Por mais cruel que possa parecer, na Namíbia ainda é permitido abater um animal a tiros, seja por esporte ou para abastecer a própria despensa. A PLAYBOY esteve lá e conta qual é a sensação de participar de uma autêntica caçada na África.
Uma caçada pode ser descrita de muitas formas. Você pode encará-la como uma estratégia de subsistência, como um esporte, como uma experiência de vida ou como uma matança cruel e desprovida de sentido. Mas não existe quem saia incólume dessa vivência. No século XXI, do e-reader e da TV 3D, ninguém ainda chegou perto de revogar a regra básica da natureza: um animal come o outro. E aí, amigo, estamos no topo da cadeia alimentar. Não importa se você terceirizou o serviço sujo para os abatedouros e para as granjas. Se não é vegetariano, você depende de bichos pequenos, às vezes mimosos, que serão criados em cubículos apertados e depois abatidos.
Isso parece apenas um argumento para aliviar a consciência de quem, de repente, teve de se ajeitar no meio de dois mundos: o que é marcado pelo discurso da preservação e o outro, onde a cultura da caça é encarada com tranquilidade e faz parte do cotidiano.
A Africa continua um dos principais destinos dos caçadores no mundo. Pode parecer incrível, mas há ainda quem venha ao continente em busca de troféus macabros, como a cabeça de um búfalo, de um leopardo ou de um elefante. Fora das reservas e dos parques ambientais, isso é legal. Em países como Africa do Sul, Tanzânia, Zâmbia e Namíbia, os animais pertencem aos donos das terras. Por isso, há muitas áreas de caça particulares que recebem turistas para os safáris de observação ou, para o horror de muitos, a caça.
A PRIMEIRA VÍTIMA
Participei de uma caçada acompanhando duas famílias sul-africanas que viajam anualmente de carro para fazendas na Namíbia onde a caça é permitida. A incursão serve para abastecer seus freezers com carne de diversos tipos de antílopes, como springboks, kudus e órix. São gente comum, religiosa, do tipo que ora antes das refeições, interessada nas histórias de forasteiros e amante de bons vinhos.
Minha experiência não lembra em nada os safáris que nos habituamos a ver no cinema. Não há sinal de elefantes levando o intrépido caçador branco no lombo, tampouco filas de carregadores ou tendas espetaculares. Na Namíbia, caçar é algo bem mais simples e perfeitamente acessível a um turista que saiba manejar armas de fogo- e tenha registro delas, já que a entrada de rifles e espingardas é rigidamente controlada nas fronteiras.
Nessas fazendas em que a caça é permitida, há enormes rebanhos de antílopes, que se multiplicam em alta velocidade devido à ausência de predadores, como leões e leopardos. Meu destino era a cidade de Koes, a 1 400 quilômetros de Johannesburgo, na Africa do Sul, e 480 quilômetros ao sul de Windhoek, capital do país. Koes fica no Kalahari, uma vasta região que vai do semidesértico ao deserto tórrido, com grandes dunas e estradas tão onduladas que é possível ficar mareado no carro.
A Namíbia é um país com aproximadamente 2 milhões de habitantes distribuídos numa área de 824,2 mil quilômetros quadrados, o equivalente à soma da Itália e da França. As cidades são pequenas e têm poucas ruas. Essa imensa área é repartida em algumas centenas de fazendas gigantescas - a Onze Hust, onde cacei, tem perto de 20 mil hectares - , e a maioria está nas mãos de colonos de origem alemã que lá chegaram entre o final do século XIX e a Primeira Guerra Mundial.
Em nossa caçada, seguimos um rígido planejamento inglês, à moda dos sul-africanos, que prevê o número de animais, por espécie, a ser abatido ao longo de quatro dias - cerca de 30. A jornada começava invariavelmente ao nascer do sol e terminava à noite, com um churrasco (de antílope, claro), regado a vinho, em volta da fogueira. Partíamos em duas caminhonetes chamadas Uri, projetadas para circular nas dunas. Na carroceria, seis pessoas, entre atiradores e acompanhantes, observavam atentas o horizonte à procura do menor movimento. Ao volante, um funcionário da fazenda acompanhado por um guia treinado em localizar os animais sem espantá-los.
Uma jornada de caça não é confortável nem romântica. A caminhonete sacode entre as colinas, atropelando moitas de espinho à altura do rosto e desviando de crateras que surgem. de repente. Quando se chega ao topo de uma elevação, o motor é rapidamente desligado para não espantar as possíveis presas. E lá estão elas. Perto? Visíveis? Nada disso: os antílopes mais próximos estão a pelo menos 150 metros, do exato tamanho de um cavalinho de Forte Apache. Meu primeiro pensamento é: "Impossível. Como alguém pode conseguir acertar algo tão minúsculo?". Logo descubro. Um caçador experiente dispara bem ao meu lado. Ouço o estampido seco, o alvoroço dos animais e, bem lá no meio da manada, avisto um antílope caído. O carro se aproxima.
O motorista desce e, com a destreza de um ninja, dá uma pontada com a faca na nuca do animal, encerrando sua agonia. Em minutos degola o bicho, quebra as patas para que se enganchem na lateral do veículo e arranca com as mãos nuas a barrigada, que logo alimentará abutres, chacais e outros animais do deserto. Simples assim. Até o fim do dia, haverá uma dezena de antílopes pendurados na caminhonete.
ÉTICA DA CAÇA
Embora pareça cruel, engana-se quem pensa que esse tipo de caçada do qual participei seja um exercício de sadismo. f um abate com a lei do menor sofrimento possível. Insistese no respeito à dignidade do animal caçado. É proibido atirar a esmo em direção ao bando para não provocar múltiplos ferimentos. É obrigatório escolher um animal adulto, que, uma vez ferido, deve ser morto para que não agonize por dias a fio. Por fim, só se abate o que servirá para alimentação. Ao término da temporada, as famílias se reúnem no açougue na fazenda, onde os animais são despelados, carneados e congelados. Ali são também preparados diversos tipos de linguiça de carne-seca - verdadeira mania de namibienses e sul-africanos.
Apesar da logística empregada e das regras estritamente definidas, para os africanos o ato de caçar não é um ato puramente técnico. Ele vem carregado de significados que visam a reforçar a masculinidade, entre eles o de obter o alimento pelas próprias mãos, ter consciência da necessidade de matar para sobreviver e de lidar com sangue e entranhas como parte do processo de amadurecimento de um homem.
"Você não caçou?" Essa foi a pergunta que mais ouvi desde que voltei. Sim, cacei. Ao final, quando as metas de abate são atingidas, mulheres, jovens e novatos como eu também podem arriscar uns tiros. Como nunca havia segurado um trabuco-no caso, um respeitável rifle Musgrave 308-, passei por um rápido treinamento e lá fui me iniciar no mundo dos viris valores africanos. É verdade que ninguém ali acreditava muito na minha pontaria. Afinal, não basta ver o bicho na mira telescópica e atirar. É preciso calcular intuitivamente o desnível conforme a posição do tiro e levar em conta a velocidade do vento. Requer experiência, habilidade e um pouco de sorte- exatamente o meu caso. E, na terceira tentativa, bingo! Em dois tiros, um springbok foi -se desta para a melhor. Ao puxar o gatilho e abater uma presa, também conquistei o direito de passar pelos mesmos rituais pelos quais passam os jovens africanos. A começar por
um banho com o sangue ainda quente do animal abatido, que só poderia ser lavado depois do pôr do sol. Pouco? Nada disso. Ainda fui obrigado a provar um pedaço do fígado do antílope, cru, que tinha um espantoso sabor de ... fígado! Também aprendi a cortar diferentes partes do animal, inclusive uma pequena na porção equivalente ao nosso mignon. Confesso que não sabia o que pensar diante de algo tão novo e até bem pouco tempo atrás impensável e distante de minha realidade estritamente urbana. A primeira lembrança foi a dos pássaros que eu caçava quando criança, mas isso era completamente diferente. O que realmente leva um adulto a empunhar uma arma para caçar um animal selvagem?
Como numa experiência visceralmente simbólica, cada um encontrará o significado que quiser numa viagem como essa. Há quem busque raízes familiares, de um tempo em que a caça era socialmente aceita; há quem procure encontrar sua face incivilizada ou encare isso como uma oportunidade de mergulhar na fascinante cultura africana. Em meu caso, reencontrei algo que tinha lido havia muitos anos na obra do mitologista americano Joseph Campbell. Para ele, os seres humanos não buscam a felicidade, mas sim a experiência de sentir-se vivos. Ali no meio da savana, com o coração aos pulos e os olhos fixos no animal, finalmente entendi o que ele queria dizer.
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Voos regulares ligam Johannesburgo, na África do Sul, a Windhoek, capital da Namíbia, por 500 dólares. Do Brasil, a South African oferece o serviço (com escala) por 999 dólares e taxas de 315 dólares. Não há necessidade de visto, mas a vacina contra febre amarela é obrigatória.
As opções de safáris são muitas. A agência Africa Hunting Safaris (www.africahuntingsafaris.com) tem programas a partir de 400 dólares por semana que incluem licença de caça, transporte, hospedagem, alimentação e taxidermia do animal abatido (cobram-se ainda 500 dólares por presa). No programa descrito na reportagem, a caça destina-se a abastecer a despensa e, por isso, paga-se por quilo de carne abatida (4 dólares na fazenda Onze Rust, onzerust@mweb.com.na). O Auob Lodge (jonkheer@iway.na)aluga casas na região por 800 dólares semanais.
Para quem pretende apenas observar a natureza, a dica é ficar numa guest farm (Kalahari Anib Lodge, www.gondwana-collection.com), com diárias na faixa de 70 dólares por pessoa e refeições incluídas.
Seja como for, não despreze Windhoek. A cidade oferece hotéis decentes, como o Heinitzburg (www.heinitzburg.com), artesanato lindíssimo e diamantes bem mais em conta que aqui.
Para fechar, visite o restaurante Joe's Beer House (www.joesbeerhouse.com), onde, ao redor de fogueiras, pode-se provar um cardápio que inclui antílopes, zebras e crocodilos, além da ótima cerveja local e de vinhos sul-africanos por 10 dólares.
Texto de Paulo de Camargo em "Playboy", Brasil, ano 35, n. 419, abril de 2010, excertos pp. 106-112. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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