulo oficial, com alguns editais régios ordenando a procura; e o príncipe regente de Portugal, D. Pedro, solicitou ao bandeirante Fernão Dias Pais que pesquisasse a região, onde, segundo a lenda, haveria prata e esmeraldas na lendária Serra de Sabarabuçu.

Essa região, onde hoje temos Minas Gerais, pouco povoada por tribos indígenas, apresentava como dificuldade de acesso o Maciço da Mantiqueira, dominado pela Serra do Espinhaço.

A expedição de Fernão Dias partiu de São Paulo em 1674, contando com a presença de vários sertanistas, como Manuel de Borba Gato, Matias Cardoso de Almeida, Francisco Pires Ribeiro, entre outros. Esta bandeira foi a responsável pelo reconhecimento dos sertões mineiros. Seguindo seu rumo em 1693 finalmente, em 1693, foi descoberto ouro pela bandeira de Antonio Rodrigues Arzão.

Daí em diante inicia-se o delírio da corrida do ouro: milhares de pessoas, inicialmente paulistas e depois de toda parte, precipitaram-se para as faisqueiras dos rios mineiros, enlouquecidos de cobiça. Levavam para comer o mesmo farnel rotineiro de milho e feijão como base. Mas a faina do ouro ocupava todos os braços e todas as atenções, e o descaso com o planejamento alimentar levou a uma terrível escassez: a falta de comida chegou a tal ponto que "houve um tal que matou o seu companheiro para lhe toamr uma pipoca de milho"

Muito ouro, pouca comida: o aumento de preços foi astronômico. Por volta de 1710, Antonio encontrou uma galinha vendida por quatro oitavas (equivalente a 14,4 gramas) de ouro, uma espiga de milho por quase dois grams e um barrilote de cachaça por 360 gramas do metal.

Ficou claro que vender gêneros para os mineradores tornou-se frequentemente mais rendoso do que encontrar o minério. Num primeiro momento, quem tinha mais condições para isso eram os paulistas, que possuiam uma agricultura organizada no Vale e também nas proximidades dos "pousos" que passaram a pontilhar os caminhos das Gerais. Nos próprios núcleos auríferos, como Vila Rica, não sobrava tempo nem espaço para a plantação, numa terra que já não era tão boa. E, para complicar, o governo português proibiu a agricultura nessa área em que tanto lhe interessava extrair os ricos tributos do ouro.

Assim, São Paulo passou a ser o grande centro abastecedor de gêneros para as Gerais, seguido logo depois pela Bahia e pelo Rio de Janeiro. Como diz Mafalda Zemella em seu estudo sobre o abastecimento de Minas no século XVIII, "as vilas paulista sacrificaram seu próprio abastecimento para mandar às minas boiadas, toucinho. aguardente, açúcar, panos, calçados, drogas e remédios (...) além de artigos importados como sal, armas, azeite, vinagre, vinho, etc. (...). Ampliaram-se as lavouras".

Uma rotina mercantil agitou a Colônia. Para subir com inúmeros artigos as dificeis gargantas das Alterosas, em necessário ter mulas. Pois desde o norte do Paraná até o Rio Grande do Sul, estabeleceu-se uma imensa produção de muares, que eram negociados na Feira de Sorocaba antes de subir para as Gerais. As tropas de mulas engendraram o tipo humano "tropeiro", comedor do feijão que leva seu nome e é reivindicado por mineiros e gaúchos, mas, como vimos é originalmente paulista.

Texto de Ricardo Maranhão publicado na revista "História Viva", ano I, nº 1, novembro de 2003, excertos pp. 84-87. Adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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