3.18.2016

NO TEMPO EM QUE FALTAVA CARNE NO BRASIL



Diante da fartura de carne no mercado, atualmente, parece incrível lembrar que houve uma época em que não havia tanta oferta na praça. A população sofria com problemas de abastecimento e o governo passava aperto para não deixar faltar o bife acebolado na mesa dos brasileiros. Naquele tempo, a carne pesava demais no custo de vida. O país importava mais do que exportava. O boi era tudo. Bastava falar em carne, que dava manchete no jornal, conta Carlos Viacava, testemunha dessa época, como Secretário do Ministério da Fazenda na gestão de Delfim Netto (1967 a 1974) e diretor do Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil, até 1985. Viacava diz que a disputa entre os frigoríficos era acirrada e havia um conflito permanente entre a tribo organizada, que pagava os impostos, e a que sonegava. Em uma fase em que o ICMS bateu 17%, lembra-se de uma cena em que Geraldo Bordon, inconformado, reclamava com Delfim Netto: É como eu colocar 100 bois na sua frente e dar 17 para o Governo.

Bordon também é lembrado por Geraldo Porcel, ex-Presidente do Sindicato do Frio e contemporâneo de Viacava, como o "capitão da carne" naquele momento da história. Nas horas mais difíceis, ele dava um jeito e não deixava que os abates fossem interrompidos. Geraldo Bordon merecia uma estátua feita pelos pecuaristas, pelo tanto que fez pelo setor, diz Porcel. O problema recorrente no sindicato, em sua gestão, consistia em lidar com os períodos de safra e entressafra, para manter a regulagem dos estoques: se ameaçasse faltar carne, o pau comia!

A crise de abastecimento mais terrível, no entanto, aconteceu durante o governo José Sarney. Com o Plano Cruzado, em 1986, Sarney tirou três zeros de nossa moeda, decretou o fim da inflação e congelou os preços. O Plano, lançado em fevereiro, resistiu até o meio do ano. No segundo semestre, começou a faltar feijão, arroz, leite e, para desespero geral, a carne vermelha. Embora houvesse frango e peixe à vontade, carne, para o paladar brasileiro, é de boi. A estupenda reação do povo a favor do Plano fez coisas dignas de nota: pessoas comuns se sentiam indignadas com a quebra das regras, a ponto de fiscalizar e fechar supermercados, denunciar pequenos negociantes porque haviam subido o preço de alguma quinquilharia, fazendo com que um monte de gente fosse parar na cadeia, levados pela 'deusa' da época, a SUNAB (Superintendência Nacional de Abastecimento), lembra a historiadora catarinense Urda Alice Klueger.

Quem teve de "fugir" para não ser preso, como Leopoldo Costa, então diretor de produção do frigorífico Anglo, lembra-se bem dos "fiscais do Sarney". Tudo porque um endereço do Anglo, na Mooca, em São Paulo, vendia cortes especiais, que justificavam um preço um pouco mais alto. O gerente de nossa loja foi preso, a [repórter] Glória Maria contou o caso na TV Globo. Foi um bafafá tão grande, que eu e o Presidente do Anglo, Olivier Cunningham, na época, passamos dois dias trancados em um flat, para evitar o flagrante, recorda-se Costa, hoje autor do blog "Stravaganzà: em que publica artigos sobre o setor da carne, onde trabalhou por 30 anos.
 ·
No mesmo período, o governo chegou ao ponto de sobrevoar fazendas de helicóptero, apreendendo gado e mandando para o abate- com a cobertura do Jornal Nacional. Só que eles não sabiam reconhecer o gado de corte. Levaram vacas leiteiras, novilhos, causando uma confusão danada, que rendeu processos no futuro, diz Costa.

Na tentativa de aplacar a crise do abastecimento, o governo Sarney protagonizou ainda o polêmico caso da importação de um lote de carne da ex-União Soviética, que chegou por aqui com suspeita de contaminação, por causa do recente acidente radioativo de Chernobyl, e deu pano para manga. A tal carne europeia, que os europeus não queriam, desembarcou no porto de Itajaí, em Santa Catarina. E, apesar da fama de contaminada, causou disputa: políticos de esquerda do Vale do Itajaí foram ao porto, exigir que a carne ficasse no Vale, e não fosse enviada para Curitiba, segundo estava programado. Houve pega entre polícia e políticos, e alguns foram em cana, bem como as coisas funcionavam num país que recém saíra de uma ditadura e não sabia como agir. Outro dia, ainda ouvi uma conversa de que tal carne ainda está congelada em algum frigorífico, diz a historiadora Urda.

Leopoldo Costa também se recorda do escândalo, porque nesse caso, atuava como diretor comercial do Frigorífico Sola, em Três Rios (RJ), um dos que entrou na partilha da encomenda da carne, para produção de corned beef Lembro que abrimos uma vala do tamanho de um caminhão, no terreno do frigorífico, para incinerar e enterrar os ossos da carne de Chernobyl, conta.

Diz a lenda, no entanto, que parte do "chernobife': como ficou conhecido o episódio, foi liberada por alguns frigoríficos e caiu no mercado. O fato é que Sarney e seu slogan "Tem que dar certo': causaram o maior reboliço. A lembrança da historiadora Urda Kluger,-sobre a festa de fim de ano da empresa em que trabalhava, mostra o quanto a carne deixou saudades naquele 1986. Na festa serviram camarão, pernil, peixe, frango, mas estávamos todos tão obcecados com a falta de carne, que quando o garçom apareceu com uma travessa de carne de boi e deu um pedacinho para cada um, só um pedacinho, para que todos provassem, houve uma ovação no salão, e o camarão, e o pernil, e tudo o mais, deixaram de ter importância. No fim, foi um tempo divertido. Há tantas histórias engraçadas por causa da falta de carne, que daria para escrever um livro, diz ela.

Texto de Rosane Queiroz em "Brasil de Carne e Osso", ABIEC, Abook Editora, São Paulo, 2015, excertos pp.178 e 180. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

No comments:

Post a Comment

Thanks for your comments...