11.26.2017
O PALÁCIO DE CARLOTA JOAQUINA
No dia 19 de março de 1808, o povo carioca recebeu a família real e os quinze mil emigrados da comitiva com festas deslumbrantes. A vinda da Côrte Portuguesa exigiu melhoramentos em todos os edifícios públicos.
O pequeno palácio do vice-rei foi aumentado com mais um andar e ligado por um passadiço ao próximo Convento do Carmo, cuja igreja conventual se transformou em Capela Real.
Preparou-se para a família real uma residência chamada Quinta da Boa Vista, presente de um negociante rico, o famoso Elias Silva. Um outro ricaço presenteou D. João com uma residência na Ilha do Governador; uma viúva com muitos bens, mulata que foi casada com José Nunes, deu à família real a bela Chácara de São Domingos, na praia Grande; um vassalo fiel presenteou o Regente com uma chácara na Ilha de Paquetá. Os habitantes do Rio de Janeiro foram pródigos em dádivas ao soberano português.
E os quinze mil parasitas, que compunham a comitiva real?
Estabeleceu-se então um sistema interessante de despejo sumário e quase inacreditável, do qual escapou a feliz cidade de Salvador na Bahia. O emigrado andava pela cidade com um meirinho, escolhia um casa qualquer que lhe conviesse, e dizia ao oficial de justiça:
- Quero esta.
O meirinho entrava e notificava ao dono da casa:
- Em nome do Regente, requisito sua casa e mobiliário. Mude-se em vinte e quatro horas, sob pena de prisão.
- E para onde? Balbuciava o dono da casa, apavorado.
- Para as matas da Tijuca, para o Pão de Açúcar, para o Corcovado ou para o inferno, retorquia violentamente o meirinho.
E o coitado do proprietário via logo escrever-se, na parede de seu prédio, umas letras grandes com tinta azul ou giz - P.R. - que queria dizer Príncipe Regente, ou na expressão popular: Ponha-se na Rua...
E assim, expulso de sua casa por um processo sumário, ia o cidadão com a família para a casa do diabo... Numa dessas oportunidades foi o diretor da balança real escolher prédio em Botafogo e ali viu uma belíssima chácara, no centro de lindo jardim no estilo inglês. Pertencia a José Fernandes, filho do famoso contratador de diamantes Dr. Fernandes e da histórica Chica da Silva, sua ex-escrava.
- Em nome do Regente, disse o meirinho na presença do aferidor da balança do erário, intimo o sr. José Fernandes a ceder o prédio ao sr. Trancoso do Erário Público.
- Muito bem, sr. Meirinho, já esperava por essa. O sr. Trancoso quer também requisitar o meu mobiliário?
O funcionário do Erário Real passou os olhos na mobília, viu que era toda de jacarandá e pau-santo, bela e resistente.
- Certamente, sr. Fernandes...
- Muito bem. É sua. E os meus quadros? E os meus vasos de Sévres?
- Ora, isso está incluído na mobília...
- E os meus livros?
- Também são objetos caseiros. Fico com eles...
- E o meu oratório com os santos?
- Onde viu o sr. casa de cristão sem santos?
- Pois fique com o oratório e com os santos...
- E minha escrava arrumadeira, o meu pajem e a minha cozinheira também, sr. Trancoso?
- Também, sr. Fernandes.
Então José Fernandes foi a um quarto e de lá trouxe a sua mulher, uma gorducha cor de chocolate e olhos mortiços.
- Sr. Trancoso, apresento-lhe minha esposa. Quer requisitá-la também em nome do Regente?
Trancoso mirou e remirou a gordalhuda mineira de Diamantina...
Depois, com água na boca, porque cobiçou a mulata, respondeu:
- Até aí não vai, infelizmente, a autorização do Regente, sr.
Fernandes, porque se fosse, eu...
- Eu lhe enfiaria uma faca no buxo, galego sem vergonha, gritou-lhe nas fuças a esposa de Fernandes.
Nesse mesmo dia José Fernandes foi ao Convento do Carmo, onde estava instalada provisoriamente Carlota Joaquina e disse-lhe:
- Senhora, a mais bela residência de Botafogo está às suas ordens. Permita que lha ofereça, mobiliada e com serviçais escravos?
- Aceito, disse Carlota Joaquina. No dia seguinte, o Trancoso, muito vaidoso e satisfeito da vida, foi com a família, todos de carruagem, instalar-se na casa do Fernandes e lá já encontrou a Princesa.
- Que vieram fazer aqui?
- Beijar as mãos de Vossa Alteza, gaguejou, atrapalhado, o Trancoso.
- Ora, vão pentear macacos. Estou cansada de rapapés e de beija-mãos! Ponha-se na rua com a sua tropa e não me apareça mais aqui...
E foi esse o famoso Palácio de Botafogo onde se instalou Carlota Joaquina no Brasil, logo após a sua chegada...
Texto de Assis Cintra publicado em "Os Escândalos de Carlota Joaquina", compilação de Edilberto Pereira Leite,feita a partir da edição de 1934, Civilização Brasileira S/A, Rio de Janeiro. Excertos pp. 22-24. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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