1.17.2018

CACHAÇA - DE FILHA BASTARDA A SÍMBOLO NACIONAL



A aguardente de cana era um subproduto da indústria do açúcar, consumido no Brasil Colônia e exportado para as costas africanas. A cachaça serviu como moeda de troca para a compra de escravos que vinham trabalhar nos grandes engenhos.

Segundo o historiador e antropólogo Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), em "Prelúdio da Cachaça" (Editora Itatiaia), “a cachaça nasceu da indústria do açúcar, bastarda e clandestina, merecendo depois proclamação de legitimidade 'per rescriptum principis'. Tornou-se bebida nacional, determinando uma literatura oral de impressionante vitalidade”.

Para o historiador Caio Prado Júnior (1907-1990), “a aguardente é um produto mais democrático que o aristocrático açúcar, exclusivo dos senhores de engenho”. Em seu livro "O Mito da Cachaça Havana – Anísio Santiago" (Edições Cuatiara), Roberto Carlos Morais Santiago lembra que a descoberta da cachaça teria ocorrido casualmente, durante o processo de produção de rapadura e açúcar mascavo.

O caldo da cana era fervido em tachos de cobre para ficar limpo e concentrado em massa de boa espessura. Desta, retirava-se espuma ou borra com grandes escumadeiras. A borra fermentada, acumulada em cochos de pau, transformava-se em garapa azeda ou vinho de cana. Esse subproduto complementava a alimentação de animais e escravos nos próprios engenhos, sendo chamado de cagaça, palavra da qual teria se derivado o termo cachaça.

Há uma outra versão, segundo a qual a bebida era usada para amolecer carne de porco ou cachaço. A destilação da garapa azeda em alambiques de barro deu origem à aguardente nacional.

Jairo Martins da Silva, em "Cachaça, o Mais Brasileiro dos Prazeres", levanta outra hipótese para o início da destilação da cachaça no Brasil. “Os portugueses, acostumados a tomar bagaceira, improvisaram uma bebida com a substância residual do caldo de cana, conhecida como borra, garapa azeda ou garapa doida. Provavelmente fermentada, ela produzia o mesmo efeito prazeroso”.

O certo é que os senhores de engenho provaram e aprovaram a bebida dos escravos. A aguardente entrou na casa-grande e nas bodegas, e foi recebida nos salões, passando a ter importância econômica. Tanto que a Coroa portuguesa expediu uma Carta Régia, em 13 de setembro de 1649, proibindo a fabricação da aguardente em todo o país, com duas exceções: não se aplicava a Pernambuco e o uso da bebida restringia-se à população escrava, não sendo permitida a venda, apenas a produção para consumo próprio.

A ordem da Corte foi ignorada, pois a cachaça havia caído no agrado dos governantes locais. Senhores de engenho, comerciantes e destiladores reagiram, continuaram a produzir e vender a bebida. Em 1661, finalmente, o Rei D.Afonso VI, sob a regência da rainha D. Luísa de Gusmão, suspendeu a proibição. A solução encontrada pela metrópole portuguesa foi o aumento constante dos impostos sobre a sua comercialização.

No período entre 1756 e 1766, foi instituído o “subsídio voluntário” dos estabelecimentos que vendiam “aguardente da terra”, assim como dos proprietários que a vendessem. Originalmente concebido com vistas a contribuir para a reconstrução de Lisboa, devastada por terremoto em 1755, o tributo acabou renovado por mais dez anos, de 1768 a 1778. Em 1772, foi criado o “subsídio literário” para subvencionar os “mestres régios” (professores de primeiras letras), revogado após a Independência.

No final do século XVII, a descoberta de ouro em Minas Gerais e o surgimento de vários povoados em lugares altos e úmidos da Serra do Espinhaço foram acompanhados do deslocamento da cachaça para o interior do estado. Os garimpeiros passam a consumir a cachaça levada pelos tropeiros para amenizar o frio. As trilhas eram interligadas a Paraty, por onde o ouro era escoado para Portugal através da baía da Ilha Grande.

O crescente comércio da cachaça, mesmo na época da proibição, estimulou o surgimento de alambiques clandestinos na região, que chegou a ter cerca de 150 engenhos. Como se dizia à época, “onde mói um engenho, destila um alambique”, registra Câmara Cascudo. A fama da região como produtora cresceu tanto que Paraty passou a ser sinônimo de cachaça, sendo comum pedir um “cálix de paraty”.

A cachaça no Brasil Colônia adquiriu tamanha popularidade que o aumento do consumo da bebida passou a ameaçar a fabricação dos produtos similares europeus. Daí as sucessivas tentativas de proibição de Portugal, já que ela competia com o vinho e a bagaceira, a famosa aguardente produzida com bagaço de uva.

A bebida tornou-se símbolo de resistência aos colonizadores. Atingiu o ápice no século XIX, transformando-se, também, em sinal de brasilidade. Tanto os rebelados da revolução de Pernambuco, em 1817, quanto os inconfidentes das Minas Gerais, três décadas antes, consumiam a bebida nas lutas de Independência, como forma de rebeldia e protesto. Em 1822, o próprio imperador Dom Pedro II teria brindado à Independência do Brasil com uma boa dose de pinga.


A partir de 1889, a cachaça perde o glamour. Os republicanos que assumiram o poder passaram a discriminá-la como símbolo do decadente passado imperial. A moda agora era consumir produtos vindos da Europa. Somente a partir do Movimento Modernista de 1922 é que a popular caninha começa a recuperar seu status como símbolo de brasilidade, ao lado do samba, do Carnaval e da feijoada.

Texto publicado em "Cachaças -Minas Gerais", publicado pelo SEBRAE/MG, editor: Adriano Macedo,  textos: Adriano Macedo, Breno Procópio e Jorge Fernando dos Santos, Impressão: Gráfica e editora Mafali, excerto pp. 24-26. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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