4.03.2016

AS COZINHAS DE ISRAEL



A culinária de um país reflete história, hábitos e costumes de seu povo. Nada mais verdadeiro quando pensamos na comida judajca. O que então poderíamos chamar de cozinha de Israel? Qualquer resposta que encontremos nos remeterá aos preceitos da kashrut, o rígido código sanitário/religioso que define desde os alimentos de consumo permitido até os cuidados com seu preparo.

Que outro povo teria exemplos de sua culinária descritos na Bíblia? A gastronomia judaica tem raízes profundas na história do homem moderno. Mesmo o Estado de Israel tendo quase 60 anos - foi criado em 1948 - seus habitantes carregam tradições milenares temperadas pela originalidade e criatividade. Por muitos anos, acreditou-se que as restrições alimentares eram uma forma sanitária de purificar e preservar os judeus, já que a kashrut, entre outros preceitos, ordena consumir carne de animais que tenham o casco dividido em duas partes e ruminem (o porco, por exemplo, não rumina), e proíbe tudo vindo do mar que não possua escamas. Juntar leite e carne numa mesma refeição também não é permitido.

Dos requintes da cozinha do rei Salomão até a fundação do Estado de Israel, por 2.000 anos, desenvolveu-se o estilo judaico de adaptar seus conceitos à culinária dos países onde viveu esse povo.

As festas e comemorações, marcadas sempre por comidas típicas, contribuíram para manter vivas as tradições milenares do Shabat e tantas outras. Se os judeus, em sua longa peregrinação pelo mundo, foram incorporando traços da culinária de outros povos, também deixaram contribuições memoráveis por onde passaram.

No reinado dos reis católicos espanhóis Fernando e Isabel, os judeus deixaram a Espanha rumo à Itália, à Holanda e a Portugal, mas com eles levaram o tomate, a pimenta vermelha e a abóbora, maravilhas recém-chegadas do Novo Mundo, trazidas por seus descobridores.

Para começar o dia

O café-da-manhã é, hoje, uma das refeições mais importantes em Israel. Um verdadeiro desjejum sabra pode ser encontrado nos kibutzim - colônias comunitárias agrícolas - onde uma farta mesa fica posta desde a madrugada. Pães variados, frutas e vegetais frescos, cultivados nas terras áridas trabalhadas com tecnologia e tenacidade, queijos, coalhadas, peixes defumados e marinados, creme de leite, geléias, mel.

Se a primeira refeição do dia oferece tanta variedade, o mesmo se pode dizer dos mezze, os aperitivos que antecedem outras refeições. Num restaurante de Israel, por menor que seja, nunca haverá menos de vinte itens sobre a mesa. Não podem faltar hummus, tahine, queijos, fígado de frango grelhado, beringelas em versões variadas, saladas, legumes em conserva, pasteizinhos de carne e espinafre, charutinhos de uva recheados, tudo regado a muita harissa e zhoug, molhos que revelam uma das grandes paixões dos judeus: a pimenta, principalmente, a malagueta.

Pegando fogo

A pimenta-malagueta é uma das grandes estrelas de uma refeição em Israel e em todo o Oriente Médio. Herança dos iemenitas e marroquinos, já está tão assimilada à cultura local, que não há restaurante que não ofereça, mesmo sem que se peça, variedades de molho apimentado. Mas ... cuidado. Prová-los é uma experiência que exige cautela. A harissa pode se tornar uma lembrança dolorosa para um paladar desavisado. É difícil descrever seu sabor, mas esquecê-lo é impossível. A sensação não se limita ao paladar: é um calor que se espalha por todo o corpo. Antes de se arriscar, verifique se tem, à mão, uma quantidade razoável de pita, o tradicional pão do Oriente. Só o pão é capaz de amenizar esse incêndio. das entranhas.

As conservas são outra tradição entre os judeus. Nabos, cenouras, pepinos, tomates verdes, limões enchem vidros e potes de tamanhos variados, fazendo dos mercados uma festa colorida.

Ao lado da pimenta, o pão ocupa um lugar nobre em toda a mesa judaica. Além de protagonista de muitas cerimônias religiosas, é um alimento básico que acompanhou este povo em sua longa peregrinação pelo planeta. Entre os pães mais importantes está a challá, abençoada e servida a cada sexta-feira ao pôr-do-sol, quando se inicia o Shabat, o Dia do Descanso. Apresentada de inúmeras formas, a challá pode vir como uma trança, rosca, mas, no Ano-Novo, ela é moldada na forma redonda.

Ainda que seja motivo de uma polémica entre asquenazitas e sefarditas, o pão pita também não pode faltar em qualquer refeição judaica. Vindos de países árabes, os sefarditas não abrem mão deste típico pão; já os asquenazitas, originários da Rússia, Polônia, Alemanha, são herdeiros de uma tradição em que se preparavam grandes fornadas de pães artesanalmente.

Os bagels são uma das grandes contribuições dos judeus. Teriam surgido em Viena, criados por dois soldados poloneses de cavalaria, enviados para salvar a cidade, sitiada pelos turcos. Sua forma arredondada é justamente uma homenagem aos estribos da cavalaria vitoriosa. Hoje, encontramos bagels nas esquinas de Telavive ou de Nova York.

Os queijos que surpreendem

Envoltos em panos brancos, eles pendem de longas hastes. De tempos em tempos, um homem aproxima-se com um pequeno martelo de aço e os golpeia, ouvidos atentos para detectar algurp. espaço vazio no interior úmido. Neste paciente e lento processo, produzisse uma das iguarias da culinária judaica, o kachkavel ou kasseri, um queijo aristocrático. Rico e gorduroso, sua coloração revela, sem disfarces, sua qualidade. Aqueles muito brancos são recebidos com certo desapontamento. Os moradores de Binyamina, pequena localidade ao noroeste de Israel, junto ao Mar Mediterrâneo, orgulham-se de serem os mais famosos produtores de queijos da região.

Os segredos do mar Mediterrâneo

Apesar de seus pouco mais que 20 mil quilômetros quadrados, Israel possui 4 grandes áreas pesqueiras. Atualmente, a demanda de peixes do país é suprida pelas variedades criadas em cativeiro, como a truta, e a pesca em alto-mar.

Marcas do vagar do povo judeu pelo mundo estão nítidas nas receitas de peixes servidas em Israel. O arenque na salmoura, na melhor tradição do norte da Europa, ou um delicado peixe com nozes, de inspiração veneziana, são lembranças dos guetos habitados pelos judeus no século XVI.

Restaurantes judaicos especializados em peixes não são tradição em Israel. Durante muito tempo, o peixe chegou à mesa principalmente moído e modelado no 'gefilte fish', um tradicional bolinho que continua a ter papel importante em muitas celebrações. Em outras ocasiões, ora ele vinha coberto por geléia doce, à moda dos judeus da Polônia, ora era assado no forno com legumes e temperos. Ao chegar às mesas, por tradição, os maridos recebiam as cabeças, e, como se cozinhava principalmente a carpa, cada refeição era acompanhada por perigosas experiências com finas espinhas.

Cozinhando com paciência

A kashrut, o código que orienta a preparação dos pratos judaicos, combinada com os preceitos religiosos das celebrações, foi a fonte de inspiração para o surgimento de pratos saborosos e originais.

Durante o Shabat, por exemplo, não se pode usar eletricidade nem acender o fogo. A culinária judaica conta, então, com um cardápio variado de pratos que são cozidos ao longo de toda a noite, num processo que apura o sabor e traz verdadeiras delícias à mesa no sábado. Entre as receitas tradicionais do Shabat, está o tchoulent, um prato que se originou na Europa Oriental.

O código dietético da religião judaica também estabelece normas rígidas quando o assunto é carne. Estão proibidos os animais que rastejem, comam restos e andem nos lixos. A carne consumida pelos judeus ortodoxos precisa seguir uma série de normas desde seu abate. O animal deve ser morto sem violência ou sofrimento, e a carne tem de estar exangue e sem gorduras. Há, inclusive, profissionais, os soichets, especializados no abate de carnes. Ao final de todo este processo, ela ainda deverá receber um carimbo de kasher, ou seja, alimento puro, atestado por um rabino. Não há, portanto, na culinária judaica, pratos com carne de porco. A necessidade de sobrevivência, ainda uma vez, estimulou a criatividade, e faz parte de seu cardápio a kishke, uma "falsa linguiça", criada justamente para iludir os que buscavam identificar judeus para denunciá-los à Inquisição.

Os famosos kebabs, uma tradição herdada dos árabes e da Europa Ocidental, continuam sendo uma das formas mais baratas e saborosas de se comer carne em Israel. Os kebabs feitos de carne de carneiro, com um tempero elaborado, salsinha picada, nozes e, quem sabe, até uma pitadinha de canela, fazem exalar das barracas de ambulantes um perfume a que é dificil resistir.

Com as mãos na terra

Quando se vê, hoje, num mercado de Israel um festival de cores e sabores e se percebe a oferta simultânea de frutas de épocas diferentes, é difícil imaginar o que foi um dia esta região. Um território árido no Sul e pantanoso no Norte, onde foi preciso entender a linguagem secreta da terra, criar uma cumplicidade com aquele solo onde finalmente se poderiam lançar raízes. Para os pioneiros, a agricultura era sinônimo de sobrevivência.

Comiam o que cultivavam e cultivavam o que comiam. Foram descobrindo os legumes e as frutas que se adaptavam melhor ao solo. Fizeram vinho de pêssego, damasco e ameixa. Introduziram os brócolis, a couve-de-bruxelas, o repolho-chinês, em um lugar que parecia fadado a não produzir mais do que couve, batata e cebola.

É impressionante a abundância de frutas em Israel. A cada estação, há frutas de todas as épocas, doces e frescas, prontas para o consumo. Nos kibutzim, tornou-se tradição apresentar, a cada estação, uma nova fruta que se conseguiu cultivar. Seus habitantes buscam soluções criativas que atendam, ainda mais, às necessidades do povo judeu. Por exemplo, já que as conservas são tão apreciadas, desenvolveram pequenos pepinos redondos, semelhantes a tomatinhos verdes, mais fáceis de serem colocados nos vidros de conserva.

A doce vida

Os doces, como tudo na cozinha judaica, também têm uma função significativa nas festas religiosas. No Rosh Hashaná, o Ano-Novo, não pode faltar uma maçã com mel, para que se garanta um novo ano doce. Também os banquetes nupciais são fartos e é comum, ainda hoje, a mãe da noiva deixar, sob o travesseiro do casal, doces e bombons para adoçar a vida que se inicia. Uma atenção especial merecem as sopas doces, que se servem geladas. Esta é uma boa idéia para terminar de forma mais refrescante as refeições neste país tropical.

Uma culinária de gratidão 

Na Espanha, na Rússia, na Polônia, n·a Itália, em cada canto do planeta onde existisse uma família judia, lá estavam as 'babes' e 'mommes', as grandes responsáveis pela alquimia que faz da culinária judaica uma cozinha de tantos sotaques diferentes, mesclando sabores e cores, experimentando misturas, colecionando lembranças e temperos da nova terra. Sempre inventando soluções criativas para tempos de escassez. O grande símbolo de uma cozinha que, como todo um povo, não se deixou abater pelas dificuldades, mas procurou descobrir em meio a momentos amargos, a surpresa de novas delícias.

Texto extraido do livro "Israel" volume 23 da coleção Cozinha País a País publicado pela Folha de S. Paulo, 2007, excertos pp.8-14. Digitado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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