1.15.2018

A SOCIEDADE DOMÉSTICA NA EUROPA FEUDAL



Nessas grandes casas, as relações sociais eram também semiprivadas, semipúblicas, já que os lugares domésticos, como diz um verso do Roman de Renart, eram frequentados por "privados ou estranhos ou amigos". Três categorias de comensais. Os "estranhos" eram aqueles que nenhuma relação afetiva particular ligava ao dono da casa. Talvez seus "privados" se distinguissem de seus "amigos" pelo fato de que lhe estavam ligados pelo sangue: "por amizade", diz o Roman, o lobo e o raposo se chamam de tio e sobrinho. A diferença se devia antes, sem dúvida, a que dos "privados" a casa era a moradia titular, enquanto os "amigos", se tinham livre acesso a essa casa e a seu chefe, ali não tinham residência. Estavam de passagem como os ocupantes da hospedaria monástica.

Os privados formavam o que o francês medieval chama de "ménage" [família] ou a "maisnie", de que se encontra definição jurídica em um auto dos Olim datado de 1282: "Sua própria família permanecendo em sua casa, isso deve ser entendido daqueles que fazem suas próprias tarefas e as suas custas": moradia comum, alimento comum, uma equipe dirigida por um chefe e cujos membros sob suas ordens trabalham juntos em uma tarefa comum — o exato equivalente da fraternidade monástica. Esse corpo podia ser bastante numeroso: na Inglaterra do século XIII a casa de Thomas de Berkeley reunia mais de duzentas pessoas, e o bispo de Bristol precisava de cem cavalos para transportar a dele quando se deslocava. A coesão de um grupo tão vasto provinha do fato de que ele era mantido por uma única mão ou antes, como se dizia na época, "conservado" (retém), sustentado inteiramente por um patrono. O que os "privados" do século XI, do século XII esperavam desse patrono não era fundamentalmente diferente daquilo que reclamava do seu, segundo um formulário merovíngio, meio milênio antes, tal homem que se confiasse a ele: "O alinhamento e o vestuário (victum et vestitum) tanto sobre minhas costas quanto para meu leito, e me calçar, tu mo proporcionarás, e tudo o que possuo permanecerá em teu poder". Entrega de si — semelhante à do monge quando faz profissão — em troca de tudo aquilo de que o corpo e a alma podem ter necessidade. E o direito para aquele que distribui os víveres, que assegura o teto, de corrigir, de flagelar. Falei de um corpo: membros, uma cabeça, um "chefe" — caput mansi, como diz um auto dos arquivos clunisianos no limiar do século XII, cabeça de um "manse" [morada], de uma célula de residência, e de tudo o que ela contém.

Entretanto, como a "família" monástica, esta era francamente dividida em duas partes. De um lado, e comendo separadamente um pão menos nobre, mais escuro, aqueles que serviam (servientes) e que muitas vezes, nas casas muito grandes, estavam estabelecidos no burgo contíguo à morada (parece-me evidente que a população "burguesa" foi, no início do renascimento urbano do século XI, constituída em grande parte pelo "privado", pela domesticidade — especializada em diversos "ofícios" — do senhor, bispo, conde ou castelão). Do outro lado, os senhores, Mas, na sociedade profana, e nisso diferindo da sociedade monástica, agrupavam-se a seu lado, tratados da mesma maneira, os auxiliares encarregados das duas funções principais, a de oração e a de combate, os clérigos em primeiro lugar, formando, quando a casa era de alguma importância, um colégio de cônegos (e por mais leigo que fosse, o senhor participava dessa comunidade, tomava assento em seu centro, em posição magistral) e, por outro lado, os cavaleiros.

A propósito desses servidores de primeira classe, vê-se imediatamente como é difícil separar o privado do público, e os "privados" dos "amigos". Pois as preces que se recitavam na capela do senhor beneficiavam a toda a senhoria, e sua morada era uma fortaleza de onde a paz e a justiça se irradiavam para o território vizinho. Em consequência, aos guerreiros propriamente domésticos vinham juntar-se periodicamente todos os homens residentes nas cercanias em casas próprias e que tinham vocação de combater; durante esse estágio, eles entravam no privado do senhor do castelo, dele recebiam sua ração e seu arreamento, tornavam-se por um tempo seus privados e, quando voltavam para suas casas, permaneciam seus amigos, ligados pela homenagem que fazia deles parentes suplementares. Aliás, o verdadeiro parentesco, de filiação ou de aliança, unia ao chefe de família a maior parte dos clérigos ou dos cavaleiros que o assistiam: eles eram seus filhos, seus sobrinhos, seus primos, legítimos ou bastardos; aos outros, ele dera por esposa filhas de seu sangue, e enquanto que, estabelecendo-os por meio desse casamento, afastava-os de sua casa, unira-os a esta por um laço mais poderoso que os obrigava, que obrigava seus descendentes a voltar a fundir-se de tempos em tempos em sua família.

Com efeito, a exemplo do mosteiro, a morada aristocrática assumia uma função de acolhida que se pode dizer estrutural. Também ela se abria aos pobres, admitidos, como na casa de Lázaro, a recolher o que caía da mesa senhorial, e era uma bênção para o senhor e para toda a casa ver-se assim espoliados por esse parasitismo necessário e ritual. Como o mosteiro, a casa nobre acolhia jovens, para formá-los. Era uma escola que ensinava aos rapazes bem-nascidos os usos de cortesia e de valentia, em que os filhos das irmãs do senhor, os filhos de seus vassalos vinham normalmente fazer seu aprendizado. Ela acolhia enfim os passantes, "amigos" ou "estranhos", parasitas também eles necessários, desde que fossem de boa condição, e um dos gestos essenciais, no simbolismo do poder patronal, era convidá-los a sentar-se à mesa, na sala, para ali saciar-se, ali beber até a embriaguez, e ali estender-se, à noite, para dormir. Em certos dias, a casa não acolhia apenas hóspedes casuais, atraía a seu âmbito privado todas as casas satélites. Assim, por ocasião das cortes solenes, nas grandes festas da cristandade, Natal, Páscoa ou Pentecostes: nesses momentos, a sala, na morada principesca, reencontrava sua função primitiva, basilical, de regalia, dissolvendo-se o privado inteiramente no público. E em todas as casas, grandes ou pequenas, a hospitalidade alcançava seu paroxismo por ocasião das festas nupciais. A "família" do casado projetava-se então fora do recinto ao encontro da esposa que avançava escoltada por sua própria parentela, conduzia-a para a porta, introduzia-a, guiava-a até o quarto, detendo-se por um momento, no entanto, no espaço intermediário, semipúblico, para um festim desta vez desmedido.
 
ORDEM E DESORDEM

Quanto à disposição dos poderes que regiam essa sociedade complexa e em grande parte móvel, a identidade com as estruturas monásticas é, de início, uma vez mais, notável: um pai, um só, como no céu, que no entanto jamais devia agir sem conselho; um conselho masculino, hierarquizado, os jovens sob o jugo dos mais velhos; um pai cujo poder se devia a que, ocupando o próprio lugar de Deus, toda a vida na morada parecia emanar de sua pessoa. A diferença, considerável na verdade, era que, nessa casa, não se vivia em tão estreita proximidade dos anjos, em tão larga distância do carnal, a ponto de a sociedade doméstica ser assexuada, devendo seu chefe, responsável por uma linhagem, prolongar por uma nova geração sua existência e disseminar mulheres entre as casas vizinhas a fim de com elas congraçar-se, portanto procriar. Sua função genital, primordial, obrigava-o a possuir uma mulher em seu leito. Um casal estava estabelecido no centro da rede dos poderes. O feminino encontrava-se posicionado, por certo, sob o inteiro domínio do masculino; contudo, porque essa mulher era a esposa, porque devia ser a mãe dos herdeiros — e, quando não conseguia, não se hesitava muito, no século XI, em recusá-la —, uma parcela do poder de seu "senhor", como ela dizia, projetava-se sobre ela: "dama" (domina), ela também se mostrava dominante, e na medida mesma em que, em posição de parceira sexual legítima e por suas capacidades genéticas, contribuía de maneira decisiva para a extensão da casa.

Pois se tratava disso: o privado que se viu sobretudo até o presente na defensiva, encolhido atrás dos muros, em sua casca, a clausura, tendia, na realidade, como todo organismo vivo, a abrir-se, a expandir-se, e tudo se ordenava na casa, especialmente a autoridade atribuída a seu chefe, para que sua vitalidade estivesse em seu auge: sempre mais parentes, sempre mais amigos, sempre mais servidores. Eis por que se descobre, no mais profundo do castelo de Ardres, uma cela de fecundação e, conjunta, a incubadeira onde amas-de-leite estavam estabelecidas para dispensar a esposa dos cuidados com sua progenitura a fim de que, sem tardar, fosse novamente engravidada. Eis por que as crianças, desde que atingiam a idade da razão, eram divididas em dois compartimentos distintos: um cuidadosamente fechado, para ali conservar meninas, futuras mães, até que fossem transportadas, uma após outra, em cortejo, para uma outra morada da qual se tornariam damas; o outro aberto, onde os meninos não viriam alojar-se senão de passagem, como hóspedes, pois eram soltos, lançados ao exterior para ali apossar-se de tudo o que pudessem, especialmente esposas.

No entanto, o que saía da fecundidade do pater famílias não bastava, e o primeiro dever do senhor, após o de engendrar e de casar, sua preocupação maior, era a de levar a família a crescer mais, atraindo, "conservando" comensais. Esse projeto governava a economia doméstica: nenhuma intenção de investir, e se se tinha o cuidado de acumular reservas no quarto, no celeiro, na adega, não era senão na previsão das festas em que as riquezas da casa seriam alegremente esbanjadas. Constitutio expansae, "organização da despesa", tal é o título de um plano de reforma dos recursos que foi transcrito em meados do século XII em um dos cartulários da abadia de Cluny. Ele visava, com efeito, ajustar o rendimento do patrimônio às necessidades imperiosas de uma indispensável largueza. Nos tempos feudais, a vida privada não estava de modo algum friorentamente curvada sobre a poupança; ela se derramava em generosidades expansivas a fim de multiplicar os amigos — a verdadeira riqueza, como repetiam à saciedade as obras da literatura profana.

O patrono era obrigado, consequentemente, a oferecer em sua casa satisfação plena das necessidades do espírito e do corpo. As primeiras, na época, tinham precedência, em princípio, sobre as outras, e, entre os serviços domésticos, os espirituais passavam por ocupar o nível superior. Eles não eram prestados apenas na capela, mas também na sala, e mesmo no quarto, pois o pai de família era o primeiro encarregado deles. Como no mosteiro, a função paterna era pedagógica. O elogio do conde Baudouin II de Guines mostra esse "letrado", ele próprio incapaz de ler, colecionando livros, mandando traduzir os textos latinos na língua que ele podia compreender, comentando as leituras que acabava de ouvir, fazendo perguntas, discutindo, instruindo-se para melhor instruir. Mantinha junto dele um pessoal auxiliar, em parte temporário — "mestres", graduados da escola albergados por algum tempo para trabalhar nas traduções, enriquecer a biblioteca, ou então desses parentes integrados a uma comunidade eclesiástica, cônegos ou monges, que, de passagem, beneficiavam seus irmãos, seus primos com seu saber especializado —, em parte permanente - os clérigos domésticos, os capelães. Estes pregavam. No entanto, seu senhor os empregava de bom grado também em Compor divertimentos, textos falados, cantados, em língua vulgar, encenações, que sabia lhe valeriam, mais que os sermões edificantes, o reconhecimento dos "amigos".

Para agradar, com efeito, ele se esforçava em vencer o tédio que espreitava esses guerreiros, esses caçadores, durante as inevitáveis interrupções de sua atividade esportiva. Mas bem sabia que os agradaria mais, que seria tanto mais obedecido, servido e amado se satisfizesse os desejos de seus corpos. Aplicava-se então em conduzir os seus, tão frequentemente quanto possível, à perseguição da caça, ao encontro de protagonistas, na batalha ou no torneio. Zelava para que sua morada estivesse bem provida de mulheres para todos os serviços, seu guarda-roupa fornido de "vestes", como se dizia, suficientes para as distribuições rituais, nas grandes festas. Sem esses presentes, esse "benefícios" periódicos, como governar a família, como, sobretudo, cumprir honrosamente o ofício patronal? Em 1219, Guilherme, marechal da Inglaterra, em seu leito de morte, está distribuindo seus bens pessoais; legou todo o dinheiro aos homens de Igreja a fim de que rezem por sua alma; lembram-lhe que ainda restam no quarto muitas togas de escarlate, forradas de veiros, oitenta peles ao menos, todas novas e das quais se poderia tirar bom preço para comprar muito mais orações; Guilherme se irrita: o Pentecostes se aproxima, seus cavaleiros têm direito, nesse dia, a ornamentos novos, e os terão; o senhor não pode falhar, e sua moral lhe ordena, no próprio limiar do trespasse, dar precedência ao dever de munificência doméstica sobre a preocupação de sua salvação. Vestir, mas em primeiro lugar saciar, proporcionar o mais abundante, o mais saboroso, o que agrada à boca e se distingue do comer vulgar, esse companagium que, para os senhores e seus hóspedes, não constitui, como para o comum dos servidores, simples e discreto acompanhamento do pão, mas o principal do alimento. E, para isso, jamais olhar a despesa. Pois, no quarto onde procriava, na sala onde alimentava, o senhor não detinha poder em seu privado senão na proporção de sua aptidão para dar, e sempre mais.

Como o abade do mosteiro, ele era ajudado em sua gestão por oficiais domésticos cujas tarefas se dividiam, na era feudal, mais ou menos como, ainda há pouco, no palácio carolíngio. Seu primeiro auxiliar era sua esposa, detentora de um poder análogo àquele de que dispunha a rainha no século IX: ela dirigia tudo o que na casa era feminino — e assimilado ao feminino, como as crianças de pouca idade —, reinava sobre as reservas e controlava o que entrava na morada. Vê-se, por exemplo, a mulher do senhor Ardres vigiando o recebimento das taxas arrecadadas sobre as famílias camponesas, e porque uma dessas dependentes, muito pobre, não pudera entregar o carneiro prescrito, a dama, em compensação, fez com que lhe fosse dada uma menina; criou-a e, quando estava suficientemente crescida, casou-a, acasalou-a, explorando suas capacidades de procriação, zelando como um bom pastor para que o rebanho aumente, cooperando com seu marido na extensão da "família"; vemo-la, da mesma maneira, governando a proliferação doméstica, tomar sob sua proteção tal criada grávida e, restabelecendo a boa ordem, obrigar o pretenso sedutor a desposá-la, imperiosa, corrigindo, aterrorizando todas as mulheres na morada, curvando-as à sua vontade — como também acabara por dobrar-se, segundo Jean de Marmoutier, sob a pressão da rainha da França, a órfã de um grande vassalo que o soberano pretendia casar contra a sua vontade, que ele próprio não podia forçar e que encarregara sua esposa de quebrar-lhe a resistência.

Outros adjuntos assistiam o senhor e a senhora, encarregados cada um de um "ofício" (ministerium), da direção de um serviço especializado. O regulamento interno de uma enorme casa, a corte de Hainaut, proporciona uma das visões mais claras desses serviços e de seu funcionamento. Em 1210, dois velhos, escolhidos entre os mais "privados" do penúltimo conde, seu irmão bastardo e seu capelão, tinham vindo recitar publicamente o costume mais antigo, que se queria restabelecer e fixar. Tudo tendia então a institucionalizar-se, a enrijecer-se, e os ofícios, lucrativos, estavam já inteiramente apropriados, vendáveis com o acordo do patrono, hereditários, alguns possuídos por mulheres, ou por maridos autorizados por suas esposas, ainda que, normalmente, o filho mais velho sucedesse a seu pai morto ou muito idoso após ter aprendido, herdeiro presuntivo, o "ofício" na curia. A despeito de tal esclerose, os "ministeriais" continuavam a ser considerados como membros plenos da família, comendo com o senhor, por certo dormindo na casa, providos de um cavalo, o que os situava acima do comum, até mesmo de dois se eram cavaleiros; todos os anos, recebiam as "vestes", um manto e uma túnica; além disso, a "livrée", isto é, pagamentos para completar a seu modo seu equipamento; enfim, para aqueles encarregados do serviço de armas, um soldo — como os commilitones do conde, seus companheiros de guerra que cavalgavam mais proximamente a seu lado, em seu conroi [tropa a cavalo], a equipe de combate muito estreitamente unida; não se trata deles nesse documento, mas sabe-se que eram da mesma idade (coetani) que o chefe, na maioria seus parentes, seus camaradas desde a infância, sagrados cavaleiros no mesmo dia que ele, formando na casa um corpo mais unido, mais privado, semelhante ao colégio dos cônegos, e situados, parece, como os cônegos, acima dos simples ministeriais. Estes, no entanto, viviam igualmente na estreita intimidade do senhor, obrigados a acompanhá-lo em todas as suas expedições militares "para defender seu corpo".

Contudo, de modo algum todos na mesma posição: nesse nível, nessa vasta morada, as funções eram completamente hierarquizadas. Três ofícios, no documento que exploro, são considerados principais, e estes derivam diretamente dos três "ofícios" leigos que ajudavam outrora o soberano carolíngio em sua casa, que foi o modelo inicial de toda vida privada nobiliária. O senescal-mor, o camareiro-mor e o copeiro-mor ocupavam esses ofícios. Eles passavam por servir o conde no principado inteiro, mas, com toda a evidência, seu cargo tornado honorífico não os obrigava mais a viver na casa, apenas lhes valia acesso ao príncipe, um lugar a seu lado nos cortejos onde seu poder era exibido. Sob esses altos personagens, percebem-se com efeito três organizações domésticas autônomas, correspondentes às três habitações do conde, das quais cada uma constituía a cabeça de uma entidade política: dois castelos, Mons e Valenciennes, flanqueados cada um por uma colegiada — a de Mons preeminente, porque ali repousavam os ancestrais da dinastia (não devemos esquecer os mortos, incluídos na família, associados à vida privada pelas cerimônias comemorativas periódicas) —, depois uma terceira casa, menos solidamente constituída, dominando uma senhoria recentemente adquirida, Ostrevent. Existia um camareiro suplementar. Com efeito, quando a sra. Marguerite, "a esposa do Baudouin [V] que está enterrado no centro do coro de Mons" — era a irmã do conde de Flandres —, fora cedida a um marido, este não era então senão o herdeiro do I lainaut; seu pai ocupava a morada ancestral; o novo casal precisava de sua própria casa; os esposos estabeleceram-se em outro lugar, em Lille, nas terras da dama; esta era servida por suas mulheres; ela casara uma delas e fizera do marido seu próprio camareiro; funcionava, desde então, um "quarto" particular da condessa, "em todo lugar", diz o texto, de modo nenhum ligado a uma casa, e que geria o "móvel", essa parte específica da posse feminina, o enxoval. Graus, portanto, múltiplos: a pessoa do conde, a da condessa, graus entre as casas, e, em cada uma das principais, dois grandes serviços, dos quais um dominava o outro, já que os cargos se distribuíam como, no edifício, o espaço de convívio: um serviço da mesa, isto é, da sala, dirigido pelo senescal e pelo copeiro; um serviço do quarto, mais privado, cujo administrador era o camareiro, que vinha após o senescal mas antes do copeiro, encarregado da adega, portanto do mais baixo.

A mesa, ou antes, as mesas (mensae) eram postas na sala ou, desde que o tempo o permitisse, ao ar livre. Aparato, como no mosteiro: não convinha alimentar-se acocorado, nem em pé, às pressas. Comer era um ato solene, público. Era conveniente que dependesse do ofício mais altamente posicionado. O senescal zelava pela parte mais nobre da ração, pelo "companage" [tudo aquilo que se come com o pão], as "esques" (escae, comidas), compradas fora e preparadas na cozinha, principalmente a carne, que cabia ao primeiro servidor (e essa procedência da carne é esclarecedora) apresentar e cortar diante do senhor; sob sua autoridade serviam, segundo sua posição, sete oficiais subalternos: o "comprador" e o "guardião das comidas" em primeiro lugar; os três "cucas" que cozinhavam; o zelador, encarregado de manter os fogos na casa, o da cozinha e aquele, mais brilhante, que realçava o esplendor da sala; o porteiro, acolhendo, instalando os hóspedes; enfim, o cortador, responsável pelo corte, mas também pelo sal. Quanto à bebida de qualidade, isto é, ao vinho, também estava sob o controle de um oficial maior, o copeiro. Em Mons, no começo do século XIII, uma mulher ocupava esse posto, filha de cavaleiro, herdeira de seu pai, mas também cônega e por isso pouco disponível. "A sua ordem", o vinho era levado às mesas e, se lhe aprazia, era servido por suas mãos ao conde e à condessa. De fato, dois substitutos comumente ocupavam seu lugar. Em segunda posição, ele próprio dirigindo dois armazenistas, vinha "aquele que conservava o vinho e que o servia nos cântaros e nas taças" (por essa razão dependia dele o "ofício" muito inferior do oleiro). Mais abaixo figurava o saquiteiro, fornecedor desse alimento que, para os senhores, signo de sua distinção, não era mais que acessório, as migalhas; quatro pessoas dependiam ainda desse subalterno, um fornecedor, um padeiro "hereditário" estabelecido fora da corte, no povoado, com os artesãos independentes, um guarda dos pães, ou mais exatamente das fatias, dos pedaços sobre os quais se colocavam as carnes, ele próprio comandando "o homem que colocava essas fatias sobre as mesas". No fim da lista, o responsável pelo lardo, situando as ordenações domésticas em último lugar, o toicinho, alimento popular como o pão e tirado do fundo da cozinha, da parte mais inferior da casa.

Em Mons, o "camareiro menor" — subordinado de um camerarim, ele próprio subordinado ao grande camareiro do Hainaut — devia vigiar o quarto e as coisas preciosas que ali se encontravam encerradas; encarregado, consequentemente, das "roupas", do tecido, devia também arrumar as camas "para toda a corte", as quais, na maior parte, eram estendidas a cada noite na sala; ele fornecia a água que seu superior apresentava ao conde e à condessa, enquanto ele próprio dava água antes da refeição aos clérigos e aos cavaleiros; enfim, sob o controle do camareiro titular, que sem dúvida se reservava a administração das moedas, o camareiro menor fabricava as velas e as distribuía, especialmente aquelas que, fincadas em um pão, iluminavam o conde, a condessa e o senescal, e só eles, quando estavam à mesa.

De um lado, então, a mesa, a luz, o fogo claro, a exibição; do outro, as camas, a noite, a vela, o retraimento. A sala era equipada principalmente para o festim, ele próprio representação, ostentação da ordem necessária. O conde e a condessa, o casal dominante, ocupavam o centro do espetáculo, objetos de uma honra particular, servidos pelos mais altos domésticos; mas junto deles, quase em seu nível, mantinha-se o senescal, que tinha direito, como o senhor, pois que major domus, primeiro da casa, ao pão de sal ao lado de sua porção, à luz diante dele. E já que se tratava de encenação pública, de demonstração de poder, importava que os oficiais da mesa fossem cavaleiros; eles recebiam o mesmo equipamento, o mesmo fornecimento de trajes que os companheiros de armas do patrono; acompanhavam-no toda vez que ele montava a cavalo, com os cozinheiros e o zelador: sua atividade, diurna, projetava-se para o exterior, para as ações ao ar livre. Ao passo que o quarto aparece, à leitura desses costumes, como encerramento, concha; nada desse vinho que convém à festa, às larguezas; longe da luz, para lavar o que macula e afastar as trevas, a água lustrai e as luminárias profiláticas.

Essa assistência multiplicada e o recurso ao cerimonial como instrumento de disciplina eram necessários ao senhor para manter em ordem a sociedade doméstica. O tumulto estourava, com efeito, de todos os lados. Da parte dos homens, o perigo uma da violência aberta, armada, brotando naturalmente entre homens de guerra e de torneio. Era preciso então eliminar constantemente a cobiça e os rancores, reanimar sem descanso a "amizade". Tarefa difícil em razão da rivalidade permanente de que a corte era o local, da inveja dos mais novos em relação aos mais velhos, da competição aberta entre os "comensais" disputando os favores do senhor e os da dama, cada um encarniçado em eclipsar todos os outros, denegrindo-os, desafiando-os, desferindo-lhes a cada ocasião golpes baixos — em razão de uma emulação, fonte de rumor e furor. Para conter a turbulência, três procedimentos entravam em jogo. A expulsão, em primeiro lugar, dos mais agitados; essa foi sem dúvida uma das funções da Cruzada, e a mais benéfica; um papel análogo era desempenhado pela viagem, financiada pelo pai de família, que arrastava ritualmente para longe da casa, por um ano, dois anos, após a cerimônia da sagração como cavaleiro, o filho mais velho e os outros "cavaleiros novos"; todos os jovens eram assim chamados a extravasar na errância, provisoriamente, o excesso de seu ardor. Sabe-se também que se impunha o uso de enviar os filhos, desde que saíssem da infância, para formar-se em outro lugar — simples troca, na verdade, já que a casa, livre dos rapazes de seu sangue, era obrigada a acolher outros, mas essa transferência não deixava, sem dúvida, de amortecer também um pouco os choques. Reputo os ritos do amor cortês como um segundo meio de amansar a juventude. O que se sabe desse jogo e de seu desenvolvimento desde meados do século XII leva a pensar que o senhor propunha sua esposa como um chamariz, uma espécie de isca, oferecendo-a, até certo ponto, como a aposta de um concurso cujas regras gradativamente mais sofisticadas obrigavam os participantes, os cavaleiros celibatários e os clérigos da casa, a dominar cada vez melhor seus impulsos. Enfim, o chefe de casa detinha um poder judiciário, o direito de arbitrar as querelas, de corrigir os erros; e se ele nada podia decidir sem o conselho dos seus, estes eram obrigados a dar-lho, a falar diante dele, a exibir para ele suas discórdias e, na sala — como na sala capitular do mosteiro —, as queixas exibidas, as razões aceitas, recompensas e reprimendas eram periodicamente distribuídas; a menos que, apelando ao julgamento de Deus, o caput mansi decidisse presidir, no pátio, a uma batalha, a um duelo, a uma dessas rixas organizadas no decorrer das quais extravasava-se a violência dos rivais.

Esse sistema de regulação foi eficaz? Os traços de seus fracassos são descobertos facilmente no pouco que resta da literatura familiar. Assim, na história — panegírica — dos senhores de Ardres, e que não é bem documentada senão sobre quatro gerações, um assassinato doméstico, ao menos, é evocado, o do senior, morto na floresta, dizia-se, pelos criados de sua cozinha. Na história — também panegírica — dos senhores de Amboise, e também ela bem documentada sobre quatro gerações apenas, é mencionado o assassinato de um cunhado, camuflado em acidente de guerra; os dois irmãos do último dos senhores de que se trata nesse texto foram mortos por seus familiares, um cm emboscada e o outro por envenenamento; ao passo que está constantemente presente a agitação dos cavaleiros dos castelos, organizados em partidos opostos, apoiando um o filho, o Outro o pai, um irmão caçula contra um irmão mais velho, um genro contra o irmão da esposa, não se deixando esse tumulto dominar-se facilmente: o senhor do castelo de la Haye (era um intruso, o esposo da herdeira) e seu irmão acabaram por ser abatidos pelos guerreiros de sua casa, que não podiam mais suportar sua presença. Contudo, no espaço doméstico, o perigo era em primeiro lugar percebido como vindo insidiosamente das mulheres, portadoras do veneno, dos sortilégios, da cizânia, e dos desmaios, as doenças inesperadas, os falecimentos sem causa aparente, o senhor encontrado morto uma manhã em seu leito, intumescido, tudo aparecia como provocado pelas artimanhas das mulheres, e da dama principalmente.

O PERIGO: AS MULHERES E OS MORTOS

A ameaça contra a ordem estabelecida parecia então surgir surdamente do mais íntimo, do mais privado da sociedade cortês, a palavra cortês convém, com efeito: não era o caso de inquietar-se muito com a perturbação provocada pelas mulheres submissas sobre quem pesava muito fortemente o poder da dona da casa. O problema da paz, da paz privada, colocava-se a propósito das bem-nascidas. Elas eram por isso estreitamente vigiadas, subjulgadas. O eixo mais sólido do sistema de valores a que se fazia referência na casa nobre para bem conduzir-se apoiava-se sobre este postulado, ele próprio fundado na Escritura: que as mulheres, mais fracas e mais inclinadas ao pecado, devem ser trazidas à rédea. O dever primeiro do chefe da casa era vigiar, corrigir, matar, se preciso, sua mulher, suas irmãs, suas filhas, as viúvas e as filhas órfãs de seus irmãos, de seus primos e de seus vassalos. O poder patriarcal sobre a feminilidade via-se reforçado, porque a feminilidade representava o perigo. Tentava-se conjurar esse perigo ambíguo encerrando as mulheres no local mais fechado do espaço doméstico, o quarto — o "quarto das damas", que não se deve tomar, com efeito, por um espaço de sedução, de divertimento, mas sim de desterro: elas eram ali encerradas porque os homens as temiam. No quarto, eles penetravam, e o senhor, muito livremente: os romances mostram-no comumente, à noite, após a ceia, para ali se dirigindo para comer sua fruta, tranquilo, a cabeça sobre os joelhos das donzelas da família que o "massageiam", penteiam-no, tiram-lhe os piolhos — esse era um dos prazeres próprios aos seniores, a esses felizardos que dominavam uma casa. Outros homens eram introduzidos no quarto para os divertimentos íntimos, para a leitura ou para o canto, mas escolhidos pelo patrono, requisitados a entrar, acolhidos em visita temporária: a literatura de ficção, única fonte de informação ou quase, não situa nenhum indivíduo do sexo masculino, com exceção do chefe da casa e de seus rapazes residentes muito jovens, no quarto, a não ser feridos, doentes, entregues até sua cura aos cuidados femininos. O gineceu, entrevisto pelos homens mas do qual são naturalmente excluídos, aparece a seus olhos como um domínio "estranho", um principado separado do qual a dama, por delegação de seu senhor, detém o governo, ocupado por uma tribo hostil e sedutora cuja parte mais frágil é muitas vezes encerrada mais estreitamente, mais bem protegida em uma comunidade religiosa, um convento interno regido por uma regra sob a autoridade de uma superiora que não é a esposa do senhor, mas uma viúva da parentela ou uma moça que não se conseguiu casar. A parte feminina da família constitui então um corpo, um Estado no Estado, e senhor de si mesmo, escapando ao poder de qualquer homem, salvo do chefe da casa, mas o poder deste não é senão de controle, como suserano, e muitas vezes se veem eclesiásticos disputá-lo com ele sob pretexto de direção das consciências.

A esse grupo de mulheres, inquietantes, estavam destinadas tarefas específicas, pois era preciso que estivessem ocupadas, sendo a ociosidade considerada particularmente perigosa para esses seres fracos em demasia. O ideal era uma divisão equilibrada entre a oração e o trabalho, o trabalho do tecido. No quarto, lava-se, bordava-se, e, quando os poetas do século XI fazem tentativas de dar a palavra às mulheres, compõem canções "de fiar". Das mãos femininas saíam, de fato, todos os enfeites do corpo e os tecidos ornamentados que decoravam o próprio quarto, a sala e a capela, isto é, uma parte considerável do que chamaríamos de criação artística, sacra e profana, mas assentada em materiais tão perecíveis que dela só subsistem hoje ínfimos fragmentos.

Contudo, as orações e essas obras, realizadas em equipe como o eram, da parte dos homens, a guerra e a caça, não os livravam, persuadidos da perversidade estrutural da natureza feminina, de uma inquietação obsedante, fantasmática: o que fazem as mulheres juntas, só entre elas, quando estão encerradas no quarto? Evidentemente, fazem o mal.

Em um tempo em que a Igreja conservava ainda quase que por inteiro o monopólio da escrita e pelo qual quase exclusivamente o pensamento dos eclesiásticos é acessível ao historiador, são os moralistas que mais claramente parecem obsedados pela preocupação com os prazeres condenáveis que, sem nenhuma dúvida, as mulheres, no gineceu, têm sozinhas ou então com suas companheiras e com as crianças. Pois a mulher, a jovem mulher, lê-se em uma das versões da vida de santa Godeliève composta no início do século XII, está sempre entregue ao aguilhão inevitável do desejo; ela o satisfaz comumente na homossexualidade, e essa suspeita grave é instigada pela prática geral de dormirem vários do mesmo sexo na mesma cama. Entre elas, aliás, em seu espaço privado particular, as mulheres passam por trocar os segredos de um saber no qual os homens não têm nenhuma participação e que é transmitido às mais jovens por essas "velhinhas" presentes em inúmeros relatos, aquelas por exemplo que, na casa paterna de Guibert de Nogent, atavam ou desatavam as agulhetas, aquelas que ensinavam nas aldeias as operações mágicas que um Étienne de Bourbon perseguia no século XIII. O poder masculino se sentia impotente diante dos sortilégios, dos filtros que debilitam ou então curam, acendem o desejo ou extinguem-no, Detinha-se à porta do quarto onde os filhos eram concebidos, postos no mundo, os doentes cuidados, os defuntos lavados, onde, sob o império da mulher, no mais privado, estendia-se o domínio tenebroso do prazer sexual, da reprodução e da morte.

A sociedade doméstica era então atravessada por uma separação nítida entre o masculino e o feminino, institucional, e que repercutia sobre a maior parte dos comportamentos e das atitudes mentais. No interior da morada, a única conjunção oficial, ostensiva, pública, unia o senhor e a dama, e toda a organização da morada era disposta para que esse encontro fosse perfeito, isto é, fecundo. Muitos outros no entanto ali se produziam, ilegítimos estes, ocultos. Por mil indícios discerne-se a exuberância de uma sexualidade privada que se mostra nos lugares e nos tempos mais propícios, os do segredo, do obscuro, na sombra do pomar, no celeiro, nos recantos, e durante as trevas noturnas que nem sequer eram varadas, como no mosteiro, por algum toco de vela. Nesse espaço mal compartimentado, era fácil aos homens introduzir-se no leito das mulheres; se se acredita nos moralistas e nos romancistas, a passagem inversa era no entanto mais frequente: sem obstáculo às uniões fugazes, a casa é mostrada repleta de mulheres que consentem, provocantes. Tratava-se por certo de criadas, mas que não eram mais que a arraia-miúda, e nem a literatura doméstica nem o romance falam muito delas. Tratava-se de parentas, sogras, cunhadas, tias, e adivinha-se, pululante, o incesto fortuito. Entre essas parentas, as mais ativas, segundo o que nos dizem, eram as bastardas da família, filhas do pai, dos tios cônegos, e elas próprias mães de futuras concubinas. E quanto às "donzelas", filhas legitimas do senhor? Eram elas tão livremente oferecidas aos cavaleiros errantes, segundo os ritos da boa hospitalidade, quanto o pretende a literatura de divertimento? E os homens, eram, tão frequentemente quanto é relatado na biografia dos santos, tirados de seu sono por fêmeas insaciáveis?

E certo, em todo caso, que o convívio que reunia em torno do par conjugal tantos homens e mulheres não casados, sua promiscuidade inevitável, a conduta prescrita em relação aos hóspedes, amigos ou estranhos, diante de quem era de bom-tom exibir as mulheres da casa como se exibia o tesouro, por vaidade, mantinham no espírito do senhor responsável pela ordem doméstica e pela glória familiar uma preocupação principal, a da honra. A história da honra que há muito tempo Lucien Febvre convidava a escrever ainda não foi escrita. Ao menos, é evidente que nos tempos feudais a honra, empanada pela vergonha, era assunto masculino, público, mas que dependia essencialmente do comportamento das mulheres, isto é, do privado. O homem era desonrado pelas mulheres submetidas ao seu poder e, em primeiro lugar, pela sua. O grande jogo, tal como é descrito pela literatura cortês, convidava os homens jovens, para manifestar seu valor, a seduzir a dama, a dela apoderar-se. Um jogo, mas que se inscrevia em um quadro real, no vivido. Incontestavelmente, a esposa do senhor era cobiçada, e o desejo que inspirava, sublimado em puro amor. era empregado, como vimos, como um meio de disciplinar a juventude doméstica. Sólidas proibições impediam tomá-la realmente. No entanto, acontecia que fosse tomada por violência, o lugar atribuído à violação na intriga das narrativas de divertimento reflete com toda a evidência a realidade: como não estabelecer um paralelo entre Renart, o raposo, tirando seu prazer da rainha, e Geoffro Plantageneta forçando Alienor de Aquitânia na casa de seu esposo, o rei da França? Ocorria também que a dama se entregasse. Obsessão do adultério, e todos os olhares espiando, os invejosos a espreitar o encontro dos amantes. A defesa da honra consistia em primeiro lugar em erguer um anteparo diante do público: o temor de ser desonrado pelas mulheres da casa explica ao mesmo tempo a opacidade arranjada em torno da vida privada e o dever de vigiar de perto as mulheres, de mantê-las tanto quanto possível enclausuradas, e se era preciso fazê-las sair, para as cerimônias ostentatórias ou para as devoções, de escoltá-las. Em torno da mulher em viagem, a família se transportava para fora da morada, assegurando sua "conduta", para que não fosse "seduzida". Durante a longuíssima peregrinação que fez a Roma em meados do século XI, Adèle de Flandres permaneceu encerrada em uma espécie de casa ambulante, uma liteira de cortinas constantemente fechadas. Mulheres enclausuradas, fugindo, por vezes, ao amanhecer, como Corba d'Amboíse, raptada, feliz por sê-lo, por seu primo, à saída da missa, em Tòurs. Mulheres encerradas no recinto, para que homens da casa não sejam maculados por suas extravagâncias, para que estas permaneçam ocultas, no segredo da privacy. Salvo se sua falta, se o adultério era proveitoso, se era boa a ocasião para se desembaraçar de uma esposa estéril ou aborrecida, de uma irmã da qual se temia que reclamasse parte de herança. Então o chefe da casa revelava, denunciava, publicava — tornava pública — a falta feminina, a fim de poder legitimamente castigar a culpada, expulsá-la da casa, quando não decidia queimá-la viva.

E preciso evocar uma outra ameaça que pesava sobre a sociedade familiar: ela vinha dos mortos, presentes, exigentes, e que habitualmente voltavam à noite, no mais íntimo, no quarto onde seu corpo fora há pouco preparado para o sepultamento, buscando novos cuidados. Como no mosteiro, um lugar lhes era reservado no convívio privado a fim de que sua alma não penasse, não viesse perturbar os vivos. Desde que a família tivesse os meios para isso, e eram precisos meios consideráveis, preparava um receptáculo para os despojos de seus defuntos; fundava um mosteiro, uma colegiada onde todos seriam enterrados; uma necrópole assim se instituía, morada obrigatória para os mortos da linhagem, dispostos ali em boa ordem, como um anexo da casa destinado a essa parcela da família, tão perigosa quanto a parcela feminina e, como ela, confinada. Celebrava-se nesse local não apenas a comemoração do falecido na missa do primeiro aniversário da morte, mas também seu aniversário regular, e, nesse dia, a família comia com ele como se fazia no mosteiro, ou antes por ele, em seu lugar, a fim de com ele conciliar-se. O que fizeram, em Bruges, em 1127, imediatamente após tê-lo morto, os assassinos do conde de Flandres, protegidos na capela, "sentados em torno do ataúde, depositando sobre este o pão e as taças como sobre uma mesa, comendo e bebendo sobre o corpo, acreditando que com isso ninguém tentaria a vingança", que o assassinado perdoaria. Entretanto, era no momento mesmo da passagem que os ritos de acompanhamento se haviam inicialmente acumulado, em uma representação em que se vê, como no mosteiro, imbricar-se o público e o privado.

Cerimônia pública, transporte de um lugar privado, o quarto, o leito, a um outro lugar privado, fechado, a sepultura, mas atravessando necessariamente o espaço público; portanto, necessariamente festivo, tanto quanto as bodas e pelo próprio desenrolar de um cortejo, toda a casa, em fila, em ordem, oferecendo a imagem de sua coesão atrás do defunto do qual era a última ostentação, do qual eram também as últimas larguezas públicas, distribuídas entre os pobres, enquanto se desenrolava um vasto banquete; públicas eram igualmente durante essa fase as manifestações do luto, um espetáculo em que as mulheres representavam o papel principal, gritando, rasgando suas roupas, lacerando o próprio rosto. No entanto, essa demonstração sucedia a outros ritos, estes muito privados — um privado na verdade numeroso, gregário. Esse ritual de partida tinha início na sala: diante de todos os seus "privados", mas também de seus "amigos", o agonizante anunciava suas últimas vontades, as disposições da sucessão, procedia à entronização de seu herdeiro, em voz alta e por meio de gestos bem visíveis. Assim, em Audenarde, em torno de Baudouin V de Hainaut preparando-se para o trespasse, como para uma assembleia de paz pública, todas as relíquias da região tinham sido trazidas e todos os fiés convocados a jurar sobre elas a concórdia. Mais íntima era a agonia, que tinha lugar no quarto. O poema composto em honra de Guilherme, marechal da Inglaterra, morto em 1219, oferece um dos mais preciosos relatos da morte de um príncipe nesse tempo. Guilherme, desejando morrer em casa, fizera-se conduzir a uma de suas mansões desde que seu mal se agravara. Ali convocou todos os seus, e em primeiro lugar seu filho mais velho, para que o ouvissem dispor da herança, escolher sua sepultura, para que o vissem, mudando de traje, tomando o de templário, entrar plenamente em uma outra fraternidade, beijar pela última vez, chorando, sua esposa. Terminado esse cerimonial da ruptura, muito semelhante àquele que se respeitava quando o chefe da casa deixava seu espaço privado para uma viagem, a cena se despovoava. Contudo, o moribundo não devia ser deixado só; as pessoas se revezavam para velá-lo noite e dia; pouco a pouco, ele se despojava de tudo: cedera aquilo de que não era senão o depositário, o patrimônio; cedia agora todos seus bens pessoais, o dinheiro, os ornamentos, as roupas; saldava suas dívidas, implorava o perdão daqueles que lesara em vida; pensava em sua alma, confessava seus pecados; enfim, às vésperas do trespasse, as portas do outro mundo começavam a entreabrir-se para ele.

Guilherme viu assim dois homens brancos virem postar-se um à sua direita, o outro à sua esquerda; no dia seguinte, ao meio-dia, ele despediu-se, mas uma despedida privada, de sua mulher e de seus cavaleiros: "Eu vos confio a Deus, não posso mais estar convosco. Já não posso defender-me da morte". Separando-se do grupo que comandara, despindo-se de seu poder, remetendo-o a Deus. Só, pela primeira vez desde o seu nascimento.
 
PARENTESCO

Nas páginas que acabamos de ler, Georges Duby colocou intencionalmente entre parênteses o que dizia respeito aos laços carnais; tratou da família medieval não considerando a família no sentido moderno: distinção necessária entre os dois eixos que devem orientar a análise. Naturalmente, as relações de parentesco e as de convívio interferem muitas vezes, mas isso nada tem de automático. Ao não separar com suficiente nitidez a coabitação da consanguinidade, ao persistir no emprego indiferenciado do termo ambíguo de "família", muitos historiadores do passado afundaram em dificuldades (tal como a referência, ritual e exasperante, porque cientificamente infundada, à "família ampla germânica").

A relação de parentesco entra de pleno direito, assim como a de convívio, em um estudo da "vida privada". Seria possível desenvolver sua apresentação de maneira paralela: como as da morada, as metáforas da linhagem têm um vasto lugar na representação das solidariedades religiosas ou políticas; a exemplo das grandes casas, as vastas parentelas, que chamam a atenção privilegiada dos especialistas em história sociopolítica, dão testemunho, por sua extensão, nos séculos XI e XII, da privatização dos poderes, prestando-se ao mesmo paradoxo da alienação da relação privada; enfim, a autonomia do indivíduo ou do casal encontra-se posta em causa pelo irresistível império da "linharem", assim como pela inoportuna presença do círculo doméstico - em um tempo em que, decididamente, o privado está em toda parte e em parte alguma.

No entanto, o parentesco é uma relação muito mais abstrata que o convívio; levanta, portanto, problemas específicos. É preciso começar por delimitar o que pode ser essa "linhagem" que as fontes medievais dão a ver sob aspectos muito diversos e que os comentadores modernos negligenciam definir. Evitando um fastidioso inventário historiográfico, citarei apenas como exergo os dois capítulos que Marc Bloch consagrou a essa questão, em 1939, em A sociedade feudal: livro fundador da história medieval francesa atual e do qual se admira sempre o caráter vivo, fecundo e inspirador — ainda que, sobre esse ponto como sobre vários outros, os progressos realizados desde então pela história, pela antropologia e pela coordenação entre elas obriguem também a fazer sua crítica.

Marc Bloch considera os laços do sangue justamente antes daqueles da vassalagem e relativiza com justa razão a importância destes ao mostrar que não fazem senão completar a trama tecida pelos primeiros para dar coerência a uma sociedade que se poderia chamar, de preferência a "feudal", feudo- (ou vassalo-) linhagista: uns e outros são correntemente postos no mesmo plano pelos homens da Idade Média, e os grupos mais fortemente estruturados são aqueles que os combinam — caráter lígio e linhagem dão assim, por ocasião da batalha de Mansourah (1250), segundo o testemunho de Joinville, uma eficácia ideal à tropa de Gui de Mauvoisin. O parentesco é analisado por Bloch em termos de solidariedade jurídica (mobilização para as guerras privadas, detenção de direitos patrimoniais comuns). Um equívoco paira infelizmente sobre a coabitação, pois ele não se liberta da ideia de que os parentes vivem sob o mesmo teto ou, em todo o caso, sistematicamente na vizinhança uns dos outros. Isso não o impede de abrir uma perspectiva fundamental: ele quer que seja apreendida a diferença entre a sociedade medieval e a nossa até nessa célula aparentemente elementar e natural. "Tanto pela tonalidade sentimental como pela extensão", escreve ele, "a parentela era coisa diferente da pequena família conjugal de tipo moderno": alguma coisa de menos afetivo e no entanto de muito constrangedor, e que para Bloch, como para seus contemporâneos influenciados inoportunamente por Lévy-Bruhl, tem a conotação implícita de primitivismo no mau sentido do termo. Reforçando essa impressão, vem a suspeita de que a força da parentela se instaura à custa do casal: "Sem dúvida, seria deformar muito as realidades da era feudal situar o casamento no centro do grupo familiar"; de fato, a mulher só pertence "parcialmente" à linhagem de seu marido, já que a viuvez, ipso facto, dela a exclui (ou dela a liberta). Contudo, graças à Igreja e ao Estado, uma incontestável modernidade desponta com a aurora do século XIII: uma em nome dos direitos da pessoa, o outro em nome da paz pública, e ambos, ao mesmo tempo, em benefício, bem entendido, de seus interesses, trabalham sem descanso no afrouxamento das coerções do parentesco.

Delimitação dos contornos da "linhagem" e desvendamento de suas funções, interrogação sobre as suas relações com a "família conjugal", enfim, busca de uma tendência evolutiva na virada dos anos 1180: tomo de empréstimo aqui a Marc Bloch seus três temas principais, para tratá-los sucessivamente. Os trabalhos que A sociedade feudal suscitou fazem com que haja nesse livro, hoje, partes mortas, como em toda obra científica datada de algumas décadas; sua grandeza é reconhecida, em compensação, por certo número de intuições que seus sucessores não exploraram suficientemente ou que não podem senão confirmar, transformando-as em conceitos. Assim, é pressentida a importância da filiação indiferenciada: a observação sobre a equivalência das linhas paterna e materna não ocorre apenas como um acessório sob a pena de Bloch, pois ela lhe permite rebater a qualificação possível da "linhagem" como unidade Constitutiva ou como realidade substancial da sociedade; por causa de um "sistema bífido", "a zona das obrigações de linhagem perpetuamente mudava de contornos". Há aqui um objeto histórico difícil de apreender, por razões ao mesmo tempo documentais e estruturais: essas vastas parentelas no seio das quais vem abrigar-se e alienar-se o homem feudal, mas que são também, tratando-se de um nobre, o meio e a expressão de seu poder, o que são elas exatamente?

Texto de Georges Duby, Dominique Barthélemy e Charles de La Ronciére em "História da Vida Privada volume 2,  da Europa Feudal à Renascença", capítulo 2, organizado por Georges Duby, Companhia das Letras, São Paulo, 2009, Título original "Histoire de la Vie Privée — Vol. 2: De L'Europe Féodale à la Renaissance"; tradução de Maria Lúcia Machado. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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