2.24.2018

PRÁTICA RELIGIOSA E A DESCOBERTA DA AGRICULTURA


1. UM PARAÍSO PERDIDO

O fim da época glaciária, por volta de 8.000, mudou de maneira radical o clima e a paisagem, e por conseguinte a flora e a fauna da Europa ao norte dos Alpes. O recuo dos gelos provocou a migração da fauna em direcção às regiões setentrionais. Gradualmente a floresta foi substituindo as estepes árcticas. Os caçadores acompanharam a caça, sobretudo as manadas de renas, mas a rarefacção da fauna obrigou-os a instalar-se nas margens dos lagos e sobre os litorais, e a viverem da pesca. As novas culturas que se desenvolveram durante os milénios sub-sequentes são designadas Mesolítico. Na Europa ocidental tais culturas são nitidamente mais pobres do que as grandiosas criações do Paleolítico superior. Em compensação, na Ásia do sudoeste, e particularmente na Palestina, o Mesol(tico constitui um período axial : é a época da domesticação dos primeiros animais e dos primórdios da agricultura.

Conhecem-se bastante mal as práticas religiosas dos caçadores que acompanharam as manadas de renas no Norte da Europa. No depósito de resíduos de uma lagoa de Stellmoor, perto de Hamburgo, A. Rust encontrou os restos completos de 12 renas, submersas e com pedras na caixa toráxica ou no ventre. Rust e outros autores interpretaram esse facto como oferenda das primícias apresentadas a uma divindade, provavelmente ao Senhor das Feras. Mas H. Pohlhausen lembrou que os esquimós conservam as provisões de carne na água gelada dos lagos e dos riachos. Entretanto, como reconhece o próprio Pohlhausen, essa explicação empírica não exclui a intencionalidade religiosa de certos depósitos. Com efeito, o sacrifício por imersão é amplamente atestado, e em épocas diferentes, da Europa setentrional até a Índia.

O lago de Stellmoor era provavelmente tido como «lugar sagrado» pelos caçadores mesolíticos. Rust recolheu na jazida numerosos objectos: flechas de madeira, ferramentas de osso, machados talhados em hastes de renas. É muito provável que estes utensílios representem oferendas, como acontece com os objectos da idade de bronze e da idade de ferro encontrados em alguns lagos e lagoas da Europa Ocidental. Sem dúvida, mais de cinco milénios separaram os dois grupos de objectos, mas a continuidade desse tipo de prática religiosa é indubitável. Na fonte chamada de Saint-Sauver (Floresta de Compiêgne) foram descobertos objectos de sílex da época neolítica (quebrados intencionalmente como sinal de ex-voto), do tempo dos gauleses e dos galo-romanos, e da Idade Média aos nossos dias. É preciso também ter presente que, neste último caso, a prática se manteve apesar da influência cultural da Roma Imperial e, sobretudo, a despeito das repetidas proibições da Igreja. Além do seu interesse intrínseco, este exemplo tem um valor paradigmático: ilustra admiravelmente a continuidade dos «lugares sagrados» e de certas práticas religiosas.

Ainda na camada mesolítica de Stellmoor, Rust descobriu uma estaca de pinho com um crânio de rena colocado na sua parte mais alta. Segundo Maringer, essa estaca cultual indica provavelmente refeições rituais: comia-se a carne das renas e ofereciam-se as cabeças desses animais a um ser divino. Não longe de Ahrensburg-Hopfenbach, num local mesolítico datado de  10.000,Rust resgatou do fundo da lagoa um tronco de salgueiro de 3,50 m de comprimento, grosseiramente esculpido: distinguem-se a cabeça, um pescoço alongado e incisões de grandes riscos, que, segundo o autor da descoberta, representam os braços. Esse «ídolo» tinha sido fixado na lagoa, mas não se encontraram em torno ossadas nem objectos de qualquer espécie. Trata-se, provavelmente, da imagem de um Ser sobrenatural, embora não seja passivei precisar-lhe a estrutura.

Ao lado da pobreza desses parcos documentos dos caçadores de renas, a arte rupestre da Espanha oriental oferece ao historiador das religiões um material apreciável. A pintura rupestre naturalista do Paleolítico superior transformou-se, no «Levante espanhol», numa arte geométrica rígida e formalista. As paredes rochosas da Sierra Morena estão cobertas de figuras antropomorfas e terimorfas (principalmente de cervos e cabritos monteses), reduzidas a alguns traços, e de diferentes sinais (tiras onduladas, círculos, pontos, sóis). Hugo Obermaier mostrou que essas figuras antropomorfas se aproximam dos desenhos específicos dos seixos pintados do aziliano. Uma vez que essa civilização deriva da Espanha, as representações antropomorfas inscritas nas paredes rochosas e nos seixos devem ter significados similares. Têm sido explicadas como símbolos fálicos, elementos de uma escrita, ou sinais mágicos. Mais convincente parece a comparação com as 'tjurunga' australianas. Sabe-se que esses objectos rituais, mais frequentemente da pedra e enfeitados com diversos desenhos geométricos, representam o corpo místico dos antepassados. As 'tjurunga' estão escondidas em grutas ou enterradas em certos locais sagrados e só são comunicadas aos jovens no final da sua iniciação. Entre os aranda, o pai dirige-se ao filho nestes termos: «Eis o teu próprio corpo, do qual saíste por um novo nascimento», ou : «É o teu próprio corpo. É o antepassado que tu eras quando durante a tua existência anterior, erravas por regiões longínquas. Depois, desceste à gruta sagrada, para nela repousar».

Supondo-se que os seixos pintados de Mas d'Azil tenham tido, como é provável, uma função análoga à das 'tjurunga', é impossível saber se os seus autores partilhavam ideias similares às dos australianos. Contudo não se pode duvidar do sentido religioso dos seixos azilianos. Na gruta de Birsek, encontraram-se 133 seixos pintados, quase todos quebrados. Parece plausível que tenham sido partidos por inimigos ou por posteriores ocupantes da caverna. Em ambos os casos, pretendia-se eliminar a força mágico-religiosa presente em tais objectos. Provavelmente, as grutas e os locais ornados de pinturas rupestres do Levante espanhol constituiam lugares santos. Quanto aos sóis e aos outros sinais geométricos que acompanham as figurações antropomorfas, o seu significado continua a ser um mistério.

Não temos as menores condições de precisar a origem e o desenvolvimento da crença nos antepassados durante a pré-história. A julgar pelos paralelos etnográficos, esse complexo religioso é susceptível de coexistir com a crença em Seres Sobrenaturais ou em Senhores das Feras. Não se vê por que razão a ideia dos ancestrais míticos não faria parte do sistema religioso dos paleolíticos: ela é solidária com a mitologia das origens -origem do mundo, da caça, do homem, da morte - específicas às civilizações de caçadores. Trata-se, além disso, de uma ideia religiosa universalmente difundida e mitologicamente fértil, pois manteve-se em todas as religiões, mesmo as mais complexas (com excepção do budismo hinâyâna). Pode acontecer que uma ideia religiosa arcaica se espalhe de maneira inesperada em certas épocas e após determinadas circunstâncias particulares. Se é verdade que a ideia do ancestral mítico e o culto dos antepassados dominam o Mesolítico europeu, é provável, como pensa Maringer (op. cit., p. 183), que a importância desse complexo religioso se explique pela lembrança da época glaciária, quando os remotos antepassados viviam numa espécie de «paraíso dos caçadores». Com efeito, os australianos julgam que os seus antepassados míticos viveram, durante a idade de ouro, num paraiso terrestre onde a caça era farta e em que as noções de bem e de mal eram praticamente desconhecidas. E esse mundo «paradisíaco» que os australianos se esforçam por reactualizar durante certas festas, quando as leis e as proibições estão suspensas.

2. TRABALHO. TECNOLOGIA E MUNDOS IMAGINÁRIOS.

Como dissemos, no Próximo Oriente, sobretudo na Palestina, o Mesolítico assinala uma época criadora, embora conservando o seu carácter de transição entre dois tipos de civilizações, a da caça e a da recolecção e uma outra, baseada na cultura dos cereais. Na Palestina, os caçadores do Paleolítico superior parecem ter habitado as grutas no decorrer de longos intervalos. Mas foram sobretudo os detentores da cultura natufiana que optaram por uma existência claramente sedentária. Habitavam tanto as cavernas como os locais ao ar livre (como em Einan, onde as escavações revelaram um lugarejo formado de choupanas circulares dotadas de lares). Os natufianos haviam descoberto a importância alimentar dos cereais silvestres que ceifavam utilizando foices de pedra, e cujos grãos eram pilados num almofariz com o auxílio de um pilão. Era um grande passo em direcção à agricultura. A domesticação dos animais também teve início durante o Mesol ítico (muito embora só se generalize no começo do Neolítico): o carneiro em Zawi Chemi-Shanidar, por volta de 8 .000, o bode em Jericó, na Jordânia, ao redor de 7.000, e o porco em torno de 6.500; o cão em Stan Carr, na Inglaterra, em mais ou menos 7.500. Os resultados imediatos da domesticação das gramíneas aparecem na expansão populacional e no desenvolvimento do comércio, fenómenos que já caracterizam os natufianos.

Ao contrário do esquematismo geométrico específico dos desenhos e das pinturas do Mesolítico europeu, a arte dos natufianos é naturalista: desenterraram-se pequenas esculturas de animais e estatuetas humanas, às vezes em postura erótica. O simbolismo sexual dos pilões esculpidos em forma de falo é tão «evidente» que não se pode duvidar do seu significado mágico-religioso.

Os dois tipos de sepultura natufiana - a) inumação de todo o corpo,numa posição curvada, b ) sepultamento dos crânios - eram conhecidos no Paleolítico e prolongaram-se no Neolítico. A propósito dos esqueletos exumados em Einan, supôs-se que uma vítima humana era sacrificada por ocasião do enterro, mais ignora-se o sentido do ritual. Quanto aos depósitos de crânios, compararam-se os documentos natufianos com os depósitos descobertos em Offnet, na Baviera, e na gruta do Hohlenstern, em Württenburg: todos esses crânios pertenciam a indivíduos que haviam sido chacinados, talvez por caçadores de cabeças ou por canibais.

Em ambos os casos, pode-se presumir um acto mágico-religioso, uma vez que a cabeça (i.e., o cérebro) era considerada a sede da «alma». Há já muito tempo que, graças aos sonhos e às experiências extáticas e paraextáticas, se reconheceu a existência de um elemento independente do corpo, que as línguas modernas designam pelos termos «alma», «espírito», «sopro», «vida», «duplo» etc. Esse elemento «espiritual» (não lhes podemos dar outro nome, já que era apreendido enquanto imagem, visão, «aparição» etc.) estava presente no corpo inteiro; constituía de alguma forma o seu «duplo». Mas a localização da «alma» ou do «espírito» no cérebro teve consequências consideráveis: por um lado acreditava-se poder assimilar o elemento «espiritual» da vítima devorando-lhe o cérebro; por outro lado, o crânio, fonte de poder, tornava-se objecto de culto.

Além da agricultura, outras invenções tiveram lugar durante o Mesolitico, sendo as mais importantes o arco e a confecção de cordas, redes, anzóis, e de embarcações capazes de viagens bastante longas. Tal como as outras invenções anteriores (ferramentas de pedra, diversos objectos trabalhados em osso ou em armações de cervo, roupas e toldos de peles etc.), e as que serão efectivadas durante o Neolítico (em primeiro lugar a cerâmica), todas essas descobertas suscitaram mitologias e fabulações paramitológicas e às vezes deram origem a comportamentos rituais. O valor empírico dessas invenções é evidente. O que é menos óbvio é a importância da actividade imaginária deflagrada pela intimidade com as diferentes modalidades da matéria. Trabalhando com um sílex ou uma agulha primitiva, ligando peles de animais ou tábuas de madeira, preparando um anzol ou uma ponta de flecha, moldando uma estatueta em argila, a imaginação revela analogias insuspeitadas entre os diferentes níveis do real ; as ferramentas e os objectos são carregados de inumeráveis simbolismos, o mundo do trabalho - o micro-universo que rouba a atenção do artesão durante longas horas -torna-se um centro misterioso e sagrado, rico de significados.

O mundo imaginário criado e continuamente enriquecido pela intimidade com a matéria deixa-se apreender de maneira insuficiente nas criações figurativas ou geométricas das diferentes culturas pré-históricas. Mas esse mundo ainda nos é acessível nas experiências da nossa própria imaginação. É principalmente essa continuidade ao nível da actividade imaginária que nos permite «compreender» a existência dos homens que viviam nessas épocas longínquas. Mas, ao contrário do homem das sociedades modernas, a actividade do homem pré-histórico possuía uma dimensão mitológica. Uma quantidade considerável de figuras sobrenaturais e de episódios mitológicos, que vamos encontrar nas  tradições religiosas posteriores, representam muito provavelmente «descobertas» das idades da pedra.

3. A HERANÇA DOS CAÇADORES PALEOLITICOS. 

Os progressos realizados durante o Mesolítico põem f im à unidade cultural das populações paleolíticas e desencadeiam a variedade e as divergências que passarão a ser doravante a principal característica das civilizações. As sociedades de caçadores paleolíticos restantes começam a penetrar nas regiões marginais ou de difícil acesso : o deserto, as grandes florestas, as montanhas. Mas esse processo de afastamento e de isolamento das sociedades paleolíticas não implica o desaparecimento do comportamento e da espiritualidade específicas ao caçador. A caça como meio de subsistência prolonga-se nas sociedades dos agricultores. E provável que um certo número de caçadores, que se recusavam a participar activamente da economia dos cultivadores, tenham sido empregados como defensores das aldeias; a princípio contra os animais selvagens que importunavam os sedentários e causavam prejuízos aos campos cultivados, e mais tarde contra os bandos de saqueadores. É também provável que as primeiras organizações militares se tenham constituído a partir desses grupos de caçadores-defensores das aldeias. Como veremos na hora oportuna, os guerreiros, os conquistadores e as aristocracias militares prolongam o simbolismo e a ideologia do caçador típico.

Por outro lado, os sacrifícios cruentos, praticados tanto pelos cultivadores como pelos que vivem do pastoreio, repetem, no final das contas, o acto do caçador ao abater a caça. Um comportamento que, durante um ou dois milhões de anos, se confundira com a forma humana (ou pelo menos masculina) de existir, não se deixa eliminar com facilidade.

Vários milénios depois do triunfo da economia agrícola, a Weltanschauung do caçador primitivo far-se-á de novo sentir na história. Com efeito, as invasões e as conquistas dos indo-europeus e dos turco-mongóis serão empreendidas sob a égide do caçador por excelência, o animal carnívoro. Os membros das confrarias militares (Mannerbünde) indo-europeias e os cavaleiros nómadas da Asia central comportavam-se em relação às populações sedentárias que atacavam como carnívoros que caçam, estrangulam e devoram os herbívoros da estepe ou o gado dos agricultores. Numerosas tribos indo-europeias e turco-mongóis tinham epónimos de animais de rapina (em primeiro lugar, o lobo) e consideraram-se descendentes de um Antepassado mítico teriomorfo. As iniciações militares dos indo-europeus comportavam uma transformação ritual em lobo: o guerreiro exemplar apropriava-se do comportamento de um carnívoro.

Por outro lado, a perseguição e a execução de uma fera torna-se o modelo mítico da conquista de um território (Landnáma) e da fundação de um Estado. Entre os assírios iranianos e os turco-mongóis, as técnicas da caça e da guerra, assemelham-se a ponto de se confundirem. Por toda a parte, no mundo asiático, desde o aparecimento dos assírios até aos começos da época moderna, a caça constitui ao mesmo tempo a educação por excelência e o desporto favorito dos soberanos e das aristocracias militares. Aliás, o prestígio fabuloso da existência do caçador em relação à dos cultivadores sedentários mantém-se ainda em diversas populações primitivas. As centenas de milhares de anos vividos numa espécie de simbiose m rstica com o mundo animal deixaram traços indeléveis. Além disso, o êxtase orgiástico é capaz de reactualizar o comportamento religioso dos primeiros Paleomínidas, quando a caça era devorada crua; facto que se verificou na Grécia, entre os adoradores de Dioniso ( vol.2,§124) ou, ainda no princípio do século XX, entre os Aissaua de Marrocos.

4. A DOMESTICAÇÃO DAS PLANTAS ALIMENTARES: MITOS DE ORIGEM

Desde 1960 sabe-se que as aldeias precederam a descoberta da agricultura. O que Gordon Childe chamava «revolução neolítica» efectuou-se gradualmente entre 9.000 e 7.000. Sabe-se também que, ao contrário do que se pensava até bem pouco tempo, a cultura das gramíneas e a domesticação dos animais precederam a fabricação da cerâmica. A agricultura propriamente dita, isto é, a cerealicultura, desenvolveu-se na Asia sul-ocidental e na América central. A «vegetocultura», que depende da reprodução vegetativa dos tubérculos, raízes ou rizomas, parece ter origem nas planícies húmidas tropicais da América e da Asia sul-ocidental.

Ainda se conhecem mal a antiguidade da cultura de vegetais e as suas relações com a cultura cerealífera de vegetais. Alguns etnólogos inclinam-se a considerar a cultura antiga como mais do que a cultura dos grãos; outros, ao contrário, cuidam que ela representa uma imitação empobrecida da agricultura. Uma das raras indicações precisas foi fornecida pelas escavações efectuadas na América do Sul. Nas planícies de Rancho Peludo, na Venezuela, e Momil, na Colômbia, vestígios de uma cultura de mandioca foram descobertos debaixo do nível da cultura do milho, o que significa a antecedência da cultura de vegetais. Recentemente, uma nova prova de antiguidade da Tailândia foi revelada: numa caverna (a «Gruta dos Fantasmas») exumaram-se ervilhas cultivadas, favas e raízes de plantas tropicais; a análise com carbono radiactivo aponta para datas em torno de 9.000.

Inútil insistir na importância da descoberta da agricultura para a história da civil ização. Tornando-se o produtor do seu alimento, o homem teve de modificar o seu comportamento ancestral. Antes de mais nada, teve de aperfeiçoar a sua técnica de calcular o tempo, descoberta ainda no Paleolítico. Já não lhe bastava assegurar a exactidão de certas datas futuras com o aux ílio de um calendário lunar rudimentar. Doravante, o cultivador estava obrigado a elaborar os seus projectos vários meses antes da sua aplicação, e também a executar, numa ordem precisa, uma série de actividades complexas tendo em vista um resultado longínquo e, sobretudo no início, jamais certo: a colheita. De mais a mais, a cultura das plantas impôs uma divisão do trabalho orientada de forma diferente da anterior, pois a principal responsabilidade no assegurar dos meios de subsistência passava a caber às mulheres.

Não menos consideráveis foram as consequências da descoberta da agricultura para a história religiosa da humanidade. A domesticação das plantas ocasionou uma situação existencial até então inacesslvel; por conseguinte, serviu de estímulo a criações e inversões de valores que modificaram radicalmente o universo espiritual do homem pré-Neolítico. Vamos analisar daqui a pouco essa «revolução religiosa» inaugurada pelo triunfo da cultura cerealífera. Por enquanto, lembremos os mitos que explicam a origem dos dois tipos de agricultura. Ao tomar conhecimento de como os cultivadores explicavam o aparecimento das plantas alimentares, aprendemos ao mesmo tempo a justificação religiosa dos seus comportamentos.

A maioria dos mitos de origem foi recolhida entre populações primitivas que praticam quer a cultura dos vegetais quer a dos cereais. (Tais mitos são mais raros, e por vezes radicalmente reinterpretados, nas culturas evolu idas). Um tema bastante difundido explica que os tubérculos e as árvores que produzem frutos comestíveis (coqueiro, bananeira, etc.) teriam nascido de uma divindade imolada. O exemplo mais famoso chega-nos de Ceram, uma das ilhas da Nova Guiné: do corpo retalhado e enterrado de uma mocinha semi-divina, Hainuwele, crescem plantas até então desconhecidas, principalmente os tubérculos. Esse assassínio primordial transformou radicalmente a condição humana, pois introduziu a sexualidade e a morte, e instaurou as instituições religiosas e sociais ainda vigentes. A morte violenta de Hainuwele não é apenas uma morte «criadora» : ela permite à deusa estar continuamente presente na vida dos humanos, e até mesmo na sua morte. Nutrindo-se das plantas provindas do seu próprio corpo, os homens alimentam-se, na realidade, da sua própria substância da divindade.

Não vamos insistir na importância desse mito de origem para a vida religiosa e a cultura dos paleo-cultivadores. Basta afirmar que todas as actividades responsáveis (cerimónias de puberdade, sacrifícios de animais ou sacrifícios humanos, canibalismo, cerimónias funerárias etc.) constituem propriamente a rememoração do assassínio primordial. E significativo que o cultivador associe a um assassinato o trabalho, pacifico por excelência, que lhe assegura a existência; ao passo que nas sociedades dos caçadores a responsabilidade pela carnificina é atribuída a um outro, a um «estrangeiro». Compreende-se o caçador: ele teme a vingança do animal abatido (mais exactamente, da sua «alma») ou justifica-se perante o Senhor das Feras. Quanto aos paleo-cultivadores, o mito do assassínio primordial justifica, decerto, ritos cruentos como o sacrifício humano e o canibalismo, mas é diHcil precisar o seu contexto religioso inicial.

Um tema mítico análogo explica a origem das plantas nutritivas - quer tubérculos, quer cereais - como oriundas das excreções de uma divindade ou de um antepassado mítico. Quando os beneficiários descobrem a origem, repulsiva, dos alimentos, abatem o autor; mas, seguindo os seus conselhos, decepam o corpo e enterram-lhe os pedaços. Plantas nutritivas e outros elementos de cultura (instrumentos agrícolas, bicho-da-seda,etc.) brotam do seu cadáver.

O significado desses mitos é evidente: as plantas alimentares são sagradas por derivarem do corpo de uma divindade (pois as excreções também fazem parte da substância divina). Ao se nutrir, o homem come, em última instância, um ser divino. A planta alimentar não é «dada» no mundo, tal como o animal. Ela é o resultado de um acontecimento dramático primitivo, no caso, o produto de um assassínio. Veremos mais adiante as consequências dessas teologias alimentares.

O etnólogo alemão Ad. E. Jensen considerava que o mito de Hainuwele é específico dos paleo-cultivadores de tubérculos. Ouanro aos mitos referentes à origem da cerealicultura, colocam em cena um furto primordial : os cereais existem, mas no céu , ciosamente guardados pelos deuses; um herói civilizador sobe ao céu, apodera-se de alguns grãos e com eles recompensa os seres humanos. Jensen dava a esses dois tipos de mitologias os nomes de «Hainuwele» e «Prometeu» e relacionava-os respectivamente com a civilização dos paleo-cultivadores (cultura de vegetais) e com a dos agricultores propriamente ditos cultura cerealífera). A distinção é, sem dúvida, real. Entretanto, no que respeita aos dois tipos de mitos de origem, ela é menos rígida do que pensava Jensen, pois muitos mitos explicam o aparecimento dos cereais a partir de um ser primitivo imolado. Acrescentemos que nas religiões dos agricultores a origem dos cereais é igualmente divina: o presente dos cereais aos humanos é às vezes relacionado com uma hierogamia entre o deus do céu (ou da atmosfera) e a Terra Mãe, ou com um drama mítico que implica união sexual, morte e ressureição.

5. A MULHER E A VEGETAÇÃO. ESPAÇO SAGRADO E RENOVAÇÃO PERIÓDICA DO MUNDO

A primeira - e talvez a mais importante consequência da descoberta da agricultura - provoca uma crise nos valores dos caçadores paleolíticos: as relações de ordem religiosa com o mundo animal são suplantadas pelo que podemos chamar de a solidariedade mística entre o homem e a vegetação. Se o osso e o sangue representavam até então a essência e a sacralidade da vida, doravante são o esperma e o sangue que as encarnam. Além disso, a mulher e a sacralidade feminina são promovidas ao primeiro plano. Como as mulheres desempenharam um papel decisivo na domesticação das plantas, tornam-se as proprietárias dos campos cultivados, o que lhes realça a posição social e cria instituições características, como, por exemplo, a matrilocação, em que o marido está obrigado a habitar a casa da esposa.

A fertilidade da terra é solidária com a fecundidade feminina; consequentemente, as mulheres tornam-se responsáveis pela abundância das colheitas, pois são elas que conhecem o «mistério» da criação. Trata-se de um mistério religioso, porque governa a origem da vida, alimentação e morte. Mais tarde, após a invenção do arado,· o trabalho agrário é assimilado ao acto sexual. Mas, durante milénios a Terra Mãe dava à luz sozinha, por partenogénese. A lembrança desse «mistério» sobrevivia ainda na mitologia olímpica (Hera concebe sozinha e dá à luz Hefesto e Ares) e deixa-se decifrar em numerosos mitos e várias crenças populares sobre o nascimento dos homens da Terra, o parto no solo, a colocação do recém-nascido sobre o chão etc. Nascido da Terra, o homem, ao morrer, retorna à sua mãe. «Rastejar para a terra, tua mãe», exclama o poeta védico (Rig Veda, X, 18, 10).

Certamente a sacralidade feminina e materna não era ignorada no Paleolítico (cf. § 6), mas a descoberta da agricultura aumenta-lhe sensivelmente o poder. A sacralidade da vida sexual, em primeiro lugar a sacralidade feminina, confunde-se com o miraculoso enigma da criação. A partenogénese, o hierós gámos e a orgia ritual exprimem, em planos distintos, o carácter religioso da sexualidade. Um simbolismo complexo, de estrutura antropocósmica, associa a mulher e a sexualidade aos ritmos lunares, à Terra (assimilada ao útero) e àquilo a que devemos chamar o «mistério» da vegetação. Mistério que reclama a «morte» da semente a fim de lhe assegurar um novo nascimento, tanto mais maravilhoso quanto se traduz numa espantosa multiplicação. A assimilação da existência humana à vida vegetativa exprime-se por imagens e metáforas tiradas do drama vegetal (a vida é como a flor dos campos etc.). Essa imagística alimentou a poesia e a reflexão filosófica durante milhares de anos, e ainda continua a ser «verdadeira» para o homem contemporâneo.

Todos esses valores religiosos resultantes da descoberta da agricultura foram articulados progressivamente com o passar do tempo. Entretanto, evocamo-los a partir de agora para salientar o carácter específico das criações meso1íticas e neolíticas. Vamos encontrar continuadamente ideias religiosas, mitologias e encenações rituais solidárias do «mistério» da vida vegetal. Pois a criatividade religiosa foi despertada não pelo fenómeno empfrico da agricultura, mas pelo mistério do nascimento, da morte e do renascimento identificado no ritmo da vegetação. As crises que põem a colheita em perigo (inundações, secas etc.) serão traduzidas, para serem compreendidas, aceites e dominadas, em dramas mitológicos. Essas mitologias, e as encenações rituais deles dependentes, vão dominar durante milénios as civilizações do Próximo Oriente. O tema mítico dos deuses que morrem e ressuscitam figura entre os mais importantes. Em certos casos, essas encenações arcaicas darão origem a novas criações religiosas (por exemplo, Elêusis, os mistérios greco-orientais; cf. vol. 2, § 96).

As culturas agrícolas elaboram o que podemos chamar religião cósmica, uma vez que a actividade religiosa está concentrada em torno do mistério central : a renovação periódica do Mundo. Tal como a existência humana, os ritmos cósmicos são expressos em termos tirados da vida vegetal. O mistério da sacralidade cósmica está simbolizado na Arvore do Mundo. O Universo é concebido como um organismo que deve renovar-se periodicamente, noutros termos, todos os anos. A «realidade absoluta», o rejuvenescimento, a  imortalidade, são acessíveis a alguns privilegiados na forma de um fruto ou de uma fonte próxima a uma árvore. Julga-se que a Árvore cósmica se encontra no Centro do Mundo e congrega as três regiões cósmicas, pois afunda as suas raízes no Inferno e o seu cimo toca o Céu.

Já que o mundo deve ser renovado periodicamente, a cosmogonia será ritualmente refeita por ocasião de cada Ano Novo. Essa encenação mítico-ritual é atestada no Próximo Oriente e entre os indo-iranianos. Mas vêmo-la também nas sociedades dos cultivadores primitivos, que prolongam de alguma forma as concepções religiosas do Neolítico. A ideia fundamental - renovação do mundo pela repetição da cosmogonia - é certamente mais antiga, pré-agrícola. Reencontramo-la, com as inevitáveis variações, entre os australianos e em numerosas tribos da América do Norte. Entre os paleo-cultivadores e os agricultores, a encenação. mítico-ritual do Ano Novo compreende o retorno dos mortos, e cerimónias análogas subsistem na Grécia clássica, entre os antigos germanos, no Japão, etc.

A experiência do tempo cósmico, sobretudo no âmbito dos trabalhos agrícolas, acaba por impôr a ideia do tempo circular e do ciclo cósmico. Visto que o mundo e a existência humana são valorizados em termos da vida vegetal , o ciclo cósmico é concebido como a repetição indefinida do mesmo ritmo : nascimento, morte, renascimento. Na Índia pós-védica, essa concepção será elaborada em duas doutrinas solidárias: a dos ciclos (yuga) que se repetem até o infinito e a transmigração das almas. Por outro lado, as ideias arcaicas articuladas em torno da renovaça- o periódica do Mundo serão retomadas, reinterpretadas e integradas em diversos sistemas religiosos do Próximo Oriente. As cosmologias, escatologias e messianismos que vão dominar durante dois milénios o Oriente e o mundo mediterrânico têm as suas raízes nas concepções dos neolíticos.

Igualmente importantes foram as valorizações religiosas do .espaço, ou seja,antes de mais, as valorizações da habitação e da aldeia. Uma existência sedentária organiza o «mundo» de uma forma diferente da empregada por uma vida de nómada. O «verdadeiro mundo» é, para o agricultor, o espaço onde ele vive: a casa, a aldeia, os campos cultivados. O «Centro do Mundo» é o lugar consagrado pelos rituais e orações, pois é ali que se efectua a comunicação com os Seres sobre-humanos. Ignoramos as significações religiosas atribuídas pelos neolíticos do Próximo Oriente às suas casas e aldeias. Sabemos apenas que, a partir de determinado momento, construiram altares e santuários. Contudo, na China, podemos reconstituir o simbolismo da casa neolítica, por existir continuidade e analogia com certos tipos de habitações da Asia setentrional e do Tibete. Na cultura neolítica do Yang-chao, havia pequenas construções circulares (com aproximadamente 5 m de diâmetro) cujas vigas sustentavam o tecto e se alinhavam em torno de uma cavidade central que servia de lareira. E possível que o tecto também possuísse uma abertura destinada a dar saída ao fumo da lareira. Essa casa teria tido, em materiais duros, a mesma estrutura que a iurta mongol dos nossos dias. Ora, conhece-se o simbolismo cosmológico de que se revestem a iurta e as tendas das populações norte-asiáticas: o Céu é concebido como uma imensa tenda sustentada por uma pilastra central : a estaca da tenda ou a abertura superior para a saída da fumaça são assimiladas ao Pilar do Mundo ou à «Cavidade do Céu», A Estrela Polar. Essa abertura também é chamada de «Janela do Céu». Os tibetanos dão à abertura do tecto das suas casas o nome de «Fortuna do Céu» ou «Porta do Céu».

O simbolismo cosmológico da habitaçao é atestado em numerosas sociedades primitivas. De forma quase indiscutível, a habitação é considerada uma imago mundi. Como se encontram exemplos disso em todos os níveis de cultura, não se compreende por que os primeiros neolíticos do Próximo Oriente;constituiram uma excepção, tanto mais que é nessa região que o simbolismo cosmológico da arquitectura terá o mais próspero desenvolvimento. A separação da habitação entre os dois seixos (costume já constatado no Paleolítico, § 6) tinha provavelmente um sentido cosmológico. As divisões que nos revelam as aldeias dos cultivadores correspondem em geral a uma dicotomia ao mesmo tempo classificatória e ritual: Céu e Terra, masculino e feminino etc., e também a dois grupos ritualmente antagónicos. Ora, como veremos em várias oportunidades, os combates rituais entre dois grupos opostos desempenham um papel importante, mormente nas encenações no Ano Novo. Quer se trate da repetição de um combate mítico, como na Mesopotâmia (§ 22). ou simplesmente do confronto entre dois princípios cosmogónicas (Inverno/Verão; Dia/Noite; Vida/Morte). o seu significado profundo é idêntico; o confronto, as justas, os combates despertam, estimulam ou aumentam as forças criadoras da vida.Essa concepção biocosmológica, provavelmente elaborada pelos agricultores neolíticos, foi alvo no decorrer dos tempos de múltiplas reinterpretações, ou de deformações. Mal pode ser reconhecida, por exemplo, em certos t ipos de dualismo religioso.

Não tivemos a pretensão de ter enumerado todas as criações religiosas suscitadas pela descoberta da agricultura. Bastou-nos mostrar a origem comum, no Neolítico, de algumas ideias que por sua vez se desenvolverão milénios mais tarde. Acrescentemos que a difusão da religiosidade de estrutura agrária teve como resultado, a despeito das inumeráveis variações e inovações, a constituição de uma certa unidade fundamental que, ainda nos nossos dias, se aproxima de sociedades camponesas tão distantes uma das outras como são as do Mediterrâneo, da Índia e da China.

Texto de Mircea Eliade em "História das Ideias e Crenças Religiosas" título original "Histoire des Croyances et des Idées Religieuses",volume 1, tradução de Daniela de Carvalho e Paulo Ferreira da Cunha,RÉS Editora Ltda, Porto, Portugal,excertos pp.33-46. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa. 

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