A competição entre Portugal e outros países europeus pelo domínio do Brasil acirrou-se durante o período da União Ibérica, mas não se deveu unicamente a esse fato. Prendia-se, antes, à rápida implantação dos canaviais e da exportação do açúcar, um dos produtos mais rentáveis da época.
Em meados do século XVI, mesmo antes de a produção brasileira dominar os mercados mundiais, toda a vida da Colônia já se organizava em tomo dos “fogos” dos engenhos. O Nordeste litorâneo tomava-se o palco da civilização do açúcar, dominada pela aristocracia mais poderosa da América, impulsionada pela comercialização do produto e pelo trabalho dos escravos. Em um polo dessa sociedade aristocrática e patriarcal estava o poderoso senhor de engenho, dono dos canaviais e do açúcar.
No outro extremo ficavam os negros, que durante o dia se esfalfavam na lavoura e à noite se amontoavam na senzala. Entre um pólo e outro, estavam os plantadores de cana, que, embora ricos, não dispunham de capital suficiente para montar seus próprios engenhos e, assim, deviam subordinar-se ao senhor.
Estavam também os trabalhadores livres, empregados na administração colonial e na grande propriedade produtora, e uma multidão de brancos marginalizados, aos quais se juntavam os escravos alforriados.
Pouco tempo duraria o regozijo da Coroa com os lucros fabulosos dos canaviais nordestinos, pois logo os mercadores dos Países Baixos se apossariam não só das técnicas da produção açucareira, como dos próprios engenhos brasileiros. E, para consolidar sua supremacia, ainda conquistariam, por certo período, o cobiçado monopólio do comércio de escravos.
A cana-de-açúcar chega ao Brasil
A mais lucrativa empresa comercial da América portuguesa teve início no século XV, quando o infante D. Henrique importou da Sicília as primeiras mudas de cana-de-açúcar, que mandou plantar na ilha da Madeira.
A cultura logo se difundiu pelos arquipélagos dos Açores, Cabo Verde e de São Tomé, em condições tão favoráveis que em pouco tempo dava a Portugal a supremacia no mercado mundial. Na segunda metade do século XV, enquanto declinavam as plantações do Mediterrâneo, nas ilhas do Atlântico os portugueses familiarizavam-se com a técnica da agroindústria açucareira. A expansão da lavoura canavieira chegou mesmo a fomentar, em Portugal, a fabricação dos utensílios e equipamentos para os engenhos.
Num primeiro momento, o açúcar das ilhas foi encaminhado aos centros de comercialização de especiarias e artigos exóticos, controlados principalmente pelos venezianos. Logo ficou evidente, entretanto, que esses canais eram demasiado estreitos; em 1472 uma parcela do açúcar começou a ser diretamente levada para a Flandres.
No final do século, uma crise de superprodução obrigou Portugal a restringir a exportação das ilhas, para sustentar os preços no mercado mundial; nessa época, o porto flamengo de Antuérpia absorvia anualmente 40 000 arrobas de açúcar — 1/3 da produção da ilha da Madeira.
A hegemonia brasileira
A importância da Flandres aumentou a partir da segunda metade do século XVI, quando o açúcar brasileiro começou a chegar aos mercados europeus. Senhores de vasta rede bancária e de poderosa frota mercantil, os flamengos eram, então, os únicos que possuíam flexibilidade comercial suficiente para criar um mercado amplo para o produto, que, no Brasil, seria cultivado em escala muitas vezes superior à das ilhas. Há indícios de que os capitais flamengos financiavam a instalação de engenhos na América portuguesa — prática iniciada por Erasmo Schetz e seus filhos, que, em 1533, adquiriram o estabelecimento pioneiro implantado em São Vicente por Martim Afonso de Sousa.
Vários fatores contribuíram para a hegemonia do açúcar brasileiro sobre seus concorrentes, no início do século XVII. Em primeiro lugar, o aumento da produção do Nordeste coincidiu com a alta dos preços na Europa, provocada pelo afluxo dos metais preciosos da América espanhola. Nesta fase — conhecida como “revolução dos preços” —, circulava maior quantidade de moedas, possibilitando mais ampla aquisição de produtos caros e luxuosos como o açúcar. Em segundo lugar, a Coroa limitou as cotas de açúcar procedentes da Madeira e estimulou o aumento da produção brasileira; assim procurava impedir a queda dos preços e a concorrência entre os principais produtores.
Finalmente, a conquista dos tesouros astecas e das minas mexicanas provocou o desinteresse dos espanhóis pela lavoura açucareira, implantada desde 1506 no Haiti, em Cuba e Porto Rico. Sem a concorrência dos espanhóis, os portugueses transformaram o açúcar brasileiro no grande protagonista do comércio mundial no século XVII.
Viagem do açúcar através do Brasil
O primeiro engenho de que se tem notícia segura foi montado em São Vicente em 1532: o Engenho do Governador, mais tarde chamado Engenho de São Jorge dos Erasmos. A iniciativa de Martim Afonso de Sousa encontrou muitos seguidores, sendo criados, até o final do século XVI, mais de uma dúzia de estabelecimentos produtores de açúcar na região da Baixada Santista.
A capitania do açúcar
Em 1542, começou a funcionar o primeiro engenho em Pernambuco; em 1570, segundo informa Pêro de Magalhães Gandavo, havia na capitania de Duarte Coelho 23 engenhos; por volta de 1583-1584, esse número subia a 66, afirma o padre Fernão Cardim. Por essa época a produção de São Vicente entrava em declínio, pois as condições geográficas limitavam a expansão dos canaviais. Em Pernambuco, ao contrário, os solos de aluvião — massapês — próximos ao rio Capibaribe e os terrenos de barro vermelho e argiloso, comuns nas encostas do interior, revelavam-se excelentes para o açúcar.
Além disso, a ausência de obstáculos naturais favorecia a abertura de caminhos até o litoral e a rede hidrográfica permitia o transporte do produto por meio de pequenos barcos. O clima quente, com uma estação seca e outra chuvosa bem definidas, a menor distância da Europa e o regime de ventos favorável à comunicação com a Metrópole somavam-se aos fatores que fizeram de Pernambuco a capitania do açúcar.
Os engenhos modestos
Na Bahia e no Espírito Santo, também se cultivou cana-de-açúcar. Entretanto, dificuldades de locomoção e a ameaça indígena conservaram os engenhos junto aos pequenos rios da faixa costeira. Em 1570 havia dezoito engenhos na Bahia, na região do Recôncavo; em 1580, já eram 36. Apesar de reduzida, a produção do Rio de Janeiro conseguia fazer face à nordestina graças à existência de um mercado consumidor na América espanhola, abastecido pelo contrabando dos “peruleiros” do rio da Prata. Por volta de 1580, o litoral brasileiro contava com 115 engenhos, que produziam anualmente 350 000 arrobas de açúcar. O Brasil seria, dentro de pouco tempo, o maior produtor mundial.
Dois tipos de colônia
A forma como os engenhos se instalaram e rapidamente se multiplicaram no Brasil insere- se num quadro mais amplo, referente à natureza do tipo de colonização aqui implantado. Basicamente se estabeleceram nas terras americanas descobertas pelos europeus dois tipos de colônia: de exploração — nas quais se inclui o Brasil — e de povoamento.
As colônias de povoamento surgiram na América do Norte, na região da Nova Inglaterra, caracterizadas por uma economia assentada na pequena propriedade e voltada para a produção de gêneros ligados à subsistência e ao consumo interno. Exceto no período inicial, em que foi frequente a servidão temporária — recaindo sobre os colonos pobres, que deveriam trabalhar durante certo prazo para o patrocinador de sua viagem —, a economia dessas colônias utilizou sempre a mão-de-obra assalariada e o produtor independente.
As colônias de exploração
Nas regiões tropicais e subtropicais, que abrangem os atuais Estados norte-americanos da Virgínia, das duas Carolinas e da Geórgia, as Antilhas e toda a América do Sul, implantaram-se as colônias de exploração. Sua economia baseava-se na exploração de grandes extensões de terra destinadas à produção de gêneros exportáveis para a Europa e cultivados pelo braço escravo.
As colônias de exploração concentravam-se na produção de alguns artigos altamente lucrativos para suas respectivas metrópoles ou para as grandes potências mercantis da época. Pertenciam a essa categoria os artigos exóticos, inexistentes na Europa, que podiam ser produzidos em larga escala. Dificilmente o colono europeu, desejoso de lucros rápidos, se submeteria, nos trópicos, ao duro trabalho que esses produtos requeriam.
O recurso à mão-de-obra escrava despontou, assim, como uma alternativa promissora, pois permitia aumentar os ganhos por meio da supe- rexploração do trabalho dos cativos e, ao mesmo tempo, criava um negócio rendoso: o tráfico negreiro.
A grande unidade produtora das colônias de exploração assentou-se, pois, em três pilares fundamentais: a grande propriedade — “latifúndio” —, a especialização da produção — “monocultura” — e o trabalho escravo. Esses elementos, presentes tanto na América portuguesa como na espanhola, envolveram a agricultura, a mineração e até mesmo o extrativismo. Ao desaparecer, deixaram traços profundos na vida econômica, política e social das antigas colônias latino-americanas.
O quadrilátero do açúcar
A grande unidade produtora surgiu no Brasil ligada à lavoura canavjeira. Além das imensas plantações de cana-de-açúcar e das poucas casas dos trabalhadores assalariados, compunham-na quatro edifícios: a casa-grande, o engenho, a capela e a senzala.
Ao conjunto dessas construções, dispostas mais ou menos de forma quadrangular, dá-se o nome de “quadrilátero do açúcar”. A denominação casa-grande, usada no Nordeste, refe- re-se à residência do senhor de engenho — que na região sul recebeu o nome de morada e, posteriormente, sede. Térrea ou assobradada, de estilo imponente e pesado, a casa-grande não tinha unicamente a função de residência, mas também de fortaleza, hospedaria, escola e até mesmo banco.
A capela era, em geral, uma extensão da casa-grande; aos domingos e dias santos congregava os moradores das redondezas, que para ali afluíam também na ocasião de batizados, casamentos e funerais (na capela eram sepultados os membros da família senhorial). Próximo à casa-grande e à capela erguia-se a senzala, onde se amontoavam os escravos, em péssimas condições de higiene e salubridade.
As várias casas do engenho
Inicialmente chamava-se engenho às instalações necessárias ao fabrico do açúcar; com o passar do tempo, entretanto, o termo estendeu-se a toda a grande unidade produtora. O engenho em sentido restrito podia abranger várias construções, destinadas a diferentes tarefas. Assim, na casa da moenda esmagavam-se as canas para se obter o caldo, cozido na casa da fornalha. Nô cendal das forjas, esfriava-se e condensava-se o melado, alvejado na casa de purgar. Nos galpões ou áreas anexas, os pães de açúcar eram quebrados e o produto reduzido a pó era exposto ao sol para secagem. Todo o vasilhame necessário à preparação do açúcar era guardado na.casa dos co- bres. Para além dos edifícios, estendiam-se os canaviais, os currais e as matas. Cortando o conjunto, serpenteava um rio, que movia o engenho real (de roda-d’água) e constituía o principal meio de transporte.
**********
Pequena história de um produto de luxo
Planta silvestre da costa indiana de Bengala, a cana-de-açúcar foi cultivada primeiramente em jardins. O açúcar era considerado um remédio, e como tal aparecia nas prescrições dos médicos persas e bizantinos. Por volta do século VIÍI, a planta difundiu-se pelo litoral chinês, nas vizinhanças de Cantão.
Dois séculos depois ganhava o Egito, onde o açúcar era fabricado com técnicas aprimoradas. Os cruzados conheceram-no na Síria e, no final do século XIII, levaram-no para a ilha de Chipre, enquanto os árabes o introduziam na Sicília e em Valência».na Espanha moura. Foi a partir de Valência que, no século XV, os canaviais desceram para o Marrocos; na mesma época os portugueses iniciavam suas plantações nas ilhas do Atlântico e os espanhóis cultivavam as primeiras mudas de cana nas Canárias e nas Antilhas.
O açúcar tomara-se artigo de luxo, vendido em grãos nas boticas e lojas de especiarias; já no final da Idade Média constituía herança valiosa e presente de reis. O hospital dos pobres de Paris recebeu em legado cerca de 20 quilos de açúcar. Leão VI da Armênia, expulso de seu país em 1383 pelos muçulmanos, recebeu treze arráteis de açúcar de Carlos VI da França, cujo filho, Carlos VII, seria presenteado com um quintal de açúcar pelo sultão otomano.
**********
Em suas 'Memórias para a História da Capitania de São Vicente', frei Gaspar da Madre de Deus narra como se constituiu a sociedade para a criação do primeiro engenho do Brasil: “Consta, por duas escrituras lavradas em Lisboa e registradas no Cartório da Fazenda Real de S. Paulo, que Martim Afonso de Sousa e Pedro Lopes de Sousa celebraram contrato de sociedade com João Veniste, Francisco Lobo e o piloto-mor Vicente Gonçalves, para o efeito de se levantarem dois engenhos nas Capitanias destes Donatários, obrigando-se eles a darem as terras para isso necessárias nas Capitanias respectivas: de sorte que, no engenho construído na Capitania de Martim Afonso, teria ele a quarta parte e uma cada um dos três sócios, João Veniste, Francisco Lobo e o Piloto-mor: da mesma forma seriam três partes dos mencionados três sócios e uma de Pedro Lopes no outro engenho que se erigisse em suas terras. Consta, mais expressamente, que Martim Afonso satisfez à condição, assinando as terras no engenho de S. Jorge, situado na Ilha de S. Vicente, e consignando mais para refeição do dito engenho as terras que haviam sido de Rui Pinto, as quais ficam nos fundos da Ilha de Santo Amaro, ao Norte do rio da Vila de Santos, aquele rio que forma a Barra grande do meio. (...) Foram vários os apelidos do sobredito engenho, por terem sido também diversos os seus donos, em tempos diferentes: no princípio, chamaram-lhe Engenho do Senhor Governador, por ser do Donatário, ao depois Engenho dos Armadores e, ultimamente, S. Jorge dos Erasmos, segundo tenho visto nos livros das Vereações de S. Vicente. Martim Afonso, Francisco Lobo e o Piloto-mor venderam suas partes ao alemão Erasmo Schetz [sic]; ultimamente, os filhos deste dono compraram também o quinhão de João Veniste, e por isso se ficou chamando o engenho S. Jorge dos Erasmos”.
Publicado em "Saga: Grande História do Brasil" vol.1, Colonia 1500/1640, editor Victor Civita, Abril Cultural,São Paulo, 1981, excertos pp.161-169. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
No comments:
Post a Comment
Thanks for your comments...