8.15.2018

A CARNE ASSADA DA DERCY GONÇALVES



Com as novelas devidamente encaminhadas, fui cuidar da Dercy, como havia prometido. Muita gente sabe, mas convém repetir alguns detalhes da vida dessa mulher de talento e coragem. Com base em histórias que ela me contou e no relato que fez a Maria Adelaide Amaral para o livro "Dercy de Cabo a Rabo", fiz um resumo de uma vida intensa, de muitas lutas e muito sucesso. Dercy nasceu em Santa Maria Madalena, no estado do Rio, no dia 23 de junho de 1905, mas só foi registrada em 1907. Seu pai, um alfaiate, apaixonou-se pela mulher de um amigo, também alfaiate, o que ocasionou uma briga enorme quando ela estava com pouco mais de 1 ano. Sua mãe foi agredida, teve um dedo quebrado e fugiu de casa, deixando a garotinha Dercy com o pai. Para sobreviver, foi trabalhar como doméstica no Rio de Janeiro. Voltou para visitar os filhos em 1912; logo, Dercy praticamente só conheceu a mãe quando tinha 5 anos de idade. Percebendo que estava tudo bem com as crianças, dona Margarida voltou ao trabalho por necessidade absoluta, mas, segundo Dercy, ela amava demais os filhos, tanto que tentou se matar quando Rubens, o primogênito, morreu afogado em um rio de Madalena.

Em 1917, aos 10 anos, Dercy perdeu a mãe vitimada pela gripe espanhola. Ao completar 16 anos, passou por Santa Maria Madalena uma companhia de teatro chamada Maria Castro. Dercy se encantou pela companhia e, especialmente, pelo cantor Eugênio Pascoal. Um dia, viu o grupo subindo pela rua onde morava, calculou o tempo em que chegariam perto e, no exato momento, abriu a janela da casa, como se fossem cortinas de um palco, e começou a cantar “Cicatrizes”, uma canção de grande sucesso na época. A companhia parou, ouviu e aplaudiu. O Pascoal a cumprimentou:

– Que voz bonita! Você não gostaria de ser artista?

Dercy, já artista, fez um beicinho e soltou a clássica resposta:

– Papai não deixa.

Naquele dia, a companhia foi para Macaé. Dois dias depois, Dercy fez uma rifa de um corte de casimira inexistente. Como o pai era alfaiate, ninguém desconfiou que a rifa era falsa. Com o dinheiro, planejou uma fuga. À noite, arrumou a cama com um casacão coberto por lençóis que davam a impressão de que ela estava lá dormindo. Foi até a estação, onde o trem para Macaé sairia pela manhã. Havia uma favela ao lado e os cães começaram a latir. Dercy escondeu-se sob um vagão abandonado. De manhã, esgueirou-se entre os passageiros e embarcou no trem, mas foi vista por um parente, que avisou ao pai que ela estava fugindo.

– Dercy? Fugindo? Que nada... ela está em casa dormindo.

Foi verificar, deu de cara com o casacão e partiu de carro para Macaé. Chegou antes da Dercy. Quando ela desceu do trem e viu o pai com dois policiais, tentou correr, mas foi pega e foram todos para a delegacia. Dercy tentou enganar o delegado dizendo:

– Pai? Esse cara não é meu pai. Nunca vi ele na minha vida.

A tentativa não deu certo e ela voltou para Madalena. Somente aos 21 anos, já maior de idade, conseguiu sair de lá e foi direto atrás da companhia Maria Castro. Procurou pelo Pascoal, que a levou à dona Maria. Teve que se ajoelhar e pedir para ficar com o grupo. Aos poucos, foi revelando o seu talento. Um dia, Pascoal a pediu em casamento e Dercy aceitou. Na noite de núpcias, ainda virgem, usava uma camisola feita de saco de estopa com a inscrição: “Indústria brasileira. Arroz de primeira.” A calcinha era também aproveitamento de saco de arroz. De sexo ela não sabia nada. O máximo que experimentara na vida tinha sido um beijo de seu primeiro namorado. Na primeira relação com Pascoal, quando começou a sangrar, gritou:

– Está me esfaqueando! Está me esfaqueando!

Correu até a delegacia para pedir socorro. Pascoal foi atrás e explicou a situação. Todos na delegacia morreram de rir e Dercy voltou acabrunhada para casa. Ela e Pascoal continuaram a viver juntos, mas como se fossem apenas irmãos. Sexo entre os dois, nunca mais. Maria Castro adoeceu e decidiu fechar a companhia. Com o nome de Os Pascoalinos, Dercy e Pascoal foram correr o interior, mambembando de cidade em cidade.

Certa vez, em Niterói, onde viviam, souberam que havia testes para o teatro Casa de Caboclo, na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro. Aprovados no teste, estrearam no espetáculo Minha terra. Dercy estava doente, com um foco de tuberculose no pulmão, mas precisava trabalhar. Embora seu nome nem figurasse nos cartazes, o jornal Correio da Manhã publicou sua foto e ela, imediatamente, mandou para Madalena. Os astros do espetáculo eram Jararaca e Ratinho, uma das mais criativas duplas de humoristas do Brasil. Eram tão importantes que a atriz Durvalina Duarte preparava o número deles, entrando em cena apenas para apresentá-los. O telefone tocava e ela atendia.

– Está lá?

E continuava falando, para a plateia:

– Sabem quem chegou? Jararaca e Ratinho!

Os dois entravam e, com sátiras políticas e sociais, arrasavam. Um dia pediram para a Dercy substituir Durvalina Duarte e anunciar a dupla. Dercy ficou uma arara.

– Não vou entrar só para atender um telefone.

Pensou bem e, mesmo achando um desaforo, entrou em cena. Quando o telefone tocou, ela atendeu:

– Está lá?

E continuou, sem anunciar ninguém.

– Não é a Durvalina, não. “Somos” eu que está aqui.

A plateia caiu na gargalhada. Dercy não sabia o que fazer e deu uma cusparada no chão. Como seus dentes eram separados, a cusparada saiu como um esguicho. Voou, passou por cima do fosso da orquestra e foi parar bem no meio da careca de um espectador. A casa veio abaixo de tanto rir. O próprio “alvo” se mijou de rir, limpando a careca. Nos bastidores, todo mundo ouvia a plateia delirando, mas sem saber o que estava acontecendo. Jararaca e Ratinho foram dar uma espiada para ver quem estava fazendo a casa morrer de rir. Duque, o mandachuva do teatro, adorou:

– Você tem que fazer sempre esse quadro.

A cusparada revelou a veia cômica da Dercy, mas, na vida real, as coisas iam mal. Estava tuberculosa. Teve a sorte de conhecer Ademar Martins, um empresário de café, que se apaixonou por ela e a internou em um sanatório. Seis meses depois teve alta e logo ficou grávida de Ademar, pai da Dercimar, sua única filha. Com a morte dele, casou-se com Danilo Bastos.

A estrela da Dercy voltou a brilhar quando ela foi trabalhar com Walter Pinto, que estava iniciando a carreira como produtor teatral. Ele percebeu o potencial da atriz e, a partir de então, o crescimento da carreira dela foi meteórico. Passou a ser o primeiro nome no teatro de revista. Trabalhou em algumas companhias de teatro, mas logo se tornou adaptadora de peças, diretora e produtora de seus espetáculos, que, durante anos, lotaram os teatros de todo o Brasil. No cinema, contracenou com os maiores comediantes da época, como Oscarito e Grande Otelo.

Na televisão, foi o nome mais importante da TV Excelsior, onde atuou em Dercy beaucoup, com peças de seu repertório, e participou de Vovô Deville. Ela pressionou muito o Walter Clark com o objetivo de acelerar a minha ida para a Globo. Quando cheguei lá, a Dercy fazia um enorme sucesso com o Dercy comédias, na sexta, e o Dercy espetacular, aos domingos, mas tinha problemas com a produção e com a direção dos dois programas. O Comédia vivia com problemas de censura, que acabaram inviabilizando-o. O formato do Dercy espetacular havia sido sugerido pelo Walter e ele prometeu que iria, pessoalmente, dirigir o programa. Esteve presente na estreia e nunca mais apareceu. Não era a praia dele. A direção do programa ficou a cargo do Bruno Neto, uma figura simpática, que atuava e dirigia bem. Mas o pessoal da Globo era muito amador e eu precisava de um capataz para tocar o programa. Chamei o João Lorêdo e montamos uma equipe de produção para dar segurança à Dercy. Fomos levando os dois programas ao mesmo tempo, mas em julho tivemos que cancelar o Dercy comédias, que foi substituído pelo Dercy de verdade, com dois “pauteiros” cedidos pelo jornalismo da Globo. O João também montava o roteiro e participava da pauta de reportagens. Um dia, o Hilton Gomes nos ofereceu uma matéria sobre um sujeito que fora abduzido por um disco voador. Fomos até a casa do cara: Hilton, João Lorêdo, Dercy e eu. Sentamos na sala de estar e ele, em um gravador daqueles de fita, mostrou a conversa que teve com o suposto ET em pleno disco voador. Logo percebi que a voz do sujeito abduzido e a do ET era a mesma e que ele, com um lenço ou outro filtro, fazia a voz do alienígena. Perguntei:

– Ué, o ET fala português?

– Fala qualquer língua do mundo. Ele mentaliza o que a gente fala e responde na nossa língua.

Diante da fraude, agradeci e nos levantamos para sair, quando ele nos interrompeu.

– Um momento. Me dê um momento que eu quero mostrar uma coisa.

Cedemos. Ele apagou as luzes e ouvimos umas batidas no chão e certa luminosidade em um canto, que parecia vir de uma dessas pequenas lanternas de bolso. O sujeito perguntou:

– Estão vendo alguma coisa?

Eu não via nada além de uma luz e disse:

– Nada. Só uma luz.

Para minha surpresa, o Hilton Gomes falou:

– Estou vendo um homem de barba branca, cabelos brancos, uma bata branca e um cajado.

O sujeito gritou:

– É Deus! É Deus!

A Dercy se levantou e mandou ver.

– Acendam já essa luz! Deus não ia aparecer onde eu estou, porra!

Foi um rebuliço. O sujeito acendeu a luz e a Dercy me puxou pela mão, já saindo pela porta.

– Puta que o pariu. Tomam meu tempo para uma merda dessas.

Dois outros casos aconteceram nos programas dela. Um foi com a Coca-Cola, grande cliente da Globo. A Dercy, falando de si mesma, revelou no ar:

– Eu só tomo Coca-Cola. É ruim, mas todo mundo bebe.

Outro foi com o Banco Nacional de Habitação, BNH. Vendeu-se uma campanha para o BNH em que os artistas emitiam opiniões positivas sobre o financiamento da casa própria, e a Dercy confundiu BNH com BCG, vacina para tuberculose:

– Olha, eu não acredito nesse BNH. Não adianta porra nenhuma. Fiquei tuberculosa com BNH e tudo. Essas coisas que o governo dá de graça não funcionam. BNH é uma merda.

No dia seguinte, nos postos do BNH, havia filas de pessoas querendo receber de volta o sinal que haviam dado e ao qual teriam direito em caso de desistência. A Globo precisou explicar nos telejornais que a Dercy havia feito uma confusão.

A Globo e eu devemos muito à Dercy. Quando a TV Paulista foi tomada pelo fogo, em São Paulo, ela estava no Rio e pegou um avião para fazer um programa improvisado, na garagem do prédio, em frente ao auditório da rua das Palmeiras. Deu ânimo para todo o elenco que estava em São Paulo e registrou uma audiência sem precedentes.

Por sua naturalidade e brasilidade, foi vítima do preconceito de algumas velhas senhoras de militares que voltaram a censura para cima dela, de tal forma que seus programas foram inviabilizados. Não podia mais fazer programa ao vivo e, quando gravado, era totalmente mutilado, resultando em uma duração tão pequena que não podia ser exibido. Dercy saiu do ar e da Globo. Mais tarde, voltou e seu brilho continuou no Jogo da Velha do Faustão e, depois, em Que rei sou eu?, novela de Cassiano Gabus Mendes, em que ela esteve hilária. Foi um dos maiores sucessos da história do horário das sete da noite.

Quando começamos a trabalhar juntos na Globo, eu ia para a casa dela com o João Lorêdo, sempre à noitinha. Da cozinha, vinha o perfume da “carne assada da Dercy”, que depois virou “carne assada do Boni”. Era uma coisa mágica, feita somente com água, alho e cebola e mais nenhum mistério. Um dia, ao sair da reunião, vi que meu fusca, que deixara estacionado na porta, havia sido roubado. A Dercy riu.

– Paulista boboca, não tem trava? Deixa que o seguro paga.

Não tinha seguro. O Lorêdo me deixou em casa, de táxi. No dia seguinte, fui despertado por um vendedor de uma revenda Volkswagen, com um carro zero:

– Dona Dercy Gonçalves mandou entregar para o senhor.

Pouco antes de ela morrer, a Dercimar me disse que a mãe ia de táxi visitar as amigas e jogar bingo, que ela adorava. Mandei de presente um carro zerinho para ela.

Até perto dos 100 anos a Dercy mandava mensalmente a minha carne assada. Quando ela faleceu, postei um texto, em meu blog, com o título: “O boato da morte de Dercy.”

Uma mulher como a Dercy não morre nunca.

Texto extraido do "Livro do Boni", de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, Casa da Palavra, Rio de Janeiro, 2011. Digitalizado, adaptado e ilustrado para ser postado por Leopoldo Costa.

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