4.04.2016

AS COZINHAS DA ARGENTINA


As cozinhas do Velho e do Novo Mundo convivem nos lares argentinos, perpetuando uma proposta forjada no encontro entre as cozinhas indígenas e os novos produtos e hábitos culinários, trazidos pelos primeiros colonizadores. Alguns séculos depois, acompanhando as correntes migratórias que atravessaram o século XIX e as primeiras décadas do século XX, chegariam novas fontes de inspiração, nascidas na Itália e nas comunidades judaicas uo centro e do leste da Europa.

A carne do guanaco, da vicunha, os peixes como o dourado. e a traíra, a abóbora, o milho, a mandioca, os feijões, o aji ou as batatas são apenas uma parte do legado alimentar dos antigos habitantes destas terras. As massas, as pizzas, os sabores mais representativos da culinária tradicional italiana, alguns pratos de origem sefardita (judeus ibéricos) e  outros baseados nos preceitos kosher (hebraicos), que acompanham os imigrantes da Itália e do centro da Europa, dão nova vida à culinária local.

Vamos encontrar uma combinação de cozinhas, ideias, usos e costumes que se diferenciam das demais cozinhas do Cone Sul. Cosmopolita como poucas, mestiça, alegre e vital, a gastronomia argentina abre-nos as portas da cozinha mais "europeia" do continente americano.

O noroeste do país recolhe boa parte do legado culinário das culturas pré-coloniais. A alfarroba, pouco conhecida no Brasil, mas de uso muito diverso, o milho, o pimentão ou a batata mantem vivo o gosto por grãos, frutos e raízes que se mostram com orgulho nas humitas, nos tamales, nas empanadas ou na mazamorra. Esta última, uma singela papa de milho, leite e açucar (tambem chamada api, noutros locais) que se converteu numa das sobremesas mais populares do país. A influência guarani deixa-se notar na presença de produtos como o mamão a abóbora ou a mandioca nas cozinhas fronteiriças com o Uruguai e Paraguai, no nordeste da Argentina. Estas terras tambem sao o berço da erva-mate, que marcou de modo definitivo a vida dos argentinos.

A abóbora é a protagonista nas grandes planícies que se estendem no centro do país. A carbonada (prato preparado e servido em uma cabaça) ou o cozido de abóbora dão uma ideia do papel que este legume representa numa cozinha que luta por preservar os seus traços de identidade. Também encontraremos a chanfana, prato popular preparado à base dos miúdos de cordeiro, ou caldo de pata. Mas, acima de todos, o assado.

O guanaco (um ruminante da mesma família que os camelos) ainda conserva alguns dos seus antigos dominios, nas encostas que a cordilheira andina derrama sobre a meseta patagônica, ao sul do país. O resto está nas mãos do gado ovino e das zonas dedicadas à criaçao de cavalos, em terras onde ainda se nota a influência do povo araucano, de origem chilena, uma das tribos que ocuparam a Patagónia.

E os peixes? Bem, obrigado. Tão sossegados como sempre, rezando e à espera de que a maioria dos argentinos se dêem conta da sua existência. E surpreendente que um país com 4.990 quilometros de litoral tenha virado as costas ao mar e preste mais atenção a espécies de agua doce, como o dourado ou a truta, que aos peixes e mariscos que vivem nas águas da plataforma continental.

Um mar de carne

Diga-se o que se disser, quando se fala da Argentina, acaba-se sempre por falar de carne. É inevitavel, porque a carne, o churrasco, a grelha ou a brasa são termos intimamente ligados a Imagem que a Argentina projeta para o mundo. Este é muito mais que um país habitado por consumidores de carne- trata-se de um país cujos habitantes cultuam a carne. Todas as carnes, porque existem muitas outras além da bovina, provenientes dos animais que pastam nas intermináveis planícies dos Pampas.

Neste país, as carnes são muito mais do que aquelas que conhecemos no nosso dia-a-dia. Por exemplo, começando pelo Sul, na Patagónia, encontramos a carne do guanaco e a do cordeiro. É o berço das inesquecíveis chanfanas, que combinam o sangue e os miúdos do cordeiro e que, em algumas receitas, incluem o sabor adocicado das passas. Além disso, ainda encontramos magníficos javalis, cujas carnes são cozidas ou assadas. As terras que marcam o centro do país abrigam perdizes, emas, lebres, e, desde a chegada dos espanhóis - que trouxeram consigo as primeiras cabeças - espetaculares manadas de gado bovino.

Diz-se que o churrasco não é originário da Argentina, mas sim dos pampas brasileiros. Pode ser, mas não é certo, porque ambos os países desenvolveram as suas próprias fórmulas. Entre o rodízio e a grelha crioula interpõe-se um mundo.

Os argentinos têm diferentes técnicas de assado. A técnica tradicional do Pampa coloca as brasas sobre o chão, ao ar livre, e a grelha diretamente apoiada sobre elas. Quando a carne parece estar pronta, raspam-se as partes queimadas com uma faca. Em outras regiões do país, assa-se na grelha tradicional, instalada em um local construído com esse objetivo, e regulada para que se possa alcançar várias alturas. Outra divergência diz respeito à origem das brasas: alguns preferem a lenha, outros o carvão vegetal, apesar de um certo, predomínio da primeira.

Também se assa na grade ou em cruz, um sistema que se baseia numa estrutura m tálica em forma de cruz, que serve de suporte para um cordeiro inteiro - aberto ao meio, com as patas estendidas - ou para uma peça de boi. A cruz é espetada no chão, ligeiramente inclinada para a frente, diante de um copioso leito de brasas ou de um fogo suave, que é sempre renovado.

Se existe algo que distingue os assados argentinos é o tempo, que se administra com calma quando se trata de trabalhar a carne. Os tempos de cozimento são longos e podem prolongar-se consideravelmente quando se trata de peças com osso.

Na Argentina, quase tudo é assado: o frango, o porco, os embutidos- as linguiças e os chouriços são os principais -, os miúdos, enfim, uma longa lista de produtos de origem animal.

Mas, nestas terras, a carne não é somente assada. Também é preparada observando-se velhas tradições como o charque (carne secada ao sol, herdada da cultura quíchua, antigo povo do império inca) e alguns derivados como a chatasca ou satasca (em Corrientes e Entre Ríos, a carne é cortada em tiras, trançada e frita na sua própria gordura) ou do charquicán ou charquisillo. Todos com diversos modos de preparo.

Além disso, a carne é a protagonista de algumas preparações que vale a pena conhecer, como os sugestivos preparos que transformam um prato simples, como a carne refogada com tomate e pimentão, em um prato que, quando segue os preceitos mais ortodoxos, combina carnes de cordeiro, porco e frango. Encontramos, igualmente, algumas propostas tão apelativas como o cozido crioulo - carne bovina preparada com milho, batatas, maçãs, pêras e hortaliças - ou como o ensopado do Norte, envolvido pela doçura dos damascos secos.

E tantos outros pratos nacionais singulares: o locro, uma espécie de cozido, que contém ingredientes da culinária pré-colonial; o ají de galinha e o "cozido podre", ambos tão enraizados na cozinha do Norte e tão próximas do modelo original.

Uma parte do legado deixado pelos espanhóis concretiza-se precisamente aqui, em torno destes pratos, entre os quais caberia acrescentar o puchero (cozido à espanhola), o puchero chico ou as tripas.

Um final doce

O vestígio da cozinha espanhola também se pode notar, de forma muito especial, entre os pratos doces, outra das grandes jóias da cozinha argentina. Por detrás do doce de leite, emblema da confeitaria argentina, surge um panorama extraordinário e rico. As cozinhas do Nordeste refletem uma particular exuberância nos doces preparados com ovos, representados por pudins, ovos quimbo ou ambrosias.

O Sul oferece o produto das elaborações nascidas dos frutos silvestres, como as groselhas, framboesas e morangos do bosque, que dão vida a doces tão caseiros tanto quanto pode ser um doce de maçã, de aspecto muito parecido com o da marmelada, e de outros que não se desmerecem, tais como o doce de cerejas ou de framboesas.

Do Noroeste, chegam sobremesas tão populares como a mazamorra ou os alfajores, dois doces que superaram as fronteiras da cozinha regional e estendem os seus domínios ao longo de todo o país.

Texto de Ignacio Medina extraido do livro "Argentina" volume 18 da coleção Cozinha País a País publicado pela Folha de S. Paulo, 2007, excertos pp.8-12. Digitado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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