Vila `Penteado da família Conde Antonio Alvares Penteado |
(Gilberto Freyre)
1. As elites se modernizam. O solar urbano é o novo centro da vida social.
A virada do século surpreendeu a família patriarcal em pleno processo de decomposição. O progresso urbano traduzia o inexorável deslocamento do eixo econômico do campo para a cidade. Em 1908 existiam já cerca de 3 000 indústrias no país. Acompanhando o crescimento das cidades , uma parte das velhas famílias patriarcais abandona o campo, trocando a casa-grande de fazenda ou de engenho pelo sobrado. Sem abandonar completamente suas terras, muito fazendeiro faz-se ingustrial e comerciante. Em São Paulo, os Prado e os Alvares Penteado são o protótipo desse personagem híbrido.
Wenceslau Braz e Francisco Salles, em Minas, combinam o exercício da advocacia com a administração de suas fazendas e a direção de suas fábricas. No Nordeste, barões do açúcar, como o coronel Cornélio Padilha, transformam-se em usineiros. Quem não acompanha o processo arruína-se. Os velhos engenhos de açúcar formam-se de "fogo-morto". Novos personagens tendem a afirmar-se. E a época dos Delmiro Gouveia, dos Matarazzo, dos Crespi, dos Lundgren.
Familia Prado |
Quando, em 1877, Veridiana Prado separou-se de seu marido, Martinho Prado- que era também seu tio paterno -, a notícia ecoou como uma bomba nos salões aristocráticos de São Paulo. Não era todos os dias que isso acontecia e menos ainda com uma família da tradição patriarcal dos Prado.
Filha do Barão de Iguape, Veridiana pertencia a uma família de notáveis fundada no primeiro quartel do século XVIII pelo sargento-mor português Antonio da Silva Prado. O filho deste, o primeiro Martinho Prado, chegou a Capitão-Mor da Milícia de Jundiaí, em São Paulo, além de ocupar importantes cargos na magistratura local. A geração seguinte manteve a estrela da família em ascensão, por meio de casamentos com famílias ilustres e golpes de audácia.
O segundo Antonio Prado, filho de Martinho, casou-se com Anna Vicencia Rodrigues de Almeida. Morto o marido, Anna Vicencia voltou a casar-se, desta vez com seu próprio cunhado Eleutherio, irmão de Antonio.
Pragmatismo, devoção ao trabalho e paixão política parecem ter sido as três qualidades, mais cultivadas pela família, já nessa época. Destituídos de um passado exclusivamente rural e sem contar com bandeirantes ilustres em suas raízes genealógicas, os Prado jamais desprezaram a prosaica atividade industrial e comercial, tão antipatizada pelos aristocratas de seu tempo.
Enquanto Eleutherio tomava-se um próspero plantador de cana em Jundiaí, seu irmão, o segundo Antonio Prado, e mais tarde seu sobrinho Antonio cuidavam do comércio. Este terceiro Antonio Prado tomar-se-ia, aliás, membro da nobreza imperial, com o título de Barão de Iguape.
Comerciante de açúcar e de escravos, coletor de impostos e grande fazendeiro, o terceiro Antonio Prado seria o protótipo do patriarca que soube adaptar-se aos novos tempos, exercendo uma dinâmica atividade política e mercantil. Seguindo a prática que se tomara uma das marcas registradas da família, casou sua filha, Veridiana, com Martinho, irmão dele, o que permitiu ao clã conservar a sua apreciável fortuna nos limites estreitos dos laços familiares.
Seria Veridiana, casada aos treze anos de idade, quem primeiro abalaria a sólida estrutura patriarcal da família, rompendo com o marido e escandalizando a aristocracia paulista. Contando com notável ascendência sobre os filhos, passou a ocupar o lugar reservado ao patriarca. Em 1884 viajou para a Europa e, ao retomar, fez construir no bairro de Higienópolis um portentoso palácio, em estilo Renascença, onde se cercou de obras de arte. A "Chácara de Dona Veridiana", como a mansão ficou conhecida, tornou-se o núcleo mais importante da vida social e intelectual de São Paulo.
Quebrando a tradição de isolamento do círculo familiar, Veridiana introduziu a sociedade de salões. Seguia nisso, como em outras coisas, o modelo parisiense, e recebia em suas soirées figuras como Afonso Arinos, Theodoro Sampaio, Graça Aranha e Ramalho Ortigão.
Entre os últimos dias do Império e os primeiros do novo século, a família atingiu o apogeu econômico, político e cultural. No entanto, a geração representada pelos filhos de Veridiana já manifestava clara tendência ao individualismo e à autonomia em relação ao clã familiar.
O mais velho deles, o quarto Antonio Prado, foi ministro da Agricultura e das Relações Exteriores e conselheiro do Império, tornando-se uma das principais figuras do Partido Conservador. Abolicionista, defensor do trabalho livre, continuou atuando na política depois da proclamação da República: em 1890 elegeu-se deputado à Constituinte e em 1899 tornou-se prefeito de São Paulo, encarregando-se de remodelar e sanear a cidade, nos treze anos de sua administração. Além de grande fazendeiro de café, o Conselheiro Antonio Prado possuía interesses em inúmeros empreendimentos econômicos.
Seu irmão Martinico, igualmente fazendeiro, era republicano. Outro irmão, Caio, foi presidente da Província do Ceará, onde morreu. E o acadêmico Eduardo Prado, quarto filho de Dona Veridiana, monarquista e católico praticante, desempenhou importante papel na vida intelectual brasileira, sendo autor de um livro premonitório, A Ilusão Americana. Muito ligado a Eça de Queirós, chegou a inspirar um dos personagens do romancista português, o Jacinto, de A Cidade e as Serras .
Mas nem tudo eram negócios, literatura ou política na vida do clã. Além das viagens à Europa e dos bailes no palacete de Higienópolis, havia as temporadas de praia no Guarujá, em São Paulo, na vasta propriedade de Elias Chaves, marido de Dona Anesia Prado e genro de Dona Veridiana.
Nessa região, os Prado passavam férias de verão, em companhia dos filhos de Andrea Matarazzo ou de um menino santista de pais ingleses, chamado Roberto Simonsen. E, segundo um costume da época, para defender-se do sol e "da cor enegrecida e vulgar" que os seus raios imprimem à pele das pessoas, essa elite paulista dispunha de elegantes chalés de madeira, que Elias Chaves importara dos Estados Unidos.
3. O filho do Conselheiro vive a Belle Epoque. E sauda os novos tempos.
De todos os filhos do Conselheiro foi Antonio Prado Junior, o quinto na linha de sucessão, aquele que mais vivamente encarnou o otimismo transbordante da Belle Époque. Nascido em 1880, foi educado entre São Paulo e Paris, desfrutando a mocidade numa sucessão de viagens, festas elegantes e competições esportivas. Aos quinze anos bateu o recorde sul-americano de ciclismo, numa prova de 1100 metros. Em seu Packard amarelo, fez uma viagem de 14 000 quilômetros através da Europa.
Foi o primeiro homem a empreender uma viagem de automóvel entre São Paulo e Rio, e em 1908 venceu um circuito entre São Paulo e Santos, pilotando um Delage. Amigo de Santos-Dumont, fez, ao lado do "Pai da Aviação" uma viagem de balão esférico entre Paris e a Bélgica. No ano de 1906, o periódico mundano 'São Paulo Magazine' elogiava-o como "um dos mais ativos organizadores da vila elegante esportiva de São Paulo".
Família Conde Antonio Alvares Penteado |
Estranho latifundiário esse, que, ao receber de seu pai uma fazenda, batizou-a com o execrado nome de "Palmares", em plena sociedade escravocrata. Com efeito, o Quilombo dos Palmares fora, no século XVII, o símbolo mesmo da resistência dos escravos contra os donos de terras. A simples evocação dos Palmares provocava nos patrícios paulistas o mesmo santo horror que a lembrança de Espártaco despertava nos senadores da velha República Romana.
E agora, em 1873, esse jovem abolicionista, filho e neto de grandes fazendeiros, do alto de seus 21 anos de idade, colocava na porteira de sua bela fazenda em Santa Cruz das Palmeiras, na zona cafeeira da Província de São Paulo, a expressão mil vezes amaldiçoada: Palmares ...
O jovem chamava-se Antonio Álvares Leite Penteado e estava destinado a uma meteórica carreira nos negócios, passando, quase sem transição, da agricultura para a indústria, no curso do agitado período que vai do fim do Império até o começo do século XX.
O futuro Conde Álvares Penteado (o título lhe seria outorgado pelo Vaticano) pertencia a uma dessas famílias de tradição, na origem da qual estava um negociante lusitano. Bisavô de seu bisavô, Manoel Correia encontrava-se no Recife no alvorecer do século XVII e pôde assistir à invasão holandesa da Capitania de Pernambuco.
Seu filho, Francisco Rodrigues Penteado, voltado para a música e um tanto aventureiro, viajou para Lisboa por volta de 1640, em busca de uma herança. Deslumbrado com a capital portuguesa, o jovem acabaria por dissipar a fortuna paterna. Inclinado a pensar que "a vida é sonho", como no drama de Calderón de la Barca - seu contemporâneo - só percebeu que estava pobre em 1648, quando resolveu voltar para o Brasil.
Depois de ganhar a vida como professor de música, no Rio de Janeiro, Francisco passou a viver em São Paulo, onde se casou com Dona Clara de Miranda, sobrinha do bandeirante Fernão Dias Paes, e estabeleceu-se como fazendeiro na Vila de Parnaíba.
Um dos muitos filhos que teve, João Correia Penteado, morreu em 1726 "como cidadão nobre de São Paulo", não sem antes contribuir com seis filhos para o povoamento da Capitania. Um destes, Francisco Rodrigues Penteado, foi pai do capitão Bernardo José Leite Penteado, avô do futuro Conde Antonio Álvares Penteado.
Grande fazendeiro, o capitão Bernardo deixou nove filhos, dos quais o mais notável foi João Carlos Leite Penteado, juiz de direito da Comarca de Mogi Mirim.
Casando-se com a filha de um abastado senhor de terras e de escravos, o filho do capitão Bernardo confirmava a tradição familiar de estabelecer alianças matrimoniais no interior da aristocracia rural. E preparava o caminho para a prodigiosa carreira de seu filho Antonio, nascido a 3 de fevereiro de 1852.
Aos 25 anos de idade, o futuro Conde já conhecia a Europa e alimentava sonhos industrialistas. Sua fazenda Palmares não estava organizada segundo os moldes da época: era dotada de máquinas agrícolas e grande parte do trabalho era realizado por colonos livres e trabalhadores imigrantes. Seguindo o exemplo do senador Vergueiro, Álvares Penteado trouxe para suas terras muitos agricultores europeus, promovendo, antes mesmo de 1888, a gradativa substituição dos escravos por trabalhadores livres. Já por essa época, reconhecida por seus pares sua posição de liderança na região, foi nomeado tenente-coronel da Guarda Nacional.
Ao casar-se com Anna de Lacerda Franco, o jovem Antonio Penteado estabelece sólida aliança com uma das casas nobres de Piratininga, pois a moça é filha do Barão de Araras.
A proclamação da República provoca nele uma reação de amargo "realismo". Seu monarquimo tinha raízes profundas, mas não ia ao ponto de impedir-lhe a percepção de que os dias do Império estavam contados, de que a mudança seria irreversível. Nessa época, decide instalar-se em São Paulo e montar grande indústria. E enquanto espera pela construção de seu palacete na rua Brigadeiro Tobias, viaja para a Europa em 1890. Lá permanece por muito tempo com a esposa e os cinco filhos.
A estada na Europa o faz sonhar com uma indústria de papel. Mas, ao retornar a São Paulo, dificuldades técnicas o levam a optar pela indústria têxtil. Em 1892 é inaugurada sua Fábrica Santana, cujas máquinas são importadas da Inglaterra. Dois anos depois a fábrica já emprega oitocentos operários, número que subirá para 3 000 em 1906. Antes do fim do século, em 1898, nova unidade industrial é inaugurada, ao lado da primeira. Desta vez é a Fábrica Penteado, destinada à manufatura de têxteis de lã.
Como alguns capitães de indústria de sua época, Álvares Penteado compreendeu a tempo a inevitabilidade de um processo de substituição de importações e lançou-se à ocupação de espaços deixados vazios por uma economia que era quase exclusivamente agrícola.
Protetor da Escola Prática de Commercio de São Paulo e presidente da Companhia Mogyana de Estradas de Ferro, orientou a educação de seus filhos no sentido de dar-lhes uma formação eminentemente técnica, ao contrário das tendências bacharelescas, muito comuns na época.
Enquanto Armando Álvares Penteado estudava Engenharia, Sylvio passava pela Municipal Technical School e pelo Owen's College, ambos em Londres. Suas três filhas , Antonietta, Eglantina e Stella, por outro lado, casaram-se com membros da família Prado, somando duas das maiores fortunas do país.
Em 1902 fez construir um enorme palacete art nouveau, que ocupava um quarteirão inteiro do bairro de Higienópolis, em São Paulo. Era a "Vila Penteado, testemunho do estilo e da opulência de uma época. Ao receber o título de Conde, Antonio Alvares Penteado parecia fundir, em 1907, o capitão de indústria com o barão da lavoura, e fundava uma nova estirpe.
Seus filhos, Sylvio e Armando, foram espíritos abertos para os novos progressos da ciência e da tecnologia. Foram amigos de Santos-Dumont e apaixonados pela aviação. Em 1903, associaram-se ao Aero Club de França, e Armando chegou a construir vários engenhos aéreos. Um deles foi exposto, com grande sucesso, na Exposição do Grand Palais, na Paris de 1908.
Quatro anos antes, Sylvio Penteado assombrou a pacata São Paulo ao realizar um vôo de balão, que durante três horas cortou silenciosamente o céu azul de Piratininga.
5. Poder, prestígio e fortuna somam-se pelo casamento. Na arvore genealógica, os laços de família.
Nem bem haviam cessado os últimos acordes da marcha nupcial e já os noivos, Antonio Prado Junior e Eglantina Álvares Penteado, arrumavam as malas e corriam para o vapor que os levaria em lua de mel para a Europa. No cais, lenços brancos acenavam-lhes em despedida. E, enquanto suarentos estivadores interrompiam seu trabalho para assistir ao acontecimento, a mãe da noiva deixava escapar uma furtiva lágrima.
Casando-se com a filha do Conde em 1900, o filho do Conselheiro seguia, na verdade, os passos de seu primo Caio Prado, que se unira a Antonietta Álvares Penteado. Assim se criavam laços entre duas das mais importantes famílias. do high life paulistano. Outro de seus primos; Martinho Prado Netto, casaria mais tarde com a terceira filha do Conde, Stella, o que daria um fecho de ouro a essa tríplice aliança.
Além das chamadas razões do coração, essas uniões respondiam a bem definidos interesses de famí1ia. Tanto a aristocracia da terra como as novas elites emergentes procuravam circunscrever os casamentos de seus filhos e filhas nos estreitos limites de sua própria camada social.
Para algumas famílias, como a dos Prado, isso se traduziu, durante muito tempo, em casamentos consanguíneos, que prevaleceram até a geração dos filhos de Dona Veridiana.
Mesmo Eduardo, homem que amava sua independência, acabaria acedendo em casar-se com uma prima, à qual nunca amou, a silenciosa Carolina.
Mas as tradições da endogamia seriam pouco a pouco abandonadas nas gerações seguintes. Assim é que os Prado estabeleceram laços com outros clãs da aristocracia, como os Junqueira, os Cunha Bueno, os Pires Ferreira e os Souza Aranha. Ante a alternativa de ter de casar-se com uma prima pobre do interior, um Prado preferia invariavelmente a cultivada mão de uma condessa ou a filha de algum fazendeiro ou comerciante bem situado. Plinio Prado por exemplo, filho de Martinico, casou-se com sua prima-irmã Lucilla, filha de Elias Pacheco e Chaves, próspero homem de negócios.
A empresa Prado e Chaves chegou a ser a maior exportadora de café da Primeira República. Lavínia, outra filha de Martinico, uniu-se a Alberto de Oliveira, filho de um grande comerciante no Recife. E enquanto Antonietta Prado, casava-se com Afonso Arinos de Melo Franco, Marina Prado tornava-se nora do Barão de Anhumas, opulento fazendeiro em Campinas.
Culminando esse processo, Fabio Prado desposou a filha de Rodolfo Crespi, um recém-chegado empresário imigrante. Sem raízes na história do país e sem tradição bandeirante.
Os Crespi representavam uma nova elite em ascensão, cujo destino estaria indissoluvelmente ligado ao futuro da industrialização brasileira.
6. A filha do Conde, uma paulista quase parisiense
"Um dos mais belos ornamentos da nossa sociedade feminina", dizia, de Eglantina Penteado, o periódico 'São Paulo Magazine' a 15 de junho de 1906, homenageando a filha do Conde Álvares Penteado. Sua educação fora quase inteiramente realizada em Paris, onde estivera pela primeira vez em 1890, aos sete anos de idade, e seu estilo de vida era tão francês quanto o daquelas 'jeunes filles' retratadas por Renoir no fim do século. Educada por preceptoras, Eglantina tornou-se o protótipo da jovem aristocrata da Belle Époque, pontificando nos salões elegantes de São Paulo e de Paris, onde exibia sua beleza e refinamento. Seu gosto pelo piano, pela literatura e pelo teatro complementava os dotes da jovem, cobiçada pelos moços casadoiros da aristocracia paulista.
Publicado em "Nosso Século" vol.1, 1900/1910, editor Victor Civita, Abril Cultural,São Paulo, 1980, excertos pp.133-143. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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