8.23.2016
GEOGRAFIA DA PECUÁRIA NO BRASIL
PECUARIA COLONIAL
A criação de gado foi a principal atividade econômica, amplamente difundida no Brasil-Colônia, não destinada bàsicamente à exportação. Ela se localizou no sertão interior, entre a coleta florestal, na mata amazônica, ao norte, e as áreas de migração e lavoura de açúcar, a leste e a sudeste.
A pecuária tem sido pouco estudada pelos geógrafos, por vários motivos: a documentação sôbre ela é escassa; processa- se de maneira pouco espctacular, em muitos lugares, isto é, pouco alterando a paisagem natural, e, finalmente, porque tem variado pouco no tempo: a pecuária colonial é, em muitos aspectos, igual à que se pratica nos dias de hoje. Não obstante, seu significado é profundo, já que ela é responsável pela ocupação econômica de imensa área do território brasileiro.
O gado era criado à solta, sem estabulação, silagem ou melhoria dos pastos. Para tornar o capim mais tenro, faziam-se queimadas periódicas. Os fitogeógrafos não têm dado, contudo, a devida atenção ao problema da transferência de várias espécies de gramíneas da África para o Brasil, a partir do comêço do século XIX. como é o caso do capim de Angola e, mais recentemente, do capim kikuyu.
Não existiam bovinos nas Américas, em tempos pré-colombianos. O deslocamento dos rebanhos para o interior pode, por isso, ser reconstituído passo a passo. Desde o final do século XVI foi proibida a criação de gado até 10 léguas da costa, salvo na ilha de Joanes (atual Marajó) e nos Campos dos Goitacazes (região do atual Estado do Rio de Janeiro). Essa medida legal foi prenhe de consequências, das quais a mais importante foi a separação econômica e espacial da agricultura e da pecuária, fazendo com que uma e outra adotassem obrigatoriamente práticas extensivas.
A dispersão do gado no território brasileiro foi feita a partir de três pontos: Bahia e Pernambuco, no Nordeste, e São Vicente, na costa paulista. Até meados do século XIX, constituíram-se no Brasil três zonas principais de criação: o sertão do Nordeste; o sul de Minas Gerais; as planícies e planaltos do Sul.
Sertão do Nordeste
Esta é a mais antiga, mais extensa e mais importante das regiões pastoris do Brasil colonial. Abrange desde o rio Parnaíba até o norte de Minas, excluindo- se o litoral oriental do Nordeste, incluindo porém a zona de Pastos Bons (Maranhão). A margem esquerda do médio S. Francisco era o limite ocidental dessa vasta região, que tinha mais de 1 000 000 km2 de superfície. Ela abastecia de carne tôda a faixa litorânea desde a Bahia até o Maranhão, e mais a região das Minas.
Uma série de fatores facilitou a rápida ocupação do sertão pelo gado: a vegetação rala de caatingas, o relêvo suave, o mercado da região açucareira adjacente, os afloramentos salinos espontâneamente procurados pelos animais (chamados «lambedouros») e também as jazidas de salgema, que cobrem, no médio S. Francisco, uma área de 60 X 25 a 30 léguas, desde o rio Salitre até Urubu (atual Paratinga), e abasteciam desde o Piauí até Minas e, mais tarde, Goiás e Mato Grosso. Por outro lado, outros fatores, adversos, impediram o desenvolvimento da pecuária na região até os dias de hoje, como os pastos pobres e a falta de água, esta agravada em sêcas intermitentes que dizimavam os rebanhos.
A penetração do gado no Nordeste se verificou por vias bem definidas. Uma, foi o caminho do S. Francisco, para onde afluiu gado vindo de Salvador e Pernambuco, subindo o vale principal e os dos afluentes, até o do rio das Velhas; na atual divisa dos Estados de Bahia e Piauí foi transposto o divisor de águas S. Francisco-Parnaíba. Outra, foi o caminho do litoral, que de Pernambuco acompanhava a costa até o Ceará, aonde subia o vale do Jaguaribe. Uma terceira via era o caminho do Parnaíba, cujo acesso se fez pelos vales do Piauí e Canindé abaixo, ocupando o sul maranhense até a margem do Tocantins e foi encontrar no Ceará, onde ingressou através do boqueirão do Poti, o gado que subira o Jaguaribe.
Para formar as fazendas, os povoadores penetravam no sertão conduzindo o plantel inicial dos bovinos, cavalos e um bando de homens armados. Iam ao encontro dos índios e lhes propunham a entrega de alguns cavalos e o pagamento de um quarto das crias do gado, em cada cinco anos. A vida de vaqueiro exercia grande atrativo para os índios, porque lhes dava cavalos para montar e diferia do trabalho rotineiro da agricultura. As tribos que não quiseram sujeitar-se ao serviço do pastoreio ou foram massacradas ou tiveram que mudar-se para locais distantes. O vaqueiro despreza, a lavoura; nas roças labutavam escravos assalariados, conhecidos pela alcunha de «fábricas», na Bahia.
Segundo a Ordem Régia de 27 de Dezembro de 1695, o padrão de uma fazenda de criação tinha três léguas de comprimento, medidas ao longo de um rio, e uma légua de largura, sendo meia para cada margem. Como não se construíam cêrcas, deixava-se um espaço vazio de uma légua, entre as terras de uma fazenda e outra.
Desconhecia-se o número de cabeças de gado criado em cada propriedade; sabia-se apenas o número de bezerros que «amansava» (dado fundamental para o pagamento do vaqueiro). Esse número elevava-se de 1000 a 2 000, nas fazendas grandes. Contavam-se, além disso, 25 a 30 cavalos, nos «chiqueiros » (têrmo pejorativo para designar as pequenas fazendas), e 50 a 60, nas boas fazendas.
Os processos de criação eram extremamente primitivos: os animais viviam soltos nos pastos brutos, tornando-se bois magros e musculosos. Os cuidados com o rebanho limitavam-se à cura das feridas, à defesa contra os animais selvagens (sobretudo onças), à queima periódica dos pastos e à vigilância sôbre o gado para êste não ficar selvagem. A ferra dos animais servia não somente para comprovar a propriedade dêles, mas também para amansá-los. A escassa produção de leite líquido destinava-se ao consumo da fazenda ou à fabricação de um queijo grosseiro, de tipo que se faz até hoje («queijo do sertão»).
É óbvio que a produtividade das fazendas nordestinas era insignificante: algumas centenas de crias para três léguas quadradas (11 000 hectares), por ano. Vendiam-se, portanto, nesse espaço de tempo, 250 a 300 cabeças em média, das quais cêrca da metade era perdida no caminho para o mercado, segundo o testemunho de MARTIUS. Após as longas caminhadas, os bois magros e cansados eram entregues ao abate imediato, nas cidades.
A carne sêca ou charque teve sua fabricação iniciada no Ceará; dali, difundiu-se no vale do Parnaíba, cuja produção foi importante até o último quartel do século XVIII. Desde então, as charqueadas do Rio Grande do Sul (especialmente as de Pelotas) suplantaram até hoje a produção das outras regiões brasileiras.
Couros salgados, curtidos, solas e vaquetas eram os principais subprodutos da pecuária nordestina. A influência dessa atividade na estruturação da economia regional foi decisiva. Por ela se fez, conforme vimos, o povoamento do sertão, a erecção de freguesias e de vilas. Foi também em decorrência da pecuária que, em 1758, o Piauí se tornou capitania emancipada. Mas as sêcas sucessivas, desencadeadas no século XVIII, levaram a pecuária nordestina à decadência.
Sul de Minas
Na comarca do Rio das Mortes, situada na bacia do alto Rio Grande, desenvolveu-se outra notável zona pastoril dos tempos coloniais. Sua paisagem natural difere muito da do Nordeste: é um grande planalto ondulado, atravessado por alinhamentos montanhosos. O clima tropical é amenizado pelas altitudes; a pluviosidade é elevada; os rios, perenes. Estepes úmidas e alguns cerrados, interrompidos por cordões de matas ciliares, completam o quadro da vegetação. A pecuária teve início nessa região na mesma época da exploração do ouro. Em 1765, desciam a Mantiqueira as primeiras pontas de gado para abastecer a cidade do Rio de Janeiro. O abastecimento de São Paulo com bois provenientes dessa região deu ênsejo ao povoamento da faixa de Franca a Moji-Mirim, hoje percorrida pela estrada de ferro Mojiana.
A. DE SAINT-HILAIRE deixou um valioso depoimento sôbre a pecuária sul-mineira: as casas são melhores que as do Nordeste e providas de «leiteiras», construções onde se fazia a ordenha e se fabricavam queijos. Os pastos eram divididos por cêrcas de pau-a-pique, valos ou muros de pedras empilhadas. Isto era apenas um dos indícios de que o gado aí merecia melhores cuidados. Embora ainda se fizessem queimadas periódicas nos pastos, a fim de fazer rebrotar os «Verdes», a alimentação do gado era completada, ministrando-se-lhe sal e ração de farelo. O gado era, por consequência, melhor e a capacidade das fazendas mais elevada que no Nordeste: criavam-se 600 a 700 rêses em duas léguas de terra.
Conquanto se empregasse mão-de-obra escrava no sul de Minas, o fazendeiro e sua família participavam no trabalho diário. Daí resultava uma organização social mais democrática, se bem que os hábitos fossem muito mais rudes que, por exemplo, nas regiões dos engenhos de açúcar.
Em Minas, já nos tempos coloniais criavam-se carneiros para produzir lã, que era fiada à mão, a fim de se fazer com ela abrigos e chapéus. Nos arredores de Formiga, havia criação de porcos para a fabricação de banha.
Campos do Sul
As campinas do Sul do Brasil são também estepes úmidas, de relêvo suave e águas abundantes. Os solos e os pastos naturais da Campanha gaúcha são, porém, mais ricos que os do Planalto Meridional. A introdução do gado se fez, contudo, primeiramente, nestes Campos Gerais, e só no princípio do século XVII no Rio Grande do Sul.
Na Campanha gaúcha, os bovinos soltos pelos jesuítas proliferaram, à lei da natureza, chegando a formar um rebanho superior a quatro milhões de cabeças. Constituiu assim a «vacaria do mar», onde o gado dito alçado ou chimarrão era caçado como fera. A carne era talvez o principal produto extraído desse plantel para as Missões Orientais do Uruguai e as colônias espanholas do Prata; mas para os Luso-brasileiros estabelecidos em Laguna e no forte de Jesus, Maria e José (atual cidade do Rio Grande) a principal mercadoria era o couro, e secundàriamente, chifres, graxa e sêbo. Esses colonos se aliaram aos charruas e minuanos, avessos à conversão, que iam «caçar couros» e realizar com aquêles um comércio de trocas.
A abertura do Caminho do Sul em 1730, ligando os campos do Viamão com Sorocaba, permitiu a organização da feira de muares nessa cidade e o transporte dos bovinos a pé. A referida estrada concorreu para unificar o Brasil, incentivar o comércio de carne verde entre o Sudeste e o Sul, e, por fim, garantir a expansão meridional dos Luso-brasileiros muito além do meridiano de Tordesilhas.
O interesse pela carne do gado sulino era, no comêço do século XVIII, tão intenso que, ao mesmo tempo que se procurava um caminho regular terrestre para o Sul, inaugurava-se em Laguna a indústria do charque. A medida que se consolidava a ocupação luso-brasileira na Campanha, afirmava-se a zona situada entre os rios Pelotas e São Gonçalo como a principal área saladeril brasileira. Em 1793, o pôrto do Rio Grande exportava 13 000 arrobas de carne sêca; nos primeiros anos do século XIX, quase 600 000.
As sesmarias concedidas na Depressão Transversal (vales do Jacuí e Ibicuí) e na Campanha formavam, em fins do século anterior, 539 estâncias. Essas propriedades eram enormes latifúndios, alguns dos quais cobriam cêrca de 100 léguas em quadro. Sustentavam, em média, 1 500 a 2 000 rêses por légua, o que demonstra a superioridade dos pastos em relação aos das zonas de criação já citadas. Por volta de 1810, somente cêrca de um quarto do gado era manso, nas melhores estâncias. Um capataz e alguns peões, todos mestiços e índios assalariados, compunham o escasso pessoal de uma estância.
O cronista John Luccock avaliou em seis o número de pessoas aí necessárias para cuidar de 4 a 5 000 cabeças de gado. Os vaqueiros constituíam uma população nômade, que se reunia duas vêzes por ano nos rodeios para contar, inspecionar, marcar e castrar o gado. Essas reuniões terminavam em festas, com churrasco e carreiras de cavalo.
Os serviços dos vaqueiros requerem exercícios físicos, mas que são poucos e espaçados. Os mais frequentes são a vigilância do gado e a distribuição de sal, que na Campanha não é dado em tôda parte.
Embora fosse essa região, sem dúvida alguma, a melhor área pastoril brasileira, deixava ainda muito a desejar, qualitativamente. SILVA GAMA, o próprio governador da província, avaliava em nove arrobas o pêso médio do gado gaúcho, que seria 50 p. 100 menos produtivo de, carne que o do Rio da Prata. Essa era todavia a principal produção; a de lacticínios era insignificante, embora se comercializasse alguma manteiga; como subprodutos sobressaíam: o couro, chifres, unhas e sêbo. A importância desta mercadoria provém do fato de ser aí o gado mais gordo que nas outras partes do Brasil.
Além dos bovinos, o Sul exportava, no princípio do século XIX, 12 a 15 000 bêstas e 4 a 5 000 cavalos, anualmente. Os carneiros eram criados para o corte de lã, utilizada na confecção dos pesados ponchos.
A. DE SAINT-HILAIRE descreveu a criação nos Campos Gerais do Paraná, em 1821. Era muito inferior à da Campanha, em todos os aspectos. Dava-se sal ao gado, porém menos que em Minas. Os animais iam a pé para abastecer Paranaguá e São Paulo; era, no entanto, insuficiente para esses mercados. Criavam também lanígeros, mas nenhum muar. Hàbilmente, a administração portuguesa proibira a criação de bêstas ao norte do rio Iguaçu, a fim de estimular os tropeiros a buscá-las mais longe, legalmente ou por contrabando, na Campanha gaúcha ou na mesopotâmia argentina.
Regiões secundárias de criação - Na ilha de Joanas, a pecuária teve início ainda no século XVII, com a introdução do gado bovino. A primeira fazenda foi fundada em 1692; em 1783 já havia 153 fazendas; em 1803, 226. O crescimento do rebanho não se fez, entretanto, de maneira rápida: enquanto em 1750 era avaliado em 480 000 cabeças, em 1803 ascendia a 500 000 apenas. É que, além das forragens pobres, o gado encontrou em Marajá inimigos vorazes, como a piranha e o jacaré.
O primeiro açougue em Belém abriu suas portas em 1726; mas o suprimento de carne permaneceu tão precário que o Pará teve de recorrer, mais tarde, à importação de charque.
Os campos do Rio Branco, no atual território do Roraima, iniciaram-se na pecuária com a organização das Fazendas Reais, em 1793. Daí provinha o abastecimento do vale do Negro em carne verde, por meio de ajoujas que percorriam êsse rio e o Branco.
A penetração dos rebanhos nos campos de Perizes (Maranhão), bem como em Goiás e Mato Grosso, teve seu surto no século XIX, às vésperas de se iniciar a nova fase da economia pastoril brasileira.
PECUÁRIA MODERNA
A modernização da pecuaria no Brasil começou antes mesmo do estabelecimento dos grandes frigoríficos, através da substituição dos velhos estoques de bovinos, oriundos, na maioria, das ilhas ocidentais da África, por novas raças europeias e indianas. Essa renovação se fez a partir da década de 1870. No Rio Grande do Sul foram introduzidos: o Hereford, Shorthorn, Polled Angus, Charolês, Schwytz, o primeiro dos quais passou a prevalecer, por larga margem. A introdução de raças zebuínas no Brasil Central principiou em 1875, por iniciativa de fazendeiros do Triângulo Mineiro e do Sul de Goiás. Entre elas predominam: o Guzerath, o Gyr e o Nellore. Aí, foi o gado selecionado (criando-se um tipo considerado por alguns como raça nova: o Indubrasil ou Induberaba), tornando-se muito superior ao gado da índia, pois neste país não há seleção, visto que os bovinos não têm valor comercial.
A iniciativa dos fazendeiros triangulinos venceu a oposição acirrada de agrônomos e veterinários teóricos, especialmente do Ministério da Agricultura. O bom senso predominou, comprovando. a rusticidade e a precocidade do zebu, que constitui o melhor plantel até agora conhecido para a instalação de uma pecuária comercial nas pastagens pobres dos trópicos.
Aspectos gerais da pecuária brasileira
Comparada à população bovina dos grandes países criadores, a do Brasil assim se apresenta:
Nenhum dos países situados na dianteira do Brasil quanto ao número de bovinos guarda uma relação tão elevada para o contingente humano. Ademais, o rápido crescimento vegetativo do rebanho brasileiro é apenas superado, no continente, pelo dos Estados Unidos, onde contudo o referido incremento se fez, recentemente, à custa de uma redução numérica dos outros rebanhos (especialmente o equino).
Problemas da Pecuária
Com a relativa modernização da pecuária e a ocupação do Centro-Oeste pelos bovinos, duas regiões tornaram-se atualmente as principais áreas pastoris brasileiras: o Brasil Central, incluindo Mato Grosso, Goiás, o oeste de Minas e de São Paulo, com metade do rebanho do país, e a Campanha gaúcha, com cêrca de um têrço do mesmo.
Rio Grande do Sul
Apesar da relativa superioridade qualitativa do gado dessa última região, importantes experimentações bem sucedidas estão sendo realizadas por iniciativa privada, na Estância Pôsto Velho, no Município de Alegrete, sob a orientação do Prof. A. SAINT-PASTOUS, para abolir o pastoreio permanente e a queimada dos pastos, por meio da intensificação do sistema pastoril. As práticas extensivas causam severas perdas no gado do Rio, Grande, especialmente na fronteira oeste, onde os solos rasos, bem como a forte sêca e a temperatura elevada secam totalmente as pastagens naturais.
Fazem-se também esforços apreciáveis para a melhoria dos plantéis, através da difusão da inseminação artificial. A melhor qualidade do gado, a insuficiente capacidade de armazenamento em frigoríficos e o contrôle absoluto da indústria do frio por companhias estrangeiras orientaram a pecuária do Rio Grande do Sul para o mercado exterior.
Amazônia
No outro extremo do Brasil, novas possibilidades se abrem à pecuária nacional, onde antes o seu desenvolvimento era considerado impossível.
As primeiras tentativas de melhoramento de pecuária amazônica forma feitas, neste século, com a introdução do búfalo nos campos de Marajó e Maicuru, naquele por iniciativa privada, neste por medida oficial.
O búfalo demonstrou então suas qualidades de animal rústico, precoce e bom para trabalho, assim como de produtor de leite e carne. Não se presta, porém, para criação em fazendas pequenas e médias, com pastos divididos, pois êle danifica as cêrcas e currais. O seu ambiente ideal são os campos alagáveis e onde se pratica o livre pastoreio; por isso, a criação de búfalos tem ainda grandes possibilidades em regiões do Brasil em que ainda não foi introduzido, como os campos de Perizes e o Pantanal.
No decênio de 1940, o agrônomo FELISBERTO C. CAMARGO introduziu na Fordlândia, no vale do Tapajoz, o zebu Red Sindhi, cujas qualidades leiteiras estão sendo selecionadas.
A abertura da rodovia Belém-Brasília em 1960 possibilitou a instalação de numerosas invernadas em Paragominas, ao sul da capital paràense, em cujos pastos de jaraguá e colonião se faz a recria e engorda do gado que é transportado do sul do Maranhão, norte e centro de Goiás, destinado ao abate naquela cidade. O bom resultado obtido com a engorda nos citados pastos, organizados por fazendeiros de diversas partes do país (S. Paulo, Minas, Goiás, Marajó, etc.), levou-os a promover a instalação de uma charqueada no local, providência que já está bastante adiantada.
Salvo nos campos do Rio Branco (território de Roraima), o gado da Amazônia está bastante mestiçado com sangue zebu, e a importação de reprodutores desta raça, provenientes do Triângulo Mineiro, ficou imensamente facilitada com a circulação pela referida rodovia.
Nordeste
A principal melhoria qualitativa na pecuária nordestina foi também a «zebuização» dos plantéis. Hoje em dia, o gado «Curraleiro» -ou «pé duro» está confinado, no Sertão, às áreas mais remotas e sobretudo às terras pastoris do Piauí e do Maranhão.
Sem embargo, uma transformação substancial se processou, a partir do princípio dêste século, na região do Agreste de Alagoas (municípios de Batalha, Major Isidoro e Jacaré dos Homens) e de Pernambuco (município de S. Bento do Una), com a introdução da palma forrageira (est. IV, A). Esta cactácea, originária da Austrália, foi trazida para a região através do Texas, e, possuindo espinhos que mais parecem uma penugem, permite que o gado a coma sem nenhuma preparação nem inconveniente.
Nestas condições, foi possível criar-se naquela área uma indústria de lacticínios, baseada na criação de gado mestiço holandês, ao mesmo tempo que permite o abastecimento de Maceió e Recife com leite líquido.
Brasil Central
Esta região tem não só o maior rebanho mas é também a mais vasta zona pastoril brasileira. Assim, o problema do transporte do gado para os abatedouros tem lá especial significação. No Brasil inteiro, somente dois frigoríficos estão instalados junto às regiões produtoras: o da Anglo, em Barretos (S. Paulo) e o da Armour, em Santana do Livramento (Rio Grande do Sul). Como são insuficientes, a movimentação do gado vivo se torna um problema agudo, no Planalto Central.
A Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, que vai de Bauru a Corumbá, poderia contribuir decisivamente para solucionar a questão, mas como foi construída com objetivos puramente estratégicos, não dispõe de vagões frigoríficos. O técnico BLANC DE FREITAS queixava-se, há anos atrás, do contrassenso econômico de que, na referida ferrovia, o boi morto pagava frete 20 vêzes mais caro que o boi vivo. Ora, como, além disso, um vagao transporta 18 rêses vivas ou 80 rêses mortas tal política agravava a já insuficiente capacidade dos trens.
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No transporte ferroviário dos bois vivos, 2% dos animais morrem, devido aos solavancos e falta de alimentação por longo período; outros chegam machucados e o seu tratamento acarreta pêrdas de pêso e de tempo.
Fato comum nas viagens de automóvel pelas estradas do interior brasileiro é a viatura ficar retida por longo tempo, a fim de dar passagem às pontas de gado com dezenas, centenas de animais, tocados por vaqueiros e garotos, que os conduzem para recria, engorda ou abate.
As perdas com êsse sistema primitivo de transporte de gado são consideráveis. BLANC DE FREITAS avaliou as perdas mínimas diárias de um boi nas viagens a pé, em 2,5 kg. Como o consumo do Rio de Janeiro se elevava, já em 1952, a 2 500 cabeças, as perdas diárias eram superiores a 6 toneladas de carne e gordura. Parece, entretanto, que tal estimativa é exagerada; em inquéritos feitos pelo autor em Goiás, entre fazendeiros e pessoal de frigorífico, as perdas de pêso andariam por volta de um quilo por dia, com as marchas a pé.
Tal sistema de transporte fez surgir dois tipos de intermediários na comercialização dos bovinos: o recriador, que adquire bezerros, coloca-os em pastos nativos e os vende já adultos; e o invernista, que organiza pastos plantados (invernadas) perto do local de abate, e vende o gado gordo aos frigoríficos. Do lugar onde nasceu até aí, o boi efetua, em geral, de 40 a 90 «marchas», de cêrca de 4 léguas cada uma.
A organização do comércio do gado, como é feita, acarreta a deterioração das pastagens nos pousos e a ocupação de grandes áreas de bons solos agrícolas pelas invernadas, os quais poderiam estar produzindo alimento, com rendimentos mais elevados, para o homem.
Em meados da década de 1950, o já citado técnico B. DE FREITAS estimava em dois milhões o número de bois que se deslocavam a pé, anualmente, no Brasil Central, com perdas da ordem de duas arrobas por boi. A industrialização imperfeita causava, ademais, desperdícios, avaliados, em 1952, em Cr$ 3 bilhões anuais (US$ 15 milhões, aproximadamente).
No decênio atual, novas transformações se operam na criação e no comércio do gado de corte. No Estado de São Paulo, o valor da produção pastoril em 1962 foi superior ao da do café. Pela maneira extensiva como o gado é criado, o surto do pastoreio, em detrimento da lavoura, significa a liberação de grande massa de mão-de-obra, que se acumula nas cidades. A crise econômica por que passa a indústria não permite que esta absorva êsses excedentes de mão-de-obra, gerando-se assim uma crise social. Ê urgente, pois, a intensificação e racionalização da pecuária paulista.
Por outro lado, a implantação da indústria automobilística no Brasil, em 1957, possibilitou o transporte do gado vivo por caminhão. Fazendeiros e companhias de transportes organizaram frotas de carros para êsse fim; porém, mais comumente, o transporte de bois é feito por motoristas que possuem um ou dois caminhões e fazem o serviço particular· mente, cobrando o frete. A supressão gradativa das marchas a pé está possibilitando a redução da área de invernadas, o aumento da população bovina e da área em cultivo.
CONCLUSÕES
Não obstante os notáveis progressos efectuados pela pecuária brasileira, a começar do último quartel do século passado, tem ela ainda a percorrer um longo caminho no progresso. Já em 1939, o presidente VARGAS anunciava, na Conferência de Interventores, que, dos 1269 municípios então existentes, apenas 105 tinham pecuária tecnicamente dirigida. O gado sofria danos nos couros, causados por carrapatos, pela ferra e por arame farpado. Se 1225 municípios já tinham pastos cercados dessa maneira, quer dizer 96,5 % dêles, em área, até hoje, as cêrcas de arame farpado estão longe de alcançar a metade da superfície do país. Somente 101 municípios tinham silos.
Não resta dúvida de que a produção brasileira de carne aumentou e melhorou com a difusão das raças zebuínas e do Hereford. Causa, entretanto, estranheza que a carne tenha continuamente subido de prêço, no país. A explicação desta aparente anomalia se encontra no fato de que o mercado nacional da carne é controlado por. quatro grandes cartéis que, na realidade, comandam a indústria e o comércio do gênero, em todo o Novo Mundo: são os cartéis anglo-americanos WILSON, ANGLO, ARMOUR e SWIFT. Seus grandes frigoríficos estão voltados bàsicamente para a exportação. Não fazem novos investimentos para aperfeiçoar a indústria, porque lhes interessa sobretudo a remessa de superlucros para o exterior. Assim, o prêço da carne no Brasil é regulado pelo do mercado internacional, bem como pela cotação do dólar. A lei da oferta e da procura não funciona.
O consumo médio diário de leite, «per capita», nas cidades brasileiras, é extremamente baixo: 145 gramas! E chega ao nível baixíssimo de 9 gramas apenas, em Manaus. As enormes diferenças nesse consumo médio, segundo as classes sociais, se podem avaliar, tomando-se como referência, não simplesmente a população das áreas urbanas, mas também a das suburbanas; então, o consumo médio «per capita» cai para 28 gramas diárias de leite! Tudo isso é horrível, se considerarmos que o mínimo tolerado pelos nutricionistas é de 200 gramas por dia, e que a população do Brasil tem uma percentagem muito elevada de crianças.
As causas do ba.ixo consumo de lacticínios e de leite in natura da população brasileira não devem ser procuradas somente nos hábitos alimentares. O leite tem um alto custo de produção e seu prêço é ainda artificialmente elevado pelas emprêsas e cooperativas que exploram o comércio. O baixo poder aquisitivo da população, em geral, torna-ü inacessível à dieta das classes pobres.
No após-guerra, grandes fábricas de leite em pó se estabeleceram no Sudoeste do Brasil (Glória, Nestlé, Mococa, etc.), ao mesmo tempo em que grandes organizações passavam a controlar o comércio do leite líquido para as cidades de Rio de Janeiro e São Paulo. Se, de um lado, êsses acontecimentos tiveram um aspecto positivo, já que concorreram para associar a agricultura à pecuária, particularmente em São Paulo, por outro lado acentuaram a especulação sôbre os preços do leite e derivados.
As técnicas extensivas adotadas na pecuária leiteira do Brasil conduzem igualmente à produção de leite de qualidade inferior. A esmagadora maioria do leite vendido para o Rio e São Paulo pertence ao tipo C. Somente a colónia de Holambra, de holandêses, entre Campinas e Moji-Mirim, produz leite de tipo A, atendendo a uma pequeníssima parte do mercado paulistano.
De qualquer forma, a previsão formulada por WAIBEL, no seu artigo «As regiões pastoris do hemisfério Sul», publicado em 1920 e tantos, está se realizando, apesar dos obstáculos acima analisados: O Brasil se torna uma das grandes nações pecuaristas do mundo.
Texto de Orlando Valverde publicado na revista Finisterra (Revista Portuguesa de Geografia), Lisboa, volume 2, nº 4, 1967, excertos pp.245-260 do livro do mesmo nome publicado em 1967 pelo Centro de Estudos Geográficos, Rio de Janeiro. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa. A grafia original foi mantida.
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