8.05.2018
OS ESCÂNDALOS DE CARLOTA JOAQUINA -UMA TRAGÉDIA NUPCIAL
No ano de 1788, a rainha de Portugal, D. Maria Vitória, viúva de D. José I, foi a Madri, sua terra natal, em visita ao irmão - o rei Carlos III. Dessa visita resultou um tratado de paz, selado com dois contratos de casamento. A Espanha daria ao príncipe D. João, neto da rainha Vitória, a princesinha D. Carlota Joaquina. Portugal daria ao príncipe D. Gabriel, filho do rei Carlos III, a princesa D. Mariana Vitória, irmã de D. João e neta de D. José I. Era, como se vê, um negócio de família...e também de Estado.
Na época do ajuste, a princesa espanhola tinha 8 anos de idade e a portuguesa apenas 15. Os preparativos para o casamento duraram quase dois anos, pois essas cerimonias dependiam da execução do
“Tratado Político” assinado pela rainha Maria Vitória, de Portugal, e pelo rei Carlos III, da Espanha. Somente em 17 de março de 1785 é que o conde de Louriçal, ministro português em Madri, pediu oficialmente a mão da princesinha, já então com 10 anos, para o príncipe D. João. Ao mesmo tempo, o conde Fernan Nunes, embaixador espanhol em Lisboa, com toda a solenidade, pedia a mão da infanta portuguesa D. Mariana Vitória, então com 16 anos, para o príncipe D. Gabriel.
Efetuados os dois contratos nupciais, através de procurações dadas aos respectivos embaixadores em Lisboa e Madri, combinou-se que a apresentação das meninas aos respectivos noivos se faria na cidade portuguesa de Vila Viçosa, próxima à fronteira com a Espanha. Aí, em 8 de maio de 1775 Carlota Joaquina recebia em casamento o príncipe D.
João, enquanto Mariana Vitória se tornava esposa do príncipe Gabriel.
No dia seguinte realizaram-se a confirmação nupcial e a bênção apostólica, dada pelo cardeal patriarca aos dois casais de príncipes.
Carlota Joaquina casara-se , pois, com 10 anos de idade enquanto que o marido, o príncipe D. João, contava 17 completos.
Os festejos duraram quatro dias, achando-se presentes as duas famílias reais, a de Portugal e a de Espanha, bem como a fidalgaria e a burguesia rica de ambos os países.
De dia, realizavam-se festas, torneios, touradas; de noite, reuni-
ões musicais, que naquele tempo se chamavam serenins, bailes e re-presentações alegóricas e líricas.
Depois das festas. D. João e Carlota Joaquina, recém-casados, partiram para Lisboa. Mas o príncipe português ia mal-humorado, pois em Viçosa, ainda no dia da benção nupcial, explodira um escândalo, dando motivo a falatórios durante muito tempo.
Que escândalo teria sido esse? - Como teria estreado na vida de aventuras essa menina de 10 anos, que mais tarde seria rainha de Portugal e do Brasil, e esposa adúltera do sereníssimo e conformadíssimo rei D. João VI?
Seria mesmo escandalosa, aos 10 anos de idade, essa malsinada Carlota Joaquina? Dizem as crônicas antigas e a tradição histórica que sim.
Os artífices portugueses, ajudados por espanhóis e franceses, construíram junto ao pavilhão dos reis, o dos noivos, no qual, lado a lado, se apreciavam dois lindos aposentos nupciais.
Os estofados mais vistosos, as sedas mais belas, as rendas caríssimas, broquéis riquíssimos, tudo que poderia encantar a vista e agradar o corpo na maciez de um conforto principesco, aí, nesses dois apar-tamentos vizinhos, podia ser encontrado e apreciado. E nessa histórica noite de 9 de junho de 1785, acompanhadas das famílias reais, as duas princesinhas, a de Portugal e a de Espanha, ingressaram nos respectivos aposentos. Logo depois, os príncipes foram chamados pelas camareiras e, com o cerimonial do protocolo, penetraram nas alcovas nupciais.
E enquanto se fechavam as portas do pavilhão dos noivos, lá fora, no pavilhão das festas, continuava, numa linda canção de amor, o serenim das damas fidalgas e dos nobres cavaleiros das duas côrtes reunidas de Portugal e Espanha.
E a cantoria, mesmo de propositada intenção, ali perto dos aposentos nupciais, baixava em meia voz, e ia morrendo em surdina, como final de um serenim de amor, cantado no dedilhar de guitarras e bandolins.
Eis então que, lá do pavilhão nupcial, gritos de mulher aflita, seguidos de um urro retumbante de dor agoniada, se fizeram ouvir, espicaçando a curiosidade dos cavalheiros e damas da sala de festas. Aos gritos sucederam-se gemidos, e de repente, como um fantasma, um vulto de mulher, em roupas de seda de Veneza e rendas de Holanda, deixava o pavilhão dos noivos e rapidamente atingia o pavilhão dos reis de Espanha.
Quem seria? O que seria? Tais eram as interrogações que imediatamente brotaram de todas as bocas cortesãs. E ainda perduravam as interrogações de curiosidade quando surgiu no salão de festa, ofegante e pálida, trêmula e desconcertada, a senhora condessa de Badajoz, açafata da princesa Carlota Joaquina.
Ia, numa pressa nervosa, gaguejando a todo o instante:
- Onde está o cirurgião-mór? E na arquejante gagueira lá foi repetindo a pergunta até que surgiu a figura rubicunda e gordalhuda do cirurgião-mór.
- Que há, sra. Condessa?
- Depressa, Sr. cirurgião, depressa, que o nosso príncipe D. João está morrendo, esvaindo-se em sangue e a nossa princesa D. Carlota está hirta como defunta no quarto de sua Majestade el-rei de Espanha.
Lá se foi o cirurgião. E os cortesãos, aflitos e torturados pela curiosidade, esperaram pela explicação do caso de tamanho escarcéu.
Somente muito depois é que o escândalo correu de boca em boca, e a explicação contentou regiamente a curiosidade dos bisbilhoteiros da Côrte.
No dia seguinte, a condessa de Badajoz, muito reservadamente, contava o caso ao seu favorito Marquês de Marialva e este o transmitia ao amigo padre José Agostinho de Macedo, de cuja boca ferina e indis-creta Portugal inteiro recolheu a tragédia nupcial do príncipe D. João, E
no famoso convento de Odivelas, do qual era assíduo devoto, o padre narrava o episódio à sua favorita, soror Angelina, entre sorrisos maldosos e comentários picantes:
- Então, meu padre Agostinho, sua alteza o príncipe foi ferido na noite do casamento?
- Ora se foi... A condessa de Badajoz, açafata da princesa Carlota Joaquina, ouviu dela própria a história contada tim-tim por tim-tim...
- E o padre como o soube?
- Pelo Marialva, que o ouviu da açafata condessa de Badajoz. Foi assim: O príncipe D. João, recolhendo-se ao aposento nupcial, quis naturalmente prestar à esposa a mesma homenagem que o cunhado, no aposento vizinho, estava prestando à princesa D. Mariana. Porém, D. Mariana, com 16 anos e mais sabida que a outra, já se conformara previamente com as homenagens próprias de todo o noivado, ao passo que D. Carlota Joaquina, menina de 10 anos, ignorando o protocolo e rebelde às conveniências, não aceitou o jogo e, logo na primeira investida, aplicou uma violentada dentada na orelha do marido e, em seguida, aos gritos, meteu o castiçal de prata da cabeceira na testa de D. João, abrindo-lhe uma brecha. Vendo-o ensangüentado, fugiu para o pavilhão dos reis de Espanha, ainda em trajes de dormir e lá se estatelou num ataque de histeria...
- E agora, padre Zé Agostinho, e agora como vai ser?
- Já está tudo arranjado, soror Angelina. Gente de sangue azul não se aperta por tão pouco. Ficou assentado que sua alteza Carlota Joaquina terá quarto de solteira e recusará a visita do príncipe consorte até completar os 14 anos. É o que consta do ato adicional do casamento, assinado em 12 de maio, dois dias depois da trágica noite nupcial. Isso, naturalmente, só será válido enquanto a princesa o quiser...
- Como é, padre Agostinho?
- É assim mesmo, soror Angelina, porque a princesinha Carlota Joaquina poderá romper o protocolo antes dos 14 anos, tornando-se mulher na amplitude de suas prerrogativas e percalços. Será, apenas, uma questão da sua vontade, quando ela tiver...vontade.
UM CASTIGO DO DIABO
Carlota Joaquina estava fula de raiva. O príncipe D. João, calmo, bondoso, risonho, procurava acalmá-la. Era inútil, e inútil porque não se acalmam espanholas enfurecidas quando provocadas no seu amor próprio. E aquele folheto que circulara por todo Portugal e saíra mesmo fora do reino, chalaceando o incidente escandaloso da sua noite nupcial, golpeara fundo o seu amor próprio de mulher e de princesa.
- E você acha, João, que o que está aí não me ofende?
O príncipe D. João, olhando a capa do folheto incriminativo, respondeu sorrindo:
- Não vejo ofensa, Carlota.
Carlota Joaquina tremeu de raiva. Todo o mundo via alusões naquele livrinho, e só o príncipe não via. Ele só, mais ninguém.
- Então esse título não é escandaloso? Não se refere à nossa noite de núpcias em Vila Mimosa?
D. João levantou o folheto até o rosto e leu em voz alta:
- “O gato que cheirou e não comeu”.
- Aí está a ofensa.
- Pois não vejo nada. Isso é bobagem de algum malandro sem eira nem beira. Eu não sou gato, você não é gata, e aqui só há coisas de gato...
Carlota Joaquina não pôde mais e num ímpeto arrancou o livrinho das mãos do príncipe. Abriu-o ao acaso e espumando de raiva, gritou nas bochechas do marido:
- Pois leia isto.
D. João aproximou-se e leu os seguintes versos: Cante-se por toda a parte
"A mordida na orelha dada;
A gatinha mordeu o gato
Na noite duma embrulhada.
E o gato só cheirou,
Miou e miou de dor,
Com uma brecha na cabeça
E nas ventas um fedor.
Reis, príncipes e bispos
Cantai a história berrante
Do gato que só cheirou
E apanhou no mesmo instante".
- Você viu? Não há alusões? bramiu Carlota Joaquina.
Mas o príncipe D. João, achando graça nos versos, desandou uma gos-tosa gargalhada.
- Quá... quá... quá... quá...
A princesa então saiu dos aposentos do príncipe, onde se achava, depois de lhe dizer quase em soluços de furor:
- Pois o caso será resolvido por mim. Você vai ver, João.
E resolveu de fato. Mandou chamar à sua presença o mordomo do palácio, o famoso João Couto e disse-lhe:
- Preciso que você me arranje uma pessoa de confiança para um serviço reservado.
- Alteza, respondeu o mordomo, o meu filho Antoninho é de toda confiança.
- Pois que venha falar-me.
No dia seguinte apareceu no palácio o famoso Couto da Judiaria, rapagão forte, destemido e barulhento.
Carlota Joaquina mostrou o folheto e perguntou-lhe se sabia quem fôra o autor daquele pasquim.
- Ora, Alteza, isso é do padre José Agostinho.
- Do orador sacro?
- Esse mesmo, Alteza. Lisboa inteira sabe disso.
- Mas esse padre então é um devasso?
- Esse padre, Alteza, tem mais vícios do que cabelos na cabeça.
É devasso, arruaceiro, ladrão, anarquista, indecente...
- Mas é padre. Se não fosse, eu mandaria matá-lo. Como é padre, quero apenas castigá-lo.
- Com uma surra, Alteza?
- Não. A surra é uma vingança banal. Que castigo você se lem-braria de dar a um padre indecente?
- Se Vossa Alteza me permite a liberdade, eu falaria.
- Pois fale.
- Alteza, o rei D. Pedro I de Portugal, antepassado do príncipe vosso esposo, numa ocasião, quis castigar o bispo do Porto, que era um devasso. Mandou expô-lo nu, depois de chicoteá-lo, no largo da Sé, aos olhos da plebe.
- Mas isso não é o bastante. Eu quero mais. Ouça, Couto, pegue com o auxílio de alguns criados do Paço esse padre indecente, dê-lhe uma surra de chicote nas nádegas, aplique um clister de pimenta do reino, e solte-o nu no bairro das marafonas.
*
E assim foi castigado o padre José Agostinho de Macedo, famoso escritor e orador sacro de Portugal e ao mesmo tempo famigerado devasso e rival de Bocage em poesias obscenas.
O Antonio Couto, acompanhado de criados do Paço, cumpriu as instruções da princesa Carlota Joaquina. O padre José Agostinho, solto nu na via pública, pulando de dor em conseqüência do clister de pimenta, foi socorrido pela atriz Maria da Luz, cômica do Teatro da rua dos Condes, de quem se tornou amante depois disso.
Tempos depois, o acaso colocou o padre José Agostinho frente a frente com a princesa Carlota Joaquina. E o padre, todo meloso, disse à futura rainha:
- Alteza, já ouviu falar da agressão de que fui vítima?
- Ora, reverendo, a sua vida deve preocupar o sr. bispo... Aproveite que ele vem vindo e conte os seus problemas a ele. E virando-se para o prelado:
- O notável orador sacro padre José Agostinho perguntou-me se ouvi falar na agressão de que foi vítima. V. Excia . ouviu, sr. bispo?
E o bispo, depois de fungar, tomando uma pitada de rapé, respondeu, rindo:
- Corre pela cidade de Lisboa que o padre José foi vítima de um castigo do diabo.
- De um diabo de saias, resmungou com os seus botões o padre José Agostinho que sabia ter sido o Couto um mandatário de uma dama de elevada hierarquia...
Texto de Assis Cintra em "Os Escândalos de Carlota Joaquina", Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1934, compilação de Edilberto Pereira Leite, excertos pp.8-14. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.
Quanta mentira kkkkkk
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