7.05.2018
RAÍZES DO BRASIL - HERANÇA RURAL
• A Abolição: marco divisório entre duas épocas
• Incompatibilidade do trabalho escravo com a civilização burguesa e o capitalismo moderno
• Da Lei Eusébio à crise de 64. O caso de Mauá
• Patriarcalismo e espírito de facção
• Causas da posição suprema conferida às virtudes da imaginação e da inteligência
• Cairu e suas idéias
• Decoro aristocrático
• Ditadura dos domínios agrários
• Contraste entre a pujança das terras de lavoura e a mesquinhez das cidades na era colonial
Toda a estrutura de nossa sociedade colonial teve sua base fora dos meios urbanos. É preciso considerar esse fato para se compreenderem exatamente as condições que, por via direta ou indireta, nos governaram até muito depois de proclamada nossa independência política e cujos reflexos não se apagaram ainda hoje.
Se, conforme opinião sustentada em capítulo anterior, não foi a rigor uma civilização agrícola o que os portugueses instauraram no Brasil, foi, sem dúvida, uma civilização de raízes rurais. É efetivamente nas propriedades rústicas que toda a vida da colônia se concentra durante os séculos iniciais da ocupação européia: as cidades são virtualmente, se não de fato, simples dependências delas. Com pouco exagero pode dizer-se que tal situação não se modificou essencialmente até à Abolição. 1888 representa o marco divisório entre duas épocas; em nossa evolução nacional, essa data assume significado singular e incomparável.
Na Monarquia eram ainda os fazendeiros escravocratas e eram filhos de fazendeiros, educados nas profissões liberais, quem monopolizava a política, elegendo-se ou fazendo eleger seus candidatos, dominando os parlamentos, os ministérios, em geral todas as posições de mando, e fundando a estabilidade das instituições nesse incontestado domínio.
Tão incontestado, em realidade, que muitos representantes da classe dos antigos senhores puderam, com freqüência, dar-se ao luxo de inclinações antitradicionalistas e mesmo de empreender alguns dos mais importantes movimentos liberais que já se operaram em todo o curso de nossa história. A eles, de certo modo, também se deve o bom êxito de progressos materiais que tenderiam a arruinar a situação tradicional, minando aos poucos o prestígio de sua classe e o principal esteio em que descansava esse prestígio, ou seja, o trabalho escravo.
Mesmo depois de inaugurado o regime republicano, nunca, talvez, fomos envolvidos, em tão breve período, por uma febre tão intensa de reformas como a que se registrou precisamente nos meados do século passado e especialmente nos anos de 51 a 55. Assim é que em 1851 tinha início o movimento regular de constituição das sociedades anônimas; na mesma data funda-se o segundo Banco do Brasil, que se reorganiza três anos depois em novos moldes, com unidade e monopólio das emissões; em 1852, inaugura-se a primeira linha telegráfica na cidade do Rio de Janeiro. Em 1853 funda-se o Banco Rural e Hipotecário, que, sem desfrutar dos privilégios do Banco do Brasil, pagará dividendos muito mais avultados. Em 1854 abre-se ao tráfego a primeira linha de estradas de ferro do país — os 14,5 quilômetros entre o porto de Mauá e a estação do Fragoso. A segunda, que irá ligar à Corte a capital da província de São Paulo, começa a construir-se em 1855.
A organização e expansão do crédito bancário, literalmente inexistente desde a liquidação do primeiro Banco do Brasil, em 1829, e o conseqüente estímulo à iniciativa particular; a abreviação e o incremento dos negócios, favorecidos pela rapidez maior na circulação das notícias; o estabelecimento, enfim, de meios de transporte modernos entre os centros de produção agrária e as grande praças comerciais do Império são algumas das conseqüências mais decisivas de tais sucessos. Seria inútil acrescentar que a riqueza oriunda dos novos tipos de especulação provocados por esses meios tendia a ampliar-se, não só à margem, mas também e sobretudo à custa das tradicionais atividades agrícolas. Pode-se mesmo dizer que o caminho aberto por semelhantes transformações só poderia levar logicamente a uma liquidação mais ou menos rápida de nossa velha herança rural e colonial, ou seja, da riqueza que se funda no emprego do braço escravo e na exploração extensiva e perdulária das terras de lavoura.
Não é por simples coincidência cronológica que um período de excepcional vitalidade nos negócios e que se desenvolve sob a direção e em proveito de especuladores geralmente sem raízes rurais tenha ocorrido nos anos que se seguem imediatamente ao primeiro passo dado para a abolição da escravidão, ou seja, a supressão do tráfico negreiro.
Primeiro passo e, sem dúvida, o mais decisivo e verdadeiramente heróico, tendo-se em conta a trama complexa de interesses mercantis poderosos, e não só de interesses como de paixões nacionais e prejuízos fundamente arraigados, que a Lei Eusébio de Queirós iria golpear de face. Servindo-se de documentos parlamentares britânicos, pôde Calógeras compor um quadro verdadeiramente impressionante do que foram, então, as resistências e recalcitrâncias. Em mais de uma ocasião, a revolta suscitada pela violência dos cruzeiros ingleses de repressão, que chegavam a apresar navios brasileiros dentro dos nossos portos, pôde fortalecer de algum modo a corrente de opinião favorável ao prosseguimento do tráfico, fazendo apelo aos sentimentos patrióticos do povo. Não faltou, além disso, o constante argumento dos partidários eternos do status quo, dos que, temerosos do futuro incerto e insondável, só querem, a qualquer custo, o repouso permanente das instituições. Estes eram, naturalmente, do parecer que, em país novo e mal povoado como o Brasil, a importação de negros, por mais algum tempo, seria, na pior hipótese, um mal inevitável, em todo o caso diminuto, se comparado à miséria geral que a carência de mão-de-obra poderia produzir.
Por outro lado, a circunstância de serem principalmente portuguesas, não brasileiras, as grandes fortunas formadas à sombra do comércio negreiro tendia a mobilizar contra a introdução de escravos e, por conseguinte, em favor de um governo disposto a enfrentá-la sem hesitações toda a descendência ainda numerosa dos caramurus da Regência. E sabe-se que o nativismo lusófobo chegou a representar, direta e indiretamente, uma ponderável influência no movimento para a supressão do tráfico.
Os interessados no negócio tinham logrado organizar uma extensa rede de precauções que salvaguardassem o exercício franco de suas atividades. Desenvolvendo um sistema apurado de sinais e avisos costeiros para indicar qualquer perigo à aproximação dos navios negreiros, subvencionando jornais, subornando funcionários, estimulando, por todos os modos, a perseguição política ou policial aos adversários, julgaram assegurada para sempre a própria impunidade, assim como a invulnerabilidade das suas transações. “ Conforme a classe do navio” , acrescenta Calógeras, “ por 800$000 a 1:000$000, se arranjavam papéis brasileiros e portugueses exigidos pelos regulamentos, a fim de se realizarem as viagens. Voltando da costa da África, e após o desembarque da carga humana, entrava o barco com sinal de moléstia a bordo. Por 500$000, o oficial de saúde passava o atestado comprobatório, e o navio ia fazer quarentena no distrito de Santa Rita, cujo juiz de paz era sócio dos infratores. Removiam-se, então, todos os sinais denunciadores do transporte de negros, e por 600$000 se adquiria nova carta de saúde, limpa desta vez. Assim purificado de culpa, o navio ia ancorar no fundeadouro costumeiro. Acontecia, por vezes, que o negreiro parasse na proximidade da ilha Rasa, e que o faroleiro o fosse visitar: por 200S000 se comprava seu silêncio.” 1
Não é para admirar se, com esse aparelhamento, puderam os interessados no tráfico promover, mesmo, e principalmente, depois de 1845 — o ano do Bill Aberdeen —, um comércio cada vez mais lucrativo e que os transformaria em verdadeiros magnatas das finanças do Império. Pode-se bem estimar a importância do golpe representado pela Lei Eusébio de Queirós, considerando que, naquele ano de 1845, o total de negros importados fora de 19 363; em 1846, de 50 354; em 1847, de 56 172; em 1848, de 60 mil; em 1849, de 54 mil e em 1850, de 23 mil. A queda súbita que se assinala neste último ano resulta, aliás, não só da aprovação da Lei Eusébio de Queirós, que é de 4 de setembro, como da intensificação das atividades britânicas de repressão ao tráfico.
A eficiência das medidas adotadas reflete-se no fato de, já em 1851, terem entrado no país apenas 3287 negros, e setecentos em 1852. Depois disso, só se verificaram pequenos desembarques, entre eles o de Serinhaém, em Pernambuco, e o de São Mateus, no Espírito Santo, que resultaram na apreensão, por parte das autoridades, de mais de quinhentos africanos.
Essa extinção de um comércio que constituíra a origem de algumas das maiores e mais sólidas fortunas brasileiras do tempo deveria forçosamente deixar em disponibilidade os capitais até então comprometidos na importação de negros. A possibilidade de interessá-los firmemente em outros ramos de negócios não escapou a alguns espíritos esclarecidos. A própria fundação do Banco do Brasil de 1851 está, segundo parece, relacionada com um plano deliberado de aproveitamento de tais recursos na organização de um grande instituto de crédito. Mauá, promotor da iniciativa, escreverá, quase trinta anos mais tarde, em sua Exposição aos credores: “Acompanhei com vivo interesse a solução desse grave problema; compreendi que o contrabando não podia reerguer-se, desde que a ‘vontade nacional’ estava ao lado do ministério que decretava a supressão do tráfico. Reunir os capitais que se viam repentinamente deslocados de ilícito comércio e fazê-los convergir a um centro onde pudessem ir alimentar as forças produtivas do país foi o pensamento que me surgiu na mente, ao ter a certeza de que aquele fato era irrevogável” .2
Pode-se assim dizer que, das cinzas do tráfico negreiro, iria surgir uma era de aparato sem precedentes em nossa história comercial. O termômetro dessa transformação súbita pode ser fornecido pelas cifras relativas ao comércio exterior do Império. Até 1850, nossas importações jamais tinham chegado a atingir a soma de 60 mil contos por ano. Entretanto, no exercício de 1850-1, alcançam, de um salto, 76 918:000$000, e no 1851-2, 92 860:000$000. De então por diante, até 1864, registam-se alguns declínios que, contudo, não afetam a tendência geral para o progressivo aumento de quantidade e valores.3
A ânsia de enriquecimento, favorecida pelas excessivas facilidades de crédito, contaminou logo todas as classes e foi uma das características notáveis desse período de “ prosperidade” . O fato constituía singular novidade em terra onde a idéia de propriedade ainda estava intimamente vinculada à da posse de bens mais concretos, e ao mesmo tempo menos impessoais do que um bilhete de banco ou uma ação de companhia. Os fazendeiros endividados pelo recurso constante aos centros urbanos, onde se proviam de escravos, não encaravam sem desconfiança os novos remédios que, sob a capa de curar enfermidades momentâneas, pareciam uma permanente ameaça aos fundamentos tradicionais de seu prestígio. Em São Paulo chegou-se mesmo a falar em socialismo a propósito de certo projeto de criação de um banco rural e hipotecário. É que os socialistas, clamava um deputado à Assembléia Provincial, sendo “ inimigos capitais das propriedades imóveis, se lembraram disto como meio de converterem essas propriedades em capitais...” .4
Ao otimismo infrene daqueles que, sob o regime da ilimitada liberdade de crédito, alcançavam riquezas rápidas, correspondia a perplexidade e o descontentamento dos outros, mais duramente atingidos pelas conseqüências da cessação do tráfico. Num depoimento citado por Nabuco lê-se este expressivo desabafo do espírito conservador diante dos costumes novos, acarretados pela febre das especulações: “Antes bons negros da costa da África para felicidade sua e nossa, a despeito de toda a mórbida filantropia britânica, que, esquecida de sua própria casa, deixa morrer de fome o pobre irmão branco, escravo sem senhor que dele se compadeça, e hipócrita ou estólida chora, exposta ao ridículo da verdadeira filantropia, o fado do nosso escravo feliz. Antes bons negros da costa da África para cultivar os nossos campos férteis do que todas as tetéias da rua do Ouvidor, do que vestidos de um conto e quinhentos mil-réis para as nossas mulheres; do que laranjas a quatro vinténs cada uma em um país que as produz quase espontaneamente, do que milho e arroz, e quase tudo que se necessita para o sustento da vida humana, do estrangeiro, do que finalmente empresas mal avisadas, muito além das legítimas forças do país, as quais, perturbando as relações da sociedade, produzindo uma deslocação de trabalho, têm promovido mais que tudo a escassez e alto preço de todos os víveres” .5
A própria instabilidade das novas fortunas, que ao menor vento contrário se desfaziam, vinha dar boas razões a esses nostálgicos do Brasil rural e patriarcal. Eram dois mundos distintos que se hostilizavam com rancor crescente, duas mentalidades que se opunham como ao racional se opõe o tradicional, ao abstrato o corpóreo e o sensível, o citadino e cosmopolita ao regional ou paroquial. A presença de tais conflitos já parece denunciar a imaturidade do Brasil escravocrata para transformações que lhe alterassem profundamente a fisionomia. Com a supressão do tráfico negreiro dera-se, em verdade, o primeiro passo para a abolição de barreiras ao triunfo decisivo dos mercadores e especuladores urbanos, mas a obra começada em 1850 só se completará efetivamente em 1888. Durante esse intervalo de quarenta anos, as resistências hão de partir não só dos elementos mais abertamente retrógrados, representados pelo escravismo impenitente, mas também das forças que tendem à restauração de um equilíbrio ameaçado. Como esperar transformações profundas em país onde eram mantidos os fundamentos tradicionais da situação que se pretendia ultrapassar? Enquanto perdurassem intatos e, apesar de tudo, poderosos os padrões econômicos e sociais herdados da era colonial e expressos principalmente na grande lavoura servida pelo braço escravo, as transformações mais ousadas teriam de ser superficiais e artificiosas.
Nesse sentido pode-se dizer que a tão execrada Lei Ferraz, de 22 de agosto de 1860, essa “ obra-prima de arrocho em matéria de crédito” , como lhe chamaram na época, constituiu como um apelo à realidade. Longe de a provocar ela apenas veio precipitar a tremenda crise comercial de 1864, a primeira registada no Brasil imperial que não deveu sua origem a comoções políticas internas ou à ação de fatores internacionais. Essa crise foi o desfecho normal de uma situação rigorosamente insustentável nascida da ambição de vestir um país ainda preso à economia escravocrata com os trajes modernos de uma grande democracia burguesa.
De certo modo, o malogro comercial de um Mauá também é indício eloqüente da radical incompatibilidade entre as formas de vida copiadas de nações socialmente mais avançadas, de um lado, e o patriarcalismo e personalismo fixados entre nós por uma tradição de origens seculares. Muitas das grandes iniciativas progressistas que se devem a Irineu Evangelista de Sousa puderam ser toleradas e até admiradas, enquanto não comprometessem esses padrões venerandos. Mas os choques nem sempre eram evitáveis e, nestes casos, a tolerância se mudava sem dificuldade em desconfiança e a desconfiança em oposição calorosa.
Nas suas objurgatórias contra Mauá, que, ao apoiar, em 1872, o Ministério Rio Branco, colocara seus “ interesses de mercador” acima da lealdade partidária, a atitude que encarna o liberal Silveira Martins é justamente a de um conservador e tradicionalista, no sentido mais amplo que possam ter essas palavras. A opinião de que um indivíduo filiado a determinado partido político assumiu, pelo fato dessa filiação, compromissos que não pode romper sem felonia pertence de modo bem distinto a um círculo de idéias e princípios que a ascensão da burguesia urbana tenderia a depreciar cada vez mais. Segundo tal concepção, as facções são constituídas à semelhança das famílias, precisamente das famílias de estilo patriarcal, onde os vínculos biológicos e afetivos que unem ao chefe os descendentes, colaterais e afins, além da famulagem e dos agregados de toda sorte, hão de preponderar sobre as demais considerações. Formam, assim, como um todo indivisível, cujos membros se acham associados, uns aos outros, por sentimentos e deveres, nunca por interesses ou idéias.
A incompreensão manifestada por mais de um estrangeiro em face de algumas peculiaridades de nosso maquinismo político provém, sem dúvida, da incompatibilidade fundamental que, apesar de muitas aparências em contrário, subsistia entre esses sistemas e os que regiam outros países mais fundamente marcados pela Revolução Industrial, em particular os países anglo-saxões. A um desses estrangeiros, pelo menos, não escaparam os motivos reais da divergência. “No Brasil” , escrevia em 1885 o naturalista norte-americano Herbert Smith, “ vigora quase universal a idéia de que é desonroso para uma pessoa abandonar seu partido; os que o fazem são estigmatizados como traidores.” E acrescentava: “Ora, esse espírito de fidelidade é bom em si, porém mau na aplicação; um homem não age bem quando deserta de um parente, de um amigo, de uma causa nobre; mas não age necessariamente mal quando se retira de um partido político: às vezes o mal está em apegar-se a ele” .6
À origem desse espírito de facção podem distinguir-se as mesmas virtudes ou pretensões aristocráticas que foram tradicionalmente o apanágio de nosso patriciado rural. Dos senhores de engenho brasileiros, e não somente deles como dos lavradores livres, obrigados ou mesmo arrendatários, dissera alguém, em fins do século XVIII, exprimindo sem dúvida convicção generalizada, que formavam um corpo “ tão nobre por natureza, que em nenhum outro país se encontra outro igual a ele” .7 Eram, pela solidez de seus estabelecimentos, considerados como a mola real da riqueza e do poder na colônia, os animadores reais da produção, do comércio, da navegação e de todas as artes e ofícios.
Nos domínios rurais, a autoridade do proprietário de terras não sofria réplica. Tudo se fazia consoante sua vontade, muitas vezes caprichosa e despótica. O engenho constituía um organismo completo e que, tanto quanto possível, se bastava a si mesmo. Tinha capela onde se rezavam as missas. Tinha escola de primeiras letras, onde o padre-mestre desasnava meninos. A alimentação diária dos moradores, e aquela com que se recebiam os hóspedes, freqüentemente agasalhados, procedia das plantações, das criações, da caça, da pesca proporcionadas no próprio lugar. Também no lugar montavam-se as serrarias, de onde saíam acabados o mobiliário, os apetrechos do engenho, além da madeira para as casas: a obra dessas serrarias chamou a atenção do viajante Tollenare, pela sua “ execução perfeita”. Hoje mesmo, em certas regiões, particularmente no Nordeste, apontam-se, segundo o sr. Gilberto Freyre, as “ cômodas, bancos, armários, que são obra de engenho, revelando-o no não sei quê de rústico de sua consistência e no seu ar distintamente heráldico” .8
A propósito dessa singular autarquia dos domínios rurais brasileiros, conservou-nos frei Vicente do Salvador a curiosa anedota onde entra certo bispo de Tucumã, da Ordem de São Domingos, que por aqui passou em demanda da corte dos Filipes. Grande canonista, homem de bom entendimento e prudência, esse prelado notou que, quando mandava comprar um frangão, quatro ovos e um peixe para comer, nada lhe traziam, porque não se achavam dessas coisas na praça, nem no açougue, e que, quando as pedia às casas partículares, logo lhas mandavam. “Então disse o bispo: verdadeiramente que nesta terra andam as coisas trocadas, porque toda ela não é república, sendo-o cada casa.” “ E assim é” , comenta frei Vicente, contemporâneo do episódio, “ que estando as casas dos ricos (ainda que seja à custa alheia, pois muitos devem quanto têm) providas de todo o necessário, porque têm escravos, pescadores e caçadores que lhes trazem a carne e o peixe, pipas de vinho e azeite que compram por junto nas vilas, muitas vezes se não acha isto de venda.” 9
No Maranhão, em 1735, queixava-se um governador de que não vivia a gente em comum, mas em particular, sendo a casa de cada habitante ou de cada régulo uma verdadeira república, porque tinha os ofícios que a compõem, como pedreiros, carpinteiros, barbeiros, sangrador, pescador etc.10 Com pouca mudança, tal situação prolongou-se, aliás, até bem depois da Independência e sabemos que, durante a grande época do café na província do Rio de Janeiro, não faltou lavrador que se vangloriasse de só ter de comprar ferro, sal, pólvora e chumbo, pois o mais davam de sobra suas próprias terras.
Nos domínios rurais é o tipo de família organizada segundo as normas clássicas do velho direito romano-canônico, mantidas na península Ibérica através de inúmeras gerações, que prevalece como base e centro de toda a organização. Os escravos das plantações e das casas, e não somente escravos, como os agregados, dilatam o círculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do pater-famílias. Esse núcleo bem característico em tudo se comporta como seu modelo da Antiguidade, em que a própria palavra “ família” , derivada de famulus, se acha estreitamente vinculada à idéia de escravidão, e em que mesmo os filhos são apenas os membros livres do vasto corpo, inteiramente subordinado ao patriarca, os liberi.
Dos vários setores de nossa sociedade colonial, foi sem dúvida a esfera da vida doméstica aquela onde o princípio de autoridade menos acessível se mostrou às forças corrosivas que de todos os lados o atacavam. Sempre imerso em si mesmo, não tolerando nenhuma pressão de fora, o grupo familiar mantém-se imune de qualquer restrição ou abalo. Em seu recatado isolamento pode desprezar qualquer princípio superior que procure perturbá-lo ou oprimi-lo. Nesse ambiente, o pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos freios existem para sua tirania. Não são raros os casos como o de um Bernardo Vieira de Melo, que, suspeitando a nora de adultério, condena-a à morte em conselho de família e manda executar a sentença, sem que a Justiça dê um único passo no sentido de impedir o homicídio ou de castigar o culpado, a despeito de toda a publicidade que deu ao fato o próprio criminoso.
O quadro familiar torna-se, assim, tão poderoso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades. Representando, como já se notou acima, o único setor onde o princípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a idéia mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da coesão entre os homens. O resultado era predominarem, em toda a vida social, sentimentos próprios à comunidade doméstica, naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público pelo privado, do Estado pela família.
Com o declínio da velha lavoura e a quase concomitante ascensão dos centros urbanos, precipitada grandemente pela vinda, em 1808, da Corte portuguesa e depois pela Independência, os senhorios rurais principiam a perder muito de sua posição privilegiada e singular. Outras ocupações reclamam agora igual eminência, ocupações nitidamente citadinas, como a atividade política, a burocracia, as profissões liberais.
É bem compreensível que semelhantes ocupações venham a caber, em primeiro lugar, à gente principal do país, toda ela constituída de lavradores e donos de engenhos. E que, transportada de súbito para as cidades, essa gente carregue consigo a mentalidade, os preconceitos e, tanto quanto possível, o teor de vida que tinham sido atributos específicos de sua primitiva condição.
Não parece absurdo relacionar a tal circunstância um traço constante de nossa vida social: a posição suprema que nela detêm, de ordinário, certas qualidades de imaginação e “ inteligência” , em prejuízo das manifestações do espírito prático ou positivo. O prestígio universal do “ talento” , com o timbre particular que recebe essa palavra nas regiões, sobretudo, onde deixou vinco mais forte a lavoura colonial e escravocrata, como o são eminentemente as do Nordeste do Brasil, provém sem dúvida do maior decoro que parece conferir a qualquer indivíduo o simples exercício da inteligência, em contraste com as atividades que requerem algum esforço físico. O trabalho mental, que não suja as mãos e não fatiga o corpo, pode constituir, com efeito, ocupação em todos os sentidos digna de antigos senhores de escravos e dos seus herdeiros. Não significa forçosamente, neste caso, amor ao pensanlento especulativo — a verdade é que, embora presumindo o contrário, dedicamos, de modo geral, pouca estima às especulações intelectuais — mas amor à frase sonora, ao verbo espontâneo e abundante, à erudição ostentosa, à expressão rara. É que para bem corresponder ao papel que, mesmo sem o saber, lhe conferimos, inteligência há de ser ornamento e prenda, não instrumento de conhecimento e de ação.
Numa sociedade como a nossa, em que certas virtudes senhoriais ainda merecem largo crédito, as qualidades do espírito substituem, não raro, os títulos honoríficos, e alguns dos seus distintivos materiais, como o anel de grau e a carta de bacharel, podem eqüivaler a autênticos brasões de nobreza. Aliás, o exercício dessas qualidades que ocupam a inteligência sem ocupar os braços tinha sido expressamente considerado, já em outras épocas, como pertinente aos homens nobres e livres, de onde, segundo parece, o nome de liberais dado a determinadas artes, e, oposição às mecânicas, que pertencem às classes servis.
Nem mesmo um Silva Lisboa, que, nos primeiros decênios do século passado, foi grande agitador de novas idéias econômicas, parece ter ficado inteiramente imune dessa opinião generalizada, de que o trabalho manual é pouco dignificante, em confronto com as atividades do espírito. Nos seus Estudos do bem comum, publicados a partir de 1819, o futuro visconde de Cairu propõe-se mostrar aos seus compatriotas, brasileiros ou portugueses, como o fim da economia não é carregar a sociedade de trabalhos mecânicos, braçais e penosos. E pergunta, apoiando-se confusamente numa passagem de Adam Smith, se para a riqueza e prosperidade das nações contribui mais, e em que grau, a quantidade de trabalho ou a quantidade de inteligência.
A propósito dessa questão que, diga-se de passagem, não figura no trecho referido de Smith, mas resulta, sem dúvida, de uma tradução malfeita11 e, em verdade, mais segundo o espírito do tradutor do que do original, nosso economista toma decididamente o partido da “inteligência” . Às faculdades intelectuais competiria, no seu modo de ver, a imensa tarefa de aliviar as atividades corporais “ pelo estudo das leis e obras do Criador” , a fim de “terem os homens a maior riqueza possível com o menor trabalho possível” .12
Ao economista baiano deveria parecer inconcebível que a tão celebrada “ inteligência” dos seus compatriotas não pudesse operar prodígios no acréscimo dos bens materiais que costumam fazer a riqueza e prosperidade das nações. Essa, em resumo, a idéia que, julgando corrigir ou rematar o pensamento do mestre escocês, expõe em seu livro. Não lhe ocorre um só momento que a qualidade particular dessa tão admirada “ inteligência” é ser simplesmente decorativa, que ela existe em função do próprio contraste com o trabalho físico, por conseguinte não pode supri-lo ou completá-lo, finalmente, que corresponde, numa sociedade de coloração aristocrática e personalista, à necessidade que sente cada indivíduo de se distinguir dos seus semelhantes por alguma virtude aparentemente congênita e intransferível, semelhante por esse lado à nobreza de sangue.
A “ inteligência” , que há de constituir o alicerce do sistema sugerido por Silva Lisboa, é, assim, um princípio essencialmente antimoderno. Nada, com efeito, mais oposto ao sentido de todo o pensamento econômico oriundo da Revolução Industrial e orientado pelo emprego progressivo da máquina do que essa primazia conferida a certos fatores subjetivos, irredutíveis a leis de mecânica e a termos de matemática. “A máquina” , notou um arguto observador, “ quer a adaptação do trabalhador ao seu trabalho, não a adaptação do trabalho ao trabalhador.” 13 O gosto artístico, a destreza, o cunho pessoal, que são virtudes cardeais na economia do artesanato, passam assim a plano secundário. O terreno do capricho individual, do engenho criador e inventivo, tende, na medida do possível, a restringirse, em proveito da capacidade de atenção perseverante a todas as minúcias do esforço produtivo. A mais cabal expressão de semelhante tendência encontra-se, sem dúvida, nos atuais sistemas de organização racional do trabalho, como o taylorismo e a experiência de Ford, que levam às suas conseqüências extremas o ideal da completa despersonalização do trabalhador.
É claro que, se existe qualquer coisa de dificilmente compatível com a atividade impessoal, “ ininteligente” , que cada vez mais reclama o caráter da economia moderna, deve-se buscá-la justamente naquele tipo de talento sobretudo ornamental e declamatório que Cairu admirava entre os brasileiros de seu tempo. E também parece certo que o autor dos Estudos do bem comum, a despeito de seu trato com economistas britânicos, não contribuiu, salvo nas aparências e superficialmente, para a reforma das nossas idéias econômicas. Pode dizer-se que, em 1819, já era um homem do passado,14 comprometido na tarefa de, a qualquer custo, frustrar a liquidação das concepções e formas de vida relacionadas de algum modo ao nosso passado rural e colonial.
É semelhante empenho que se espelha, com perfeita nitidez, em suas opiniões filosóficas, em suas genuflexões constantes diante do Poder e, sobretudo, em sua noção bem característica da sociedade civil e política, considerada uma espécie de prolongamento ou ampliação da comunidade doméstica, noção essa que se exprime, com a insistência de um leitmotiv, ao longo de toda a sua obra. “ O primeiro princípio da economia política” , exclama, “ é que o soberano de cada nação deve considerar-se como chefe ou cabeça de uma vasta família, e conseqüentemente amparar a todos que nela estão, como seus filhos e cooperadores da geral felicidade...” “Quanto mais o governo civil se aproxima a este caráter paternal” , diz ainda, “ e forceja por realizar essa ficção generosa e filantrópica, tanto ele é mais justo e poderoso, sendo então a obediência a mais voluntária e cordial, e a satisfação dos povos a mais sincera e indefinida.” 15
A família patriarcal fornece, assim, o grande modelo por onde se hão de calcar, na vida política, as relações entre governantes e governados, entre monarcas e súditos. Uma lei moral inflexível, superior a todos os cálculos e vontades dos homens, pode regular a boa harmonia do corpo social, e portanto deve ser rigorosamente respeitada e cumprida.
Esse rígido paternalismo é tudo quanto se poderia esperar de mais oposto, não já às idéias da França revolucionária, esses ópios-políticos, como lhes chamou acrimoniosamente o mesmo Silva Lisboa,16 mas aos próprios princípios que guiaram os homens de Estado norte-americanos na fundação e constituição de sua grande República. Pois não foi um desses homens, James Madison, quem sustentou a impotência dos motivos morais e religiosos na repressão das causas de dissídio entre os cidadãos, e apresentou como finalidade precípua dos governos — finalidade de onde resultaria certamente sua natureza essencial — a fiscalização e o ajuste de interesses econômicos divergentes?
No Brasil, o decoro que corresponde ao Poder e às instituições de governo não parecia conciliável com a excessiva importância assim atribuída a apetites tão materiais, por isso mesmo subalternos e desprezíveis de acordo com as idéias mais geralmente aceitas. Era preciso, para se fazerem veneráveis, que as instituições fossem amparadas em princípios longamente consagrados pelo costume e pela opinião. O próprio Hipólito da Costa não ousará defender algumas das suas convicções mais audaciosas sem procurar emprestar-lhes a chancela da antigüidade e a da tradição. É assim que chega a ressuscitar um documento, sem dúvida apócrifo, como as famosas atas das cortes de Lamego, onde o poder real é associado a um contrato expresso entre o primeiro monarca português e o povo,18 para dar nobreza e cidadania lusitana ao princípio dos pactos sociais, tão abominado por todos os reacionários da época.
Tradicionalistas e iconoclastas movem-se, em realidade, na mesma órbita de idéias. Estes, não menos do que aqueles, mostram-se fiéis preservadores do legado colonial, e as diferenças que os separam entre si são unicamente de forma e superfície. A própria revolução pernambucana de 1817, pode-se dizer que, embora tingida de “idéias francesas” , foi, em grande parte, uma reedição da luta secular do natural da terra contra o adventício, do senhor de engenho contra o mascate. Vitoriosa, é pouco provável que suscitasse alguma transformação verdadeiramente substancial em nossa estrutura político-econômica. Sabemos bem que, entre os condutores do movimento, muitos pertenciam de fato à chamada nobreza da terra, e nada indica que estivessem intimamente preparados para aceitar todas as conseqüências de seu gesto, despindo-se das antigas prerrogativas.
A declaração com que um Antônio Carlos se escusará perante os juizes da alçada, na Bahia, de ter participado do levante pode não exprimir perfeitamente suas opiniões, destinada como estava a atrair boa vontade dos magistrados. É difícil, em todo caso, negar qualquer parcela de sinceridade ao documento em que manifesta sua áspera repulsa à tendência, ao menos teórica, de uma revolução que pretendia abolir todas as barreiras sociais, nivelando-o, e aos demais membros da classe superior, com as camadas ínfimas da população. Ou, para repetir suas mesmas palavras, a um “ sistema que, derrubando-me da ordem da nobreza a que pertencia, me punha a par da canalha e ralé de todas as cores e me segava em flor as mais bem fundadas esperanças de ulterior avanço e de mores dignidades”.19
E o que era verdadeiro em 1817 não deixaria de sê-lo depois de nossa emancipação política. Em 1847, dirigindo-se aos praieiros, que tinham movido uma justa campanha, posto que improfícua, contra a predominância esmagadora de certas famílias de proprietários rurais em Pernambuco, Nabuco de Araújo podia notar sabiamente como o espírito anti-social e perigoso representado por essas famílias era um vício “ que nasceu da antiga organização e que nossas revoluções e civilização não puderam acabar” . E, logo a seguir, acrescentava: “Excitastes essas idéias generosas para carear a popularidade e para triunfar, mas ao depois e na prática tendes respeitado e conciliado esse feudalismo dos vossos e só combatido o dos adversários; tendes dividido a província em conquistadores e conquistados; vossos esforços têm sido para dar aos vossos aquilo que reprovais aos outros; só tendes irritado e lançado os elementos de uma reação funesta; tendes obrado com o encarniçamento e odiosidade de uma facção, e não com o patriotismo e vistas de um partido político”.20
Esse caráter puramente exterior, epidérmico, de numerosas agitações ocorridas entre nós durante os anos que antecederam e sucederam à Independência, mostra o quanto era difícil ultrapassarem-se os limites que à nossa vida política tinham traçado certas condições específicas geradas pela colonização portuguesa. Um dos efeitos da improvisação quase forçada de uma espécie de burguesia urbana no Brasil está em que certas atitudes peculiares, até então, ao patriciado rural logo se tornaram comuns a todas as classes como norma ideal de conduta. Estereotipada por longos anos de vida rural, a mentalidade de casa-grande invadiu assim as cidades e conquistou todas as profissões, sem exclusão das mais humildes. É bem típico o caso testemunhado por um John Luccock, no Rio de Janeiro, do simples oficial de carpintaria que se vestia à maneira de um fidalgo, com tricórnio e sapatos de fivela, e se recusava a usar das próprias mãos para carregar as ferramentas de seu ofício, preferindo entregá-las a um preto.21
Muitas das dificuldades observadas, desde velhos tempos, no funcionamento dos nossos serviços públicos, devem ser atribuídas, sem dúvida, às mesmas causas. Num país que, durante a maior parte de sua existência, foi terra de senhores e escravos, sem comércio que não andasse em mãos de adventícios ambiciosos de riquezas e de enobrecimento, seria impossível encontrar uma classe média numerosa e apta a semelhantes serviços.
Tais condições tornam-se ainda mais compreensíveis quando se considere que no Brasil, como aliás na maioria dos países de história colonial recente, mal existiam tipos de estabelecimento humano intermediários entre os meios urbanos e as propriedades rurais destinadas à produção de gêneros exportáveis. Isso é particularmente verdadeiro onde, como entre nós e em geral na América Latina, a estabilidade dos domínios agrários sempre dependeu diretamente e unicamente da produtividade natural dos solos. E sobretudo onde o esperdício das áreas de lavoura determinou com freqüência deslocações dos núcleos de povoamento rural e formação, em seu lugar, de extensos sítios ermados, ou de população dispersa e mal apegada à terra.22
O resultado é que a distinção entre o meio urbano e a “ fazenda” constitui no Brasil, e pode dizer-se que em toda a América, o verdadeiro correspondente da distinção clássica e tipicamente européia entre a cidade e a aldeia. Salvo muito raras exceções, a própria palavra “ aldeia” , no seu sentido mais corrente, assim como a palavra “ camponês”, indicando o homem radicado ao seu rincão de origem através de inúmeras gerações, não corresponde no Novo Mundo a nenhuma realidade.23 E por isso, com o crescimento dos núcleos urbanos, o processo de absorção das populações rurais encontra aqui menores resistências do que, por exemplo, nos países europeus, sempre que não existam, a pequeno alcance, terras para desbravar e desbaratar.
Procurou-se mostrar no presente capítulo como, ao menos em sua etapa inicial, esse processo correspondeu de fato a um desenvolvimento da tradicional situação de dependência em que se achavam colocadas as cidades em face dos domínios agrários. Na ausência de uma burguesia urbana independente, os candidatos às funções novamente criadas recrutam-se, por força, entre indivíduos da mesma massa dos antigos senhores rurais, portadores de mentalidade e tendência características dessa classe. Toda a ordem administrativa do país, durante o Império e mesmo depois, já no regime republicano, há de comportar, por isso, elementos estreitamente vinculados ao velho sistema senhorial.
Essas condições representam o prolongamento de um fato muito real e sensível, que prevaleceu durante o regime colonial. Durante largo tempo, de algum modo até à vinda da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, constituímos uma estrutura sui generis, mesmo comparados aos outros países americanos, àqueles, em particular, onde a vida econômica se apoiou quase totalmente, como aqui, no trabalho servil.
A regra, em todo o mundo e em todas as épocas, foi sempre o contrário: a prosperidade dos meios urbanos fazendo-se à custa dos centros de produção agrícola. Sem o incremento das cidades e a formação de classes não agrárias, o que tem sucedido constantemente é que a terra entra a concentrar-se, pouco a pouco, nas mãos dos representantes de tais classes, que residem, em geral, nas cidades e consomem a produção dos elementos rurais, sen} lhes dar, no entanto, o equivalente econômico do que recebem.24
Se não parece muito exato dizer-se que tivemos entre nós justamente o reverso de tal medalha, é por ter sido precário e relativo o incremento das nossas cidades durante todo o período colonial. Deve-se reter, todavia, este fato significativo, de que, naquele período, os centros urbanos brasileiros nunca deixaram de se ressentir fortemente da ditadura dos domínios rurais. É importante assinalar-se tal fato, porque ajuda a discriminar o caráter próprio das nossas cidades coloniais. As funções mais elevadas cabiam nelas, em realidade, aos senhores de terras. São comuns em nossa história colonial as queixas dos comerciantes, habitadores das cidades, contra o monopólio das poderosas câmaras municipais pelos lavradores. A pretensão dos mercadores de se ombrearem com os proprietários rurais passava por impertinente, e chegou a ser tachada de absurda pela própria Corte de Lisboa, pois o título de senhor de engenho, segundo refere o cronista, podia ser considerado tão alto como os títulos de nobreza dos grandes do Reino de Portugal.
Não admira, assim, que fossem eles praticamente os únicos verdadeiros “ cidadãos” na colônia, e que nesta se tenha criado uma situação característica talvez da Antigüidade clássica mas que a Europa — e mesmo a Europa medieval — não conhecia. O cidadão típico da Antigüidade clássica foi sempre, de início, um homem que consumia os produtos de suas próprias terras, lavradas pelos seus escravos. Apenas não residia por hábito nelas. Em alguns lugares da bacia do Mediterrâneo, na Sicília, por exemplo — segundo informou Max Weber —, não residiam os lavradores, em hipótese nenhuma, fora dos muros das cidades, devido à insegurança e aos extraordinários perigos a que se achavam expostos constantemente os domínios rurais. As próprias “ vilas” romanas eram, antes de mais nada, construções de luxo, e não serviam para residência habitual dos proprietários, mas para vilegiatura.25
No Brasil colonial, entretanto, as terras dedicadas à lavoura eram a morada habitual dos grandes. Só afluíam eles aos centros urbanos a fim de assistirem aos festejos e solenidades. Nas cidades apenas residiam alguns funcionários da administração, oficiais mecânicos e mercadores em geral. Da pobreza dos habitantes de Piratininga durante o século XVII, dá-nos conta o padre Justo Mansilla van Surck, em carta ao geral da Companhia de Jesus sobre o assalto às reduções de Guairá. Nesse documento explica-se a miséria piratiningana pela constante ausência dos habitantes, “porque fuera las 3 ó 4 principales fiestas, muy pocos, ó hombres ó mujeres estan en ellas; si no siempre ó en sus herdades ó por los bosques y campos, en busca (de índios, en que gastan su vida''. Na Bahia, o centro administrativo do país durante a maior parte do período colonial, informa-nos Capistrano de Abreu que as casas, fechadas quase todo o ano, só se enchiam com as festas públicas. “A cidade” , diz, “ saía da vida sor na muito poucas vezes por ano. Gabriel Soares fala de uma honesta praça em que corriam touros quando convinha. Repetiam-se as festas eclesiásticas com suas procissões e figurações e cantorias ao ar livre; dentro da igreja representavam-se comédias e com pouco alinho, se, como jura uma testemunha, podia alguém sentar-se no altar. Esvaziavam-se então os engenhos; podia exibir-se o luxo, que não se limitava como hoje a um sexo único...” 26 Em outro lugar, referindo-se ainda à cidade do Salvador no século XVI, diz o mesmo historiador: “ [...] cidade esquisita, de casas sem moradores, pois os proprietários passavam o mais tempo em suas roças rurais, só acudindo no tempo das festas. A população urbana constava de mecânicos, que exerciam seus ofícios, de mercadores, de oficiais de justiça, de fazenda, de guerra, obrigados à residência” .27
Idêntica, segundo outros depoimentos, era a situação nas demais cidades e vilas da colônia. Sucedia, assim, que os proprietários se descuidavam freqüentemente de suas habitações urbanas, dedicando todo o zelo à moradia rural, onde estava o principal de seus haveres e peças de luxo e onde podiam receber, com ostentosa generosidade, aos hóspedes e visitantes. Como na Florença do Renascimento, onde, dizia Giovanni Villani, as “ vilas” dos homens ricos, situadas nas campinas toscanas, eram mais belas do que as casas da cidade e nelas se gastava muito mais do que seria razoável.
As referências que se acabam de citar relacionam-se principalmente com o primeiro e o segundo século da colonização; já no terceiro, a vida urbana, em certos lugares, parece adquirir mais caráter,com a prosperidade dos comerciantes reinóis, instalados nas cidades. Em 1711, Antonil declarava que ter os filhos sempre no engenho era “criá-los tabaréus, que nas conversações não saberão falar de outra coisa mais do que do cão, do cavalo, e do boi. Deixá-los sós na cidade é dar-lhes liberdade para se fazerem logo viciosos e encherem-se de vergonhosas doenças, que se não podem facilmente curar” .28
Mas ainda assim não devia ser muito favorável às cidades a comparação entre a vida urbana e a rural por essa época, se é certo o que dizia o conde de Cunha, primeiro vice-rei do Brasil, em carta escrita ao rei de Portugal em 1767, onde se descreve o Rio de Janeiro como só habitado de oficiais mecânicos, pescadores, marinheiros, mulatos, pretos boçais e nus, e alguns homens de negócios, dos quais muito poucos podem ter esse nome, sem haver quem pudesse servir de vereador, nem servir cargo autorizado, pois as pessoas de casas nobres e distintas viviam retiradas em suas fazendas e engenhos.
Esse depoimento serve para atestar como ainda durante a segunda metade do século XVIII persistia bem nítido o estado de coisas que caracteriza a nossa vida colonial desde os seus primeiros tempos. A pujança dos domínios rurais, comparada à mesquinhez urbana, representa fenômeno que se instalou aqui com os colonos portugueses, desde que se fixaram à terra. E essa singularidade avulta quando posta em contraste com o que realizaram os holandeses em Pernambuco. Já se assinalou no capítulo anterior como a Companhia das Indias Ocidentais não conseguiu, durante a conquista de nosso Nordeste, apesar de todo o seu empenho em obter uma imigração rural considerável, senão aumentar o afluxo de colonos urbanos. A vida de cidade desenvolveu-se de forma anormal e prematura. Em 1640, enquanto nas capitanias do Sul, povoadas por portugueses, a defesa urbana era encarada, às vezes, como sério problema, devido à escassez dos habitantes, o que se dava no Recife era justamente o contrário: escassez notável de habitações para abrigar novos moradores, que não cessavam de afluir. Referem documentos holandeses que por toda parte se improvisavam camas para os recém-chegados à colônia. Por vezes, em um só aposento, sob um calor intolerável, deitavam-se três, quatro, seis e às vezes oito pessoas. Se as autoridades neerlandesas não tomassem providências rigorosas para facilitar o alojamento de toda essa gente, só restaria um remédio: ir residir nas estalagens do porto. “ E estas” , diz um relatório holandês, “são os lupanares mais ordinários do mundo. Ai do moço de família que cair ali! Estará condenado irremediavelmente à desgraça.” 29
O predomínio esmagador do ruralismo, segundo todas as aparências, foi antes um fenômeno típico do esforço dos nossos colonizadores do que uma imposição do meio. E vale a pena assinalar-se isso, pois parece mais interessante, e talvez mais lisonjeiro à vaidade nacional de alguns, a crença, nesse caso, em certa misteriosa “ força centrífuga” própria ao meio americano e que tivesse compelido nossa aristocracia rural a abandonar a cidade pelo isolamento dos engenhos e pela vida rústica das terras de criação.
NOTAS
(1) Pandiá Calógeras, A política exterior do Império, vol. 3: Da Regência à queda de Rosas (São Paulo, 1933), p. 362.
(2) Visconde de Mauá, Autobiografia (Rio de Janeiro, 1942), p. 123.
(3) Ferreira Soares, assinalando as gigantescas proporções que tomara o movimento comercial da praça do Rio de Janeiro depois de abolido o tráfico, nota como nos exercícios de 1850-1 e de 1851-2 a soma global das importações ultrapassou a dos exercícios de 1848-9 e 1849-50 em 59 043:0001000. O mesmo, posto que em menor escala, ocorre com as exportações, que cresceram num total de 11 498:000$000. Sebastião Ferreira Soares, Elementos de estatística, i (Rio de Janeiro, 1865), pp. 171-2.
(4) Anais da Assembléia Legislativa Provincial de São Paulo, 1854 (São Paulo,1927), p. 225.
(5) Joaquim Nabuco, Um estadista do Império, i (São Paulo, 1936), p. 188.
(6) Herbert Smith, Do Rio de Janeiro a Cuiabá (São Paulo, 1922), p. 182.
(7) A diferença entre lavradores “ livres” e “ obrigados” estava em que os primeiros faziam plantações em terras próprias ou foreiras sem compromisso de mandarem moer suas canas em certo e determinado engenho, ao passo que os outros plantavam em terras dos engenhos, com a obrigação expressa de só destes se servirem. “ Discurso preliminar, histórico, introdutivo, com natureza de descrição econômica da cidade de Bahia” , Anais da Biblioteca Nacional, xxvn (Rio de Janeiro, 1906), p. 290.
(8) Gilberto Freyre, “A cultura da cana no Nordeste. Aspectos de seu desenvolvimento histórico” , Livro do Nordeste, comemorativo do 1º centenário do Diário de Pernambuco (Recife, 1925), p. 158.
(9) Frei Vicente do Salvador, op. cit., p. 16.
(10) Melo Morais, Corografia histórica, cronográfica, genealógica, nobiliária e política do Império do Brasil, ii (Rio de Janeiro, 1858), p. 164.
(11) A própria palavra “ inteligência” está, ao que parece, no lugar dos vocábulos skill, dexterity e judgement, do original inglês, nenhum dos quais, isoladamente ou em conjunto, poderia ter tal significado.
(12) José da Silva Lisboa, Estudos do bem comum, i (Rio de Janeiro, 1819), p. xii.
(13) Thorstein Veblen, The theory ofbusiness enterprise (Nova York, 1917), p. 310. Cf. também G. Tarde, Psychologie économique, i (Paris, 1902), p. 124.
(14) Um ponto de vista oposto ao que se exprime aqui é o defendido pelo sr.Alceu Amoroso Lima em conferência sobre Cairu, publicada a 1º de novembro de 1944 no Jornal do Comércio do Rio de Janeiro. Referindo-se aos Estudos do bem comum, assim se manifesta o ilustre pensador: “Na impossibilidade de analisar devidamente essa grande obra, seja-me permitido apenas, para provar a atualidade das idéias econômicas de Cairu e, de outro lado, a sua autonomia em face de seu mestre Adam Smith, relembrar um traço essencial de sua teoria da produção econômica. Haviam os fisiocratas colocado a terra como elemento capital da produção. Veio Adam Smith e acentuou o elemento trabalho. E com o manchesterianismo, o capital é que passou a ser considerado o elemento básico da produção. Pois bem, o nosso grande Cairu, no seu tratado de 1819, mencionando embora a ação de cada um desses elementos, dá sobre eles a preeminência a outro fator, que só modernamente, depois da luta entre o socialismo e o liberalismo de todo o século XIX, é que viria a ser destacado — a Inteligência”. E acrescenta, linhas adiante: “Cairu é o precursor de Ford, de Taylor, de Stakhanoff, a um século de distância”
(15) Princípios de Economia Política para servir de “ Introdução à Tentativa Econômica do Autor dos Princípios de Direito Mercantil” (Lisboa, 1804), pp. 39 e 42.
(16) José da Silva Lisboa, Observações sobre a prosperidade do Estado pelos liberais princípios da nova legislação do Brasil (Bahia, 1811), p. 68.
(17) Apud Charles A. Beard, An economical interpretation of the Constitution o f the United States (Nova York, 1944), pp. 152-88.
(18) “ Paralelo da Constituição portuguesa com a inglesa” , Correio Brasiliense, in (Londres, 1809), pp. 307 ss. Sobre as cortes de Lamego, cujas atas foram publicadas em Portugal, pela primeira vez, em 1632, reinando Filipe i i i (iv), por frei Antônio Brandão, na Monarquia lusitana, leia-se A. Herculano, História de Portugal, 7a ed., H (Paris—Lisboa, 1914), p. 286. Acerca da influência política desse documento, A. Martins Afonso, “ Valor e significação das atas das cortes de Lamego no movimento da Restauração” , Congresso do Mundo Português. Publicações, vn (Lisboa,1940), pp. 475 ss., e Henrique da Gama Barros, História da administração pública em Portugal, 2? ed., (Lisboa, s. d.), pp. 301-3 n. e 410-11.
(19) Dr. Francisco Muniz Tavares, História da revolução de Pernambuco em 1817, 3º ed. (Recife, 1917), p. 115.
(20) Joaquim Nabuco, Um estadista do Império, i (São Paulo, 1936), pp. 63 s.
(21) John Luccock, Notas sobre o Rio de Janeiro epartes meridionais do Brasil, tomadas durante uma estada de dez anos nesse país, de 1808 a 1818 (São Paulo, s. d.), p. 73.
(22) O geógrafo norte-americano Preston James, depois de estudo acurado do assunto, pôde concluir que, em toda a América Latina, existem apenas quatro zonas bem definidas onde se processa um povoamento verdadeiramente expansivo, quer dizer, onde a ocupação de novas áreas de território não é seguida do declínio da população do núcleo originário. São elas: 1) o planalto da República da Costa Rica; 2) o planalto de Antióquia, na Colômbia; 3) o Chile central e 4) os três estados do Sul do Brasil. Preston James, Latin America (Nova York—Boston, s. d.), pp. 828 ss.
(23) Leopold von Wiese, “ Lãndliche Siedlungen” , Handwòrterbuch der Soziologie (Stuttgart, 1931), pp. 522 ss.
(24) Por outro lado, a pretensão dos entusiastas do progresso urbano de que a cidade durante o apogeu de seu desenvolvimento, entre os séculos XV e XVIII os habitantes dos campos, “ libertando-os” da servidão, da escravidão e de outras formas de opressão, é em grande parte injustificada. “O ar livre das cidades significou freqüentemente o ar de prisão para as partes rurais” , conforme notaram Sorokin e Zimmermann. Pitirim Sorokin e Carie E. Zimmermann, Principies of rural-urban sociology (Nova York, 1928), p. 88.
(25) Max Weber, Wirtschaft und Gesellschaft, n (Tübingen, 1925) pp. 520 ss.
(26) Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. Denunciações da Bahia (São Paulo, 1928), pp. 11 ss.
(27) Frei Vicente do Salvador.'op. cit., xi
(28) João Antônio Andreoni (André João Antonil), Cultura e opulência do Brasil, texto da edição de 1711 (São Paulo, 1967), p. 165.
(29) Hermann Wátjen, op. cit., p. 244.
Texto de Sérgio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil",Companhia das Letras,São Paulo, 1995,excertos pp. 72-92. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
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