4.19.2018

A SOCIEDADE COMO PROTAGONISTA



A herança político-burocrática de Portugal

Um dos versos do Hino Nacional inquieta nosso subconsciente: "Deitado eternamente em berço esplêndido", diz, referindo-se ao Brasil. Pois bem, nos dias que correm, se o Estado ainda não despertou totalmente para cumprir suas tarefas, a sociedade está muito ativa, o povo se organiza cada vez mais. Este é outro corte essencial para entender as mudanças havidas e para refazer os conceitos, valores e atitudes que guiam nossa política.

Vem de priscas eras a noção de que o Brasil como nação organizada é fruto mais da ação do Estado do que da sociedade, do povo. É um truísmo reconhecer que os colonizadores portugueses aportados na primeira onda de "globalização", se assim posso me referir anacronicamente à expansão do capitalismo comercial europeu do século XVI, levaram tempo para saber o que fazer com a Terra de Santa Cruz. Na primeira tentativa de algo que não fosse deixar os indígenas levando suas vidas nos limites de suas culturas, doaram-se sesmarias hereditárias aos amigos do Rei. As capitanias trouxeram os vícios do patrimonialismo e do favorecimento, que permaneceriam como que embutidos em nosso tecido social. E com elas veio também o mal de origem: o latifúndio.

Não tardou, contudo, para a Coroa perceber que súditos distantes ou absenteístas cuidariam mais de si que dos interesses de Portugal.

Centralizou-se então o poder e, com delegação direta dos reis, os vice-reis, pessoas mais próximas da Coroa e mais dispostas a servir a seus interesses, assumiram a gerência de tanta terra e tanto problema.

Para a Coroa e seus representantes diretos, duas questões primavam: pôr ordem na casa (nada de rebeliões libertárias, nem de "subversões", quer dizer, escravos que quisessem ser algo mais do que 'instrumentum vocalis' e morte aos inimigos espanhóis. Por volta de 1750, na época do Tratado de Madri, que definiu os limites das possessões hispânicas com as portuguesas, não era de estranhar que nossos vice-reis achassem melhor a ocupação das terras por "meio-portugueses", ou seja, descendentes de pai luso e mãe índia, do que por gente vinda das terras das quais se dizia em Portugal que não traziam bons ventos nem boas esposas, as temidas terras de Castela.

José Sebastião Carvalho e Melo, futuro marquês de Pombal, preocupado com a ocupação da Amazônia e, posteriormente, do Pará e do Maranhão, recomendou a seus delegados, como mostrou o brasilianista britânico Kenneth Maxwell, que dessem vantagens aos varões portugueses que se casassem com as "tapes", as mulheres indígenas. Não custou para que os jesuítas, com o objetivo de "defender os nativos", bem como manter seu domínio sobre eles, se opusessem aos desígnios pombalinos, o que resultou, com o tempo, e não só por este motivo, na expulsão da Companhia de Jesus.

Latifúndio, burocracia imperial e escravidão, eis o retrato do Brasil Colônia, tão bem descrito por Caio Prado Júnior. Só que, por simples que fosse a estrutura colonial, ela tinha a marca de algumas contradições. Não apenas na tensão entre senhor e escravo, objeto das controvérsias clássicas entre as interpretações de Gilberto Freyre e as da "escola sociológica paulista", na qual como cientista social me incluo, mas na tensão entre os interesses da Coroa e os dos grandes proprietários, ex-sesmeiros ou novos aventureiros, que se "apropriaram” dos grandes tratos de terra, as fazendas (e escrevo apropriaram entre aspas porque, sendo a posse concedida, o domínio das terras continuava com a Coroa). Não por acaso na História do Brasil colonial tantas "cidades", melhor, vilas, queriam ostentar o título de súditas diretas do Rei, desde a Vila Boa de Goiás de meus ancestrais, até as inúmeras valorosas vilas d'El Rey espalhadas pelo Brasil afora. Nos conselhos das vilas - as câmaras municipais, como são hoje --, os grandes da terra, verdadeiros senhores de que não possuíam qualquer título de nobreza de Portugal, mandavam desmandavam, entrando frequentemente em choque com os burocratas, nobres ou não, representantes do Estado português.1 Os mandões das câmaras locais preferiam manter relações diretas com Lisboa.

Nessa estrutura, a "sociedade civil" (no sentido das pessoas e setores cuja legitimação não advinha de ligações com o Estado) era embrionária e se compunha somente do segmento dominante. Os dominados eram escravos ou agregados sem "cidadania", e o Estado tinha sua expressão visível nos funcionários do Rei, sendo a garganta do Vice-Rei sua única voz política. Essa situação complicou-se extremamente tanto pela evolução das "cidades", com seus comerciantes e traficantes de escravos, como porque

Napoleão Bonaparte varreu da Europa as antigas famílias reinantes. Em consequência, os Bourbon (de Dona Carlota Joaquina, esposa de Dom João VI) e os Bragança de Portugal vieram se aninhar no Rio de Janeiro em 1808. A chegada da Corte portuguesa, com exércitos, tribunais, magistrados, biblioteca, e artistas, além de missões compostas por cientistas.

A ocupação definida, tumultuou o Rio, mas permitiu fortalecer a ordem burocrática e estender os tentáculos da Coroa, que, entretanto, nunca alcançaram os rincões mais longínquos do país. E constituiu fato inédito no mundo colonial: o Rio se transformou na capital do Império português. Pouco tempo depois o Brasil passou à categoria de "Reino Unido" a Portugal, concretizando o que fora a antevisão de um importante emissário diplomático da Coroa portuguesa, dom Luís da Cunha, que propôs em 1736 a transferência da capital do império para o Brasil com o Rei, como um Carlos Magno redivivo, tomando o título de "Imperador do Ocidente".

Quando a independência se fez, não só quem a proclamou foi Dom Pedro I, filho do Rei de Portugal (e futuro Pedro IV, de lá também Rei) como o novo Estado brasileiro herdou as estruturas político-burocráticas portuguesas. Tudo isso contrasta grandemente com a fragmentação das antigas colônias espanholas, mais depressa liberadas do peso da tradição, mas, em contrapartida, muito menos organizadas em torno de uma estrutura estatal pesou igualmente na continuidade as centralizadoras, durante o período da Monarquia (1822-1889) sólida.

Há diferenças nas análises da sociedade brasileira desse período, pois autores, como Caio Prado Júnior, põem mais ênfase no binômio latifúndio-escravidão para analisar sua evolução, enquanto Raymundo Faoro, por exemplo, olha mais de perto a influência dos segmentos políticos e burocráticos. De modo geral, entretanto, as interpretações coincidem em que o "povo" praticamente inexistia como categoria política. Por certo, nada disso nega nem as tentativas de revoltas dos escravos (basta mencionar Zumbi dos Palmares, morto em 1695) nem rebeliões populares como a revolta chamada de "Cabanada", em Pernambuco (1832-1835), a dita "das Balaiadas", no Maranhão e também no Piauí (1838-1841), e muitas outras, sem mencionar, ainda no século XVIII, a Inconfidência Mineira (1792), que já mostrava a presença de classes médias educadas, pelo menos nas áreas de mineração, e a luta chamada "dos alfaiates" na Bahia, ou pequenos comerciantes e Conjuração Baiana (1798), que teve à frente artesãos. Entretanto, por heróicas que tenham sido tais lutas e por referências que sejam para a formação nacional, a estrutura de poder estava solidamente incrustada nos elementos dominantes mencionados acima.

O jogo político da Monarquia, tão admiravelmente descrito por Joaquim Nabuco em 'Um Estadista do Império' e tão brilhantemente interpretado por Sérgio Buarque de Holanda nos volumes sobre o 'Império' de sua 'História Geral da Civilização Brasileira,2 baseava-se, de fato, em uma sólida aliança com os produtores rurais, senhores de escravos, que a sabedoria política de Pedro II nobilitava, agraciando-os geralmente com o título de barão. A aliança, básica para que o poder imperial se mantivesse, precisava ser complementada, no entanto, e não de modo secundário, pela lealdade dos que dispunham da força militar (alguns dos quais, sobretudo depois da Guerra do Paraguai, travada entre 1864 e 1870, seriam transformados em marqueses e viscondes, tendo mesmo havido um duque) e das camadas "superestruturais", compostas por grandes políticos, altos funcionários e intelectuais, a quem a Coroa igualmente nobilitou, principalmente como viscondes e marqueses. Com a República, as "oligarquias" se mantiveram.3

Pesavam nelas, entretanto, mais os proprietários das novas áreas de produção, que já utilizavam a mão-de-obra das classes proprietárias substituindo a escravidão que havia imperado no passado. As estruturas burocráticas também começaram a mudar. Depois da Guerra do Paraguai, surgia uma nova classe média vinculada ao aparato estatal. Não se tratava ainda de uma classe média ligada às forças do mercado, como existe hoje, e na época tinha peso comparativamente diminuto. Era uma camada composta por "filhos de alguém" (fidalgos, etimologicamente) advindos das famílias ditas "tradicionais", ou seja, que livre dos imigrantes, do que as arruinadas regiões de produção antiga, como o Nordeste, onde em algum momento do passado tiveram ligações com a terra ou com o estamento burocrático imperial e que perderam status.

Na República, a escolha de quem mandava na política e no governo passou a depender do voto. Por imperfeito e fraudulento que fosse, o voto dava primazia aos que pudessem controlá-lo. Data desse período a força dos "coronéis", assim chamados tanto os que eram, no sentido moderno, bosses eleitorais, como os que tinham graduação na Guarda Nacional, instituição imperial criada em 1831 que a República soube transmutar em seu benefício. Basta ler o livro clássico de Victor Nunes Leal, 'Coronelismo, Enxada e Voto',4 para perceber como se dava o imbricamento do poder republicano com a nova ordem dominante e ver a importância relativa dos chefes locais, coletores de votos.

Os donos do poder, a dinâmica das classes e a cidadania

Na formação do Brasil é possível distinguir a base econômica da estrutura político-social. A dinâmica de ambas, entretanto, supõe uma inter-relação. Por isso, penso que os autores citados, com suas distintas visões, antes se complementam do que se opõem. A partir de qualquer deles é inegável que o que hoje chamamos de "sociedade civil” era débil, praticamente inexistente. Isso só começa a deixar de ser certo, para mencionar um marco, a partir da Primeira Guerra Mundial, travada entre 1914 e 1918 (Celso Furtado mostra a importância dos conflitos mundiais, que cortavam as importações, para a dinâmica da produção nacional e, portanto, para a emergência de novos grupos sociais). Se o povo "bestificado" assistiu à Proclamação da República, no dito famoso de Aristides Lobo - republicano histórico, jornalista e político que chegou a integrar o governo do marechal Deodoro da Fonseca (1889-1891) -, as revoluções dos tenentes, de 1922 e 1924, assim como a derrubada da República Velha, em 1930, tiveram a simpatia das classes médias urbanas.

Desde o início do século XX houve alguma conexão, pelo menos em termos do clima de protesto, com os movimentos operários, presentes nas cidades maiores, sendo significativas as ações dos anarquistas e a fundação do PCB. A partir dessa época torna-se mais difícil conferir ênfase excessiva aos estamentos burocráticos para entender quem eram os donos do poder. A dinâmica das classes ganha importância crucial, embora Faoro mantenha sua tese sobre os donos do poder até o período do Estado Novo.

Não é nem de longe meu propósito refazer nesta seção a História política do Brasil, mas apenas procurar responder à questão: qual é o peso relativo das forças sociais independentes do Estado no jogo político?

Com base na linha de pensamento exposta, de que o Estado desempenhou um papel maior do que se imagina (para sociedade, nela englobadas as forças enraizou-se a crença de que o Estado é o cadinho da sociedade e cabe a ele preservar os interesses daquela, afirmá-la, conferir legitimidade política ao povo e assim por diante.

No período do governo Vargas, sobretudo durante o Estado Novo, essa ideologia predominou. O autor paradigmático é Oliveira Vianna, que, com fortes traços racistas e inclinações despótico-fascistas, refez a história de nossa formação para culminar na defesa do corporativismo e do regime autoritário.

No México do Partido Revolucionário Institucional,  PRI (também corporativista e burocrático-autoritário), havia um ditado expressivo, que se pode aplicar a essa concepção: 'El que vive afuera del presupuesto vive en el error', ou, adaptando à nossa situação, fora do Orçamento do Estado caímos em pecado, não há salvação. Ditame que se aplicaria não apenas aos funcionários públicos, mas aos empresários e até mesmo ao povo, receptor de benesses governamentais.

Parece indiscutível, contudo, que desde os anos 1930, e, em especial, a partir da Segunda Guerra Mundial (que trouxe um boom industrializador e poderosos impulsos migratórios internos, adensando as cidades), o que veio a se chamar de sociedade civil ganhou peso na vida política. Sua presença se tornou mais perceptível a partir da década de 1970. Daí por diante as forças dinâmicas da sociedade não pararam de se mover.5

O processo de formação da "cidadania" e de incorporação das massas rurais não foi linear. Vem se fazendo com idas e vindas. A partir da ruptura do isolamento do Brasil, tanto em termos comerciais e políticos como culturais (com a Internet e a TV é impossível isolar ideias), as ideologias estatistas e a noção de que os cidadãos precisam de tutela do governo para atuar na cena pública se tornaram anacrônicas. Essa persistência anacrônica se explica parcialmente porque o processo de formação da "cidadania" e de incorporação das massas rurais se desenvolveu caprichosamente.

Em certos momentos, coube ao Estado autoritário garantir as franquias democráticas e sociais, invertendo evolução do que aconteceu em vários países da Europa. Talvez por isso o progressismo social tenha incorporado com tanto vigor uma concepção política que é inequivocamente autoritária e vê no Estado o construtor de uma sociedade melhor, enquanto o mercado aparece como um muro de contenção ao acesso das massas. Se somarmos a essa tendência a tradição comunista, que tanto influenciou setores políticos, de um Estado forte e  "desenvolvimentista", é fácil perceber o porquê dos caminhos tortuosos da percepção de nossa modernização social e política.

A literatura sobre esses caminhos é conhecida. O que o sociólogo britânico T. H. Marshall chamou de cidadania, tomando o conceito de seu homônimo economista, era "uma espécie de participação integral na comunidade (...) o qual não é inconsistente com as desigualdades que diferenciam de igualdade humana básica associada com o conceito de desigualdade do sistema de classes sociais pode ser aceitável desde que a igualdade de cidadania seja reconhecida."6

Em outras palavras, a  expansão da cidadania, na Grã-Bretanha, abrangeu, progressiva e sequencialmente, os direitos civis, os políticos e os sociais. Os direitos civis asseguraram as liberdades individuais (liberdade de movimentos, de imprensa, de pensamento e de fé, o direito à propriedade, à consecução de contratos válidos, de acesso individual à Justiça). Os direitos políticos são basicamente o de voto e o de participação nas estruturas de poder, enquanto os sociais dizem respeito a um mínimo de bem-estar econômico e a possibilidade de levar a vida de acordo com os padrões civilizados reconhecidos pela sociedade, notadamente assegurando- se o direito de acesso à educação e à saúde.

T. H. Marshall estudou a evolução histórica desses diversos direitos na GrãBretanha e acreditava que a expansão da cidadania levaria à diminuição das desigualdades econômicas geradas pelo capitalismo. Ainda que não se obtivesse a igualdade absoluta, seria possível remover as desigualdades tidas como injustas, chegando-se em certas situações (dependendo especialmente do aprofundamento dos direitos sociais) a anulá-las. Tornou assim a luta pela franquia dos direitos de cidadania parte da luta ordem democrática.

Dentre os autores que lidaram com as questões da evolução histórica da cidadania, quero chamar a atenção para dois. O primeiro, o historiador José Murilo de Carvalho, que mostrou como a sequência marshalliana se inverteu no Brasil: houve primeiro a expansão de direitos sociais, depois os direitos políticos e só mais recentemente chegamos à fase dos direitos civis. Nas conclusões de seu pequeno grande livro  'Contra as Desigualdades e Fundamento da Cidadania no Brasil: o longo caminho",7 nas quais analisa as encruzilhadas da cidadania, José Murilo diz: "Aqui, primeiro vieram os direitos sociais, implantados em período de supressão dos direitos políticos e de redução dos direitos civis por um ditador que se tornou popular. Depois vieram os direitos políticos, de maneira também bizarra. A maior expansão do direito do voto deu-se em outro período ditatorial, em que os órgãos de representação política foram transformados em peça decorativa do regime. Finalmente, ainda hoje muitos direitos civis, a base da sequência de Marshall, continuam inacessíveis à maioria da população. A pirâmide dos direitos foi colocada de cabeça para baixo.”

Em análise anterior sobre os direitos sociais e sua relação com a cidadania, o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos havia tornado evidentes as vinculações entre regimes autoritários e certos progressos nas políticas sociais, bem como entre eles e a outorga de direitos sociais. Analisou a evolução das instituições que asseguram tais direitos varguismo e pelos governos militares, "cidadania regulada": uma enorme quantidade de pessoas e ocupações carecem de direitos sociais por não estarem incluídas nas regulamentações governamentais. Chama a atenção a observação de Wanderley Guilherme quando diz, desde antes de 1930, passando pelo para insistir no que chamou de apropriadamente: "A desorganização da vida social que se seguiu ao movimento de 1964 poderá ter gerado, apesar de seus líderes, as condições para a emergência de um sistema de valores centrados em torno dos conceitos de cidadania universal, trabalho e justiça."8

É a partir desta brecha na interpretação que me coloco. É certo que houve a inversão da pirâmide das franquias democráticas. Também é verdadeiro que as relações entre elas e os regimes autoritários, tanto de base civil, no caso de Vargas, como militar, depois de 1964, foram paradoxais. No entanto, a Constituição de 1988 expressa juridicamente um outro momento. Ela reflete os movimentos sociais e políticos iniciados vinte anos antes. Permanecem desencontros temporais e a universalização dos direitos civis e sociais está incompleta, mas a força motora da sociedade civil na cena pública é iniludível. As expectativas de que a ação de forças burocráticas movidas por um governo "esclarecido" ("de esquerda") possa assegurar a ampliação dos direitos de cidadania, sem sociedade civil ativa e com um mercado, passam a ser, ao contrário do que à democratização da sociedade.

Novas políticas sociais: a importância das parcerias A afirmação de que a sociedade civil hoje está muito mais ativa do que no passado não reduz a ação do Estado, mas a modifica. Desde a fase final do regime autoritário, melhor dito, desde o início das lutas pela redemocratização a sociedade brasileira dava sinais de que havia mudado. As greves do final dos anos 1970 demonstravam que as tentativas do movimento de 1964 para eliminar as conexões políticas com o sindicalismo e as reivindicações populares não impediram o nascimento de novas lideranças e de novas formas de organização popular.

Os dois livros mencionados acima dão elementos suficientes para que se veja como se constituíram grupos ativos na sociedade civil. Grupos tanto oriundos das classes médias - a OAB (existente desde os anos 1930), a SBPC ou a ABI revitalizada como entidades ligadas às camadas populares. Para a ativação desses últimos setores a ação da Igreja Católica, logo seguida por outras organizações religiosas, mostrou-se importantíssima. O próprio MST nasceu vinculado a ela, mais especificamente à Comissão Pastoral da Terra (CPT). Os movimentos de luta por direitos como os ligados à saúde ou à habitação se desenvolveram em toda parte. Não foi só no âmbito das lutas político-sociais que a sociedade civil se organizou. Cresceu incessantemente o número de associações profissionais e empresariais, associações culturais, esportivas e muitas outras, e principalmente de ONGs - que hoje existem às centenas de milhares - constituídas ao redor de temas novos. Paralelamente ocorreu a expansão das antigas estruturas sindicais, que viram a luz do dia pela concessão estatal mas se reorganizaram em centrais sindicais independentes do governo (CUT, Força Sindical, CGT, Democracia Social, Contag).

Os governos militares se despreocuparam dos novos movimentos: eles não provinham dos setores que os gladiadores da guerra fria, vencedores em 1964, e clamam por universalização. Isso quase dobrou entre 1970 e 2000, de habitantes, dos quais 56% viviam nas cidades em 1970 percentual que chegou a 81,2% em 2000. Chama mais atenção ainda que, a despeito desse crescimento, a renda per capita também consideravam inimigos históricos.

Espelhavam uma sociedade que se formou independentemente dos propósitos dos donos do poder no período posterior ao golpe: a sociedade urbana de massas. Massas de consumo insuficiente, porém crescente. Se a renda não permite que o conjunto da população se incorpore plenamente ao mercado (especialmente as massas rurais, as das periferias das grandes cidades e as nordestinas), os não-incorporados notam que a seu lado há quem consuma, e muito desigualmente. Daí que as pressões, mesmo quando não diretamente políticas, passassem a ser uma constante da vida brasileira. Nasceram forças que aos poucos vão dando forma a uma "sociedade aberta". Sociedade desigual, injusta, porém aberta. Quer dizer, crescentemente reivindicante, insatisfeita e com meios de expressão. Essas massas sequiosas de direitos e de acesso aos bens materiais e espirituais, logo que encontram um caminho, se lançam na busca de melhores condições de vida, mesmo que a custo elevado (por exemplo, pagando a crédito as compras, com juros escorchantes). Para sentir a vontade de ascensão social e a força das pressões basta ver a imensa quantidade de cursos de capacitação profissional de todo tipo espalhados pelo país inteiro, ou, no plano das reivindicações, a grande vitalidade das mulheres na linha de frente das demandas populares. Nessa remontagem social, o papel das liberdades e especialmente da liberdade de imprensa, dos meios de comunicação em geral, é essencial.

De certo modo a sequência europeia das franquias democráticas se empastelou, se posso usar a imagem vulgar. As liberdades civis, ainda que incompletas e não abertas a todos, se expandiram muito. Os direitos políticos se generalizaram (a Constituinte estendeu o direito de voto aos analfabetos e reduziu a idade mínima dos eleitores de 18 para 16 anos. Em 2005 o Brasil atingiu 120 milhões de eleitores). Os direitos sociais, embora mais do que insatisfatórios, estão na ordem do diaem uma sociedade cuja população de 93 milhões saltou para 160 milhões de bem tenha praticamente dobrado9 e a mobilidade social continuado extremamente elevada.10

As classes médias ganharam novas feições. Os grupamentos "tradicionais", geralmente ligados à burocracia civil e militar, à Justiça, à polícia e às universidades, continuam a existir. Mas os segmentos de classe média ligados ao mercado e não ao Estado são mais numerosos e têm aspirações e reivindicações mais modernas. Refiro-me, só para dar alguns exemplos, à burocracia das empresas, aos técnicos, aos novos segmentos profissionais da indústria de comunicação e de entretenimento, aos ligados aos serviços de transportes e ao sistema financeiro, aos milhões de pequenos empresários urbanos e, mais recentemente, até mesmo no campo. Sem esquecer dos gerentes e executivos de grandes empresas nacionais e multinacionais, que ocupam os estratos médios e altos das novas classes médias. social, oriundas de famílias de médias tradicionais dá-se o oposto: em geral seus componentes perderam status ou, no máximo, conseguem mante-lo, sem progressos significativos.

Esse dinamismo não eliminou as desigualdades, nem seria uma economia concentradora de renda. São pessoas em mais baixo status, processo de ascensão enquanto nas classes altamente concentradores de renda consequência das desigualdades e da concentração de renda, aumentou o gap cultural, manifesto tanto no analfabetismo funcional quanto no digital, produzindo barreiras novas em uma sociedade que, contraditoriamente, pode ser considerada "da informação", mas capenga, graças a esse desnível.

Com todas essas distorções, de qualquer maneira, os governos não podem mais se dar ao luxo de olhar só "para cima". Tampouco é possível reviver o período de Vargas, quando o apelo às massas é que vinha de cima, com o "Boa noite, trabalhadores do Brasil", do ministro do Trabalho do Estado Novo, Alexandre Marcondes Filho, em A voz do Brasil.

Essa é a marca distintiva das sociedades pessoas estão sequiosas não apenas por mais mais informação, mais transparência, mais compromissos claros. Não se trata de uma rejeição abstrata e absoluta das organizações preexistentes na sociedade, mas de uma cobrança por mais informação que permita, antes da participação, a deliberação: por que me lanço, por que adiro a isso ou aquilo. Tudo isso amplia as tarefas do político e do homem de Estado.

Atualmente, existe uma dimensão de solidariedade virtual no comportamento e mesmo uma busca de formas de sociabilidade que animem um sentimento de coesão social (basta constatar a expansão das religiões pentecostais, ou os movimentos ambientalistas). Mas cada participante quer saber por que agir de um ou de outro modo e que consequências decorrem de sua ação, para si e para os outros.

Não se trata, portanto, do chamado por alguns autores de não se pensar na dinâmica dessa sociedade pelas reivindicações grupais. Na antiga ordem, o fortalecimento institucional e a liberdade para que os grupos organizados (partidos, associações de classe, grupos comunitários de toda ordem, empresas, sindicatos etc.) funcionassem. A sociedade contemporânea dá margem a um novo padrão de sociabilidade que, sem eliminar o anterior, se infiltra nele. Renascem as motivações, objetivos e comportamentos que refletem a presença ativa das pessoas - sem cingir-se, entretanto, ao antigo "individualismo".

A democratização em curso obriga à redefinição da ação do Estado. A presença de grandes massas urbanas, as transformações da classe operária (que nos setores mais dinâmicos da economia se incorporou à sociedade de consumo) e das próprias massas rurais reivindicantes forçam os governantes a torná-las em conta.

Para responder a esses processos, procurei imprimir contornos novos às políticas sociais de meu governo. A galvanização ideológica promovida pela "velha esquerda" que manteve a visão da antiga sociedade (nela compreendida o PT), com seus sindicatos, partidos e grupos de pressão, somada aos interesses de grupos empresariais e de classe média que floresceram à sombra das antigas instituições estatais e da proteção à concorrência, se opuseram acirradamente à modernização pretendida. Mesmo quando, em tese, seriam favoráveis ao que se propunha, procuravam negar a sinceridade ou o alcance das propostas para rejeitá- las.

As políticas sociais que coloquei em prática tinham alvos, mecanismos e percursos claros: universalização do acesso à educação e à saúde; acesso mais amplo à terra; equalização dos benefícios previdenciários; focalização das políticas compensatórias de combate à miséria e à pobreza; inclusão de novos temas para uma visão moderna da cidadania (combate ao racismo, preocupação com o meio ambiente, igualdade de gênero, políticas de direitos humanos); acesso à Justiça e preocupação com a segurança, pública e individual. Esses itens não cobrem toda a política social, mas constituem o miolo do que é necessário para consolidar os direitos de cidadania e para ampliar o acesso a eles.

A consecução dessas políticas em uma sociedade aberta, democrática e de massas depende de formas novas de articulação entre o Estado e a sociedade. É preciso incorporar a noção de parceria e implementar políticas descentralizadoras. Em um movimento de pinças, cabe atuar para que a sociedade civil se responsabilize crescentemente, junto com o Estado, públicas, ajudando-o e controlando o a articulação entre o governo federal, os estados e os municípios para que a descentralização administrativa seja mais eficaz, e dê acesso à maior participação das pessoas. Nada disso se alcançará sem um Estado reformado: o fortalecimento do componente técnico e profissional da burocracia, com a universalização do concurso público e a constante preocupação de treinamento e aperfeiçoamento dos servidores, somado à limitação do clientelismo e do corporativismo, tornam-se indispensáveis para o governo atingir seus objetivos Por outro lado, é conveniente uma certa "porosidade", para usar um termo de Gramsci, para as burocracias se abrirem à cooperação com a pela implementação das gasto público. É preciso políticas para aprimorar a sociedade civil. E ampliar tal cooperação é mais fácil no nível local do que no plano federal. Procurei implementar uma política social-democrática renovada. Política que dispensa o patrimonialismo ou o protecionismo estatal e que não se opõe à competição e à meritocracia, na vida pública e no mercado.


NOTAS

1 A formação histórica do Brasil, tão bem estudada por tantos autores, mostra com clareza como nos diferenciamos, no ponto de partida, dos Estados Unidos, Lá, desde o início da República, o acesso à terra e mesmo o conhecimento da quantidade de terras disponíveis foi muito mais democrático. Ainda por cima, com a Guerra Civil ou Guerra de Secessão (1860-1865), o escravismo ficou como uma chaga "do Sul" e não como sustentáculo de toda a riqueza nacional.

2 Sérgio Buarque de Holanda, História Geral da Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, v. 3,9a ed., 2003; v. 4,9a ed., 2004; v. 5,8a ed., 2004; v. 6, 6a ed., 1995; e v. 7,6a ed., 2005.

3 Depois de proclamada a República, meu bisavô Felicíssimo escreveu carta a meu avô Joaquim Ignacio comentando o que acontecia em Goiás. De memória, transcrevo: "Vocês aí no Rio fizeram a República. Aqui em Goiás, como antes, continuam mandando os Caiado de Castro [tradicional oligarquia da então província, depois estado]".

4 Victor Nunes Leal, Coronelismo, Enxada e Voto, 3a ed., Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997.

5 O crescimento da população e seu deslocamento do campo para a cidade foram impressionantes. Entre 1940 e 2000, nossa população multiplicou-se por quatro! Passou de 41 milhões de pessoas em 1940 para 160 milhões em 2000, atingindo 184 milhões em 2004. A distribuição entre população rural e urbana sofreu mudanças rápidas e de vulto. Até 1960, a rural era mais numerosa do que a urbana, as duas crescendo: em 1940,12,8 milhões a urbana contra 28,3 milhões. Em 1960,31,3 milhões versus 38,2 milhões. Em 1970, a urbana ultrapassa a rural - 52 milhões contra 41 milhões e cresce velozmente. Em 1980 já viviam nas cidades 80,4 milhões de pessoas, em contrapartida aos 38,5 milhões que habitavam o campo, para alcançar, em 2000, 137,7 milhões de residentes urbanos face aos 31,8 milhões de habitantes rurais (Fonte: IBGE). As conseqüências desses movimentos migratórios, como a favelização, tornaram-se desafiadoras. 

6 ' T. H. Marshall, Cidadania, Classe social e Status', Rio de Janeiro, Zahar, 1967, tradução de Merton Porto Gadelha, p. 62.

7 José Murilo de Carvalho, Cidadania no Brasil: o longo caminho, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2001, p. 219-220. Para quem queira uma síntese bem-feita da evolução política e social do Brasil nada melhor que a leitura deste livro. 

8  Wanderley Guilherme dos Santos, 'Cidadania e justiça: a política social na ordem brasileira', Rio de Janeiro, Campus, 1979, p. 123.

9 Segundo o Ipea, em reais de 20 04, o PIB per capita, que era de 5.012,31 reais anuais em 1970, chegou a 9.466,66 em 2000.

10 Ver José Pastore e Nelson do Valle Silva, Mobilidade social no Brasil, São Paulo, Makron Books, 2000.

Texto de Fernando Henrique Cardoso em "A Arte da Política: A História que Vivi", Editora Record, Rio de Janeiro, 2006, excertos pp.499-512. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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