7.04.2018
ASPECTOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS DA ALIMENTAÇÃO
A Economia e a Agronomia estudaram a alimentação a partir da história da agricultura e do comércio, enfocando, juntamente com a Geografia, o relacionamento da humanidade com o seu meio físico e social na produção dos alimentos. A história da Agricultura é um dos pontos de partida de estudos sistemáticos das plantas de uso alimentício e das plantas cultivadas.
A história econômica, por sua vez, estudou a alimentação do ponto de vista da produção agrícola e industrial e do processamento e da preparação dos alimentos, assim como da sua distribuição através do comércio e, finalmente, das condições do armazenamento e do consumo, trabalhando com imenso volume de estatísticas comerciais, fiscais e de preços, que incluem os alimentos no interior da história da agricultura, da indústria, do comércio, dos transportes e da urbanização.
Como fica evidenciado nos estudos sobre a alimentação na Inglaterra, é extremamente difícil separar abastecimento de consumo. As investigações sobre volumes de produção, vias de distribuição, políticas de preços e outros índices econômicos e estatísticos carecem de dados precisos no que se refere às épocas passadas. Mesmo na Inglaterra, berço do industrialismo, os historiadores produziram relativamente poucas monografias sobre tópicos específicos em relação a períodos ou espaços regionais do suprimento de alimentos.'
De modo geral, todos os estudos de história da agricultura e da criação de animais de corte abordam a questão da alimentação na história. Da mesma forma, o estudo das rotas comerciais, dos fluxos mercantis e dos sistemas produtivos abrange necessariamente, como parte do seu objeto, a alimentação. Pescadores de bacalhau nórdicos expandiram zonas de pesca até descobrirem as terras boreais; pela avidez por especiarias se abriram as rotas marítimas do Oriente, e o tráfico do açúcar fez do Atlântico a principal via de trânsito entre povos e mercadorias. Além de fazer parte da história econômica geral, a alimentação destaca-se, em seus múltiplos aspectos particulares, como um fenômeno fundador da Economia, a primeira produção sendo a do consumo material de alimentos. A capacidade das forças produtivas em gerá-los além da demanda de consumo imediato cons titui o primeiro excedente social; assim, o papel do alimento localiza-se no fulcro da produção e da reprodução de uma sociedade, no nível definido por Marx como infra-estrutural. O grande historiador Fernand Braudel, na sua divisão da Economia em três níveis - o financeiro, o mercantil e o da cultura material -, situou a alimentação no último, juntamente com o vestuário e a habitação, ou seja, aqueles que dizem respeito à manutenção do corpo e à reprodução da vida cotidiana. Já se usou da metáfora da casa para expor os diferentes âmbitos da História: a História Social trataria da sala; a História Cultural, dos quartos; e a História Econômica, da despensa. Na sala as pessoas interagem e convivem, nos quartos fazem amor, choram, rezam ou dormem, mas na despensa reside a fonte da energia vital, os víveres, os mantimentos, as vitualhas, as provisões.
A História Econômica da alimentação é a do farnel do viajante, a da semeadura e a da colheita do lavrador, da moagem, da estocagem, do transporte, da venda e do preparo dos grãos, das frutas que se comem nos pés e das hortas de quintais onde a auto-subsistência provê muitas famílias. Dos circuitos financeiros eletrônicos dos mercados de commodities, passando pelos armazéns, bares e restaurantes, até os pomares e os hortos particulares onde se cultivam plantas e temperos. Em todas essas distintas espessuras da vida a História Econômica do alimento deve penetrar para desvendar, no mundo inteiro e em cada casa, nos países e nas regiões, os preços, as demandas, os índices de produção, distribuição e consumo. As economias da casa, do país e do globo precisam ser vistas sempre do ângulo da despensa.
Os enfoques em História Social relativos à alimentação são múltiplos. Em demografia histórica, por exemplo, a questão da alimentação permeia muitos dos estudos que buscam explicar alterações populacionais devido às grandes fomes como fatores de despovoamento. Um caso clássico foi o da crise na safra de batatas na Irlanda em 1845-47, que matou ao menos um milhão de pessoas e provocou intenso fluxo emigratório. Crescimentos populacionais são relacionados com melhorias nutricionais. A história das doenças e da saúde também está intimamente ligada com a história do abastecimento alimentar. Os estudos sobre as fomes também são um aspecto importante da História Social da alimentação e se misturam com o tema das rebeliões e desordem social, daí a importância política da alimentação, cujo controle faz parte da formação dos Estados.
Os hábitos alimentares e suas transformações também são objeto de investigação para a sociologia da alimentação. A alimentação da época atual, com a intensificação comercial, a adoção de novas tecnologias de produção, distribuição e consumo de alimentos, a expansão de novos hábitos homogeneizados pelas grandes cadeias de lanchonetes e outros fenômenos recentes, têm sido abordados pela sociologia da alimentação contemporânea sob múltiplos ângulos. As relações entre a culinária e as classes sociais podem ser identificadas nos gostos diferenciados ou nas maneiras à mesa, as identidades étnicas e regionais revestem-se de diversos rituais gregários e alimentares, particularmente entre emigrantes ou expatriados, os restaurantes podem ser analisados como espaços simbólicos, caracterizados como "teatros de comer" e estratificados em torno de posições sociais tanto quanto de cardápios específicos. A rotinização entediante da vida cotidiana provocada pela cultura do fastfood, as flutuações dos horários das refeições e do simbolismo nelas investido, a constituição dos papéis sexuais e das diferenciações de gênero em torno da organização social da comida, especialmente por meio da feminização das tarefas da cozinha, são, entre tantos outros aspectos, rico material indispensável para as análises sociológicas de distintos grupos humanos.
O fim das refeições em família leva à erosão do próprio conceito de "refeição" numa sociedade em que nas casas vigora o império dos microondas e no trabalho, na rua ou na diversão expandem-se as práticas da "alimentação rápida", de beliscar petiscos e lanches em "lanchonetes", fenômeno que surge na fronteira difusa entre os bares e restaurantes e que simboliza esta nova relação com os horários e os rituais da comida. Tais transformações têm sido enfocadas, entretanto, no âmbito dos estu dos sociológicos e antropológicos por tratar-se de processos em pleno curso nas sociedades atuais.
Outro aspecto dos estudos culturais sobre a alimentação provém da Antropologia. Preceitos e tabus alimentícios tornaram-se assunto de competência de uma ciência social que especializou-se em estudar hábitos e crenças em todo o mundo. A Antropologia foi uma disciplina que, desde o século XIX, começou a desenvolver uma etnografia sistemática dos hábitos alimentares e a buscar interpretá-los culturalmente. A primeira fase caracterizou-se por um comparativismo das diferentes tradições culturais. A análise dos tabus, onde se destacam os alimentares, foi desde os primórdios da Antropologia um terreno fértil para especulações criativas sobre o significado simbólico da alimentação. O estruturalismo na Antropologia, a partir da obra de Lévi-Strauss, tratou da relação da alimentação com estruturas mitológicas em O cru e o cozido (1964), Do mel às cinzas (1967) e Origem das maneiras à mesa (1968). A diferença entre o cru e o cozido, para este antropólogo, fundaria a própria cultura, distinguindo-a da natureza. Sua influência extravasou para o conjunto das ciências humanas, abrindo uma fecunda via de interseção com a historiografia, sensibilizando-a para os aspectos inconscientes das ações humanas e dos nexos que as regem. A nutrição humana é uma dessas atividades cujos padrões de conduta muitas vezes escapam dos seus próprios agentes, educados desde a infância para considerá-los algo automaticamente óbvio e consuetudinário. Boa parte da matéria-prima etnográfica é, pois, em torno da alimentação, eixo ao redor do qual as diferentes culturas estruturam a sua vida prática assim como muitas de suas representações.
Além desta presença difusa da questão da alimentação em obras fundamentais de diferentes tradições antropológicas e de uma vasta etnografia de hábitos alimentares em todo o mundo, existem inúmeros debates no meio antropológico sobre a nutrição e sobre os costumes alimentares. Uma questão, em particular, suscitou instigantes estudos antropológicos: a da natureza simbólica do consumo de carne, e será abordada num capítulo mais à frente. O tema dos hábitos alimentares é um dos que, por excelência, pertencem à Antropologia. A investigação cultural em nutrição tem como tema central a identificação dos hábitos alimentares e das motivações das mudanças que eles podem sofrer. O estudo das religiões também exige a interpretação de uma série de preceitos e proscrições alimentares, além de todo um conjunto simbólico, mitológico e teológico de elaborações em torno da alimentação, cuja importância nos obriga a tratar também desse relacionamento entre alimentação e religiosidade num outro capítulo específico. Mas, para além das análises simbólicas, a Antropologia se destacou pelo mapeamento etnográfico dos diversos hábitos alimentares, cuja extensão e especiali zação de caráter local e regional (por exemplo, em relação aos índios brasileiros) impedem que este texto sequer tente relacioná-los, mas que um levantamento mais detalhado poderia permitir contrastar as constâncias, fecundações e difusões variadas.
Além desta ubíqua presença dos alimentos no escopo de quase todas as disciplinas que direta ou tangencialmente devem abordá-los na constituição de seus métodos e de seus objetos específicos, cabe à História a investigação da alimentação e de suas transformações numa perspectiva diacrônica, ou seja, ao longo do tempo. Antes de entrarmos diretamente na história da alimentação nos diversos períodos históricos, entretanto, devemos situar a questão da alimentação à luz do seu constrangimento mais persistente, a sua verdadeira contrapartida, que é a história da fome.
Texto de Henrique Carneiro em "Comida e Sociedade - Uma História da Alimentação", Elsevier Editora,Rio de Janeiro, 2003, excertos cap.3. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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